Drogas Be-a-Bá: Cetamina

Fernando Beserra
Introdução

A cetamina (ou ketamina), conhecida popularmente por seu uso nasal, foi sintetizada em 1962 pelo químico Calvin Stevens. A síntese foi realizada no laboratório Parke-Davis a partir da substância fenciclidina, o PCP (Daré et al., 2021). A cetamina é uma substância antagonista não competitiva do N-metil-D-aspartato (NMDA), usualmente conhecida por seus efeitos anestésicos. Em doses baixas a moderadas produz efeitos eufóricos, além da uma espécie de embriaguez, com alteração da sensação de espaço; em doses altas, imobilização, analgesia e efeitos psicodélicos dissociativos conhecidos como k-hole (Orhurhu et al, 2023; Daré et al., 2021). Os efeitos dissociativos variam de intensidade. Eles podem incluir uma sensação de ruptura entre a psique e o corpo, a ocorrência de estados de fantasia intensos, além da experiência de entrada em outra realidade.

A classe dos dissociativos pode ser lida como uma subclasse das substâncias psicodélicas (Fonseka; Woo, 2023). Além de provocar uma viagem mental, embora distinta dos psicodélicos clássicos como psilocibina, LSD ou DMT, a cetamina também pode catalisar o que foi denominado de experiência mística. A experiência mística é correlacionada, em diversos estudos, com os resultados favoráveis nas terapias psicodélicas (Ko et al., 2022), inclusive com cetamina (Rothberg et al, 2021).

A cetamina foi utilizada no campo da anestesia (Green; Li, 2000), ainda em 1965. Posteriormente, ela foi a substância anestésica mais utilizada durante a guerra do Vietnã (Orhurhu et al, 2023). O uso social de cetamina ocorreu ainda na década de 1960 e 70. Nos anos 80 e 90, a substância foi associada à cultura dance, clubes de techno e raves (Jansen, 2000). O uso social mais comum da cetamina é o uso nasal, mas ela também é usada por via intravenosa, intramuscular, oral etc.

A cetamina e análogos, como a escetamina, seguem em um caminho pioneiro para regulação de uso terapêutico de psicodélicos no mundo. A escetamina, por exemplo, foi autorizada pela Food and Drug Administration (FDA) e pela European Medicine Agency para uso medicinal em 2019 (McIntyre et al., 2021), enquanto a cetamina tem um importante uso off-label no tratamento de transtorno depressivo. No Brasil, a escetamina foi autorizada pela ANVISA em 2020 para pacientes com depressão refratária, para uso conjunto de outro antidepressivo oral.

Riscos e redução de danos

Entre os riscos do uso social de cetamina pode-se mencionar a substituição ou adulteração da substância. Na medida em que parte do uso social de cetamina, diferente do uso terapêutico, provém do mercado ilícito, isso pode resultar em “comprar gato por lebre” e o usuário corre o risco de utilizar adulterantes mais perigosos. Como estratégia de redução de danos, a testagem colorimétrica ou outras formas de testagem mais rigorosas são indicadas. O uso da testagem é um instrumento de prevenção, informação e cuidado, em uma lógica de redução de danos (Maluf; Paiva, 2021). Em 2019, no Brasil, 23 coletivos de redução de danos que atuam em festas indicaram a realização de testagem colorimétrica (Beserra, 2019).

O uso da própria cetamina também não é isento de riscos, e em doses muito altas pode levar a dificuldade de respiração até a falência respiratória (Orhurhu et al, 2023), o que demanda atendimento médico urgente. Sua toxicidade provoca diversos sintomas e estes são dose-dependentes. É bem conhecido o relato de dores abdominais após o uso intenso. Em uso contínuo abusivo, há o risco de cistite ulcerativa (Orhurhu et al, 2023).

Em uma pesquisa, que utilizou um questionário online, os danos mais relatados por usuários sociais de cetamina foram: confusão não esperada (58,2%), problemas na memória (57,4%) e mudanças abruptas no comportamento ou humor (49,6%) (Giné; Calderón; Guerrero, 2016). O uso contínuo pode provocar hiperreatividade da bexiga (Daré et al., 2021). Além disso, a cetamina, especialmente utilizada de forma abusiva, pode provocar confusão, hipertensão, taquicardia e outros sintomas cardiovasculares. O uso pesado também pode provocar sintomas cognitivos e gastrointestinais. Alguns dos sintomas desaparecem quando há acentuada redução do consumo de cetamina (Amsterdam; Brink, 2021).

Outro risco é o usuário vomitar enquanto está com pouco movimento, especialmente quando está deitado. Nesta ocasião, deve ter o seu corpo lateralizado, de forma a evitar que engasgue. A cetamina pode provocar náuseas e não é recomendado se alimentar ao menos uma hora e meia antes do uso

Entre as principais estratégias de cuidado encontradas por usuários sociais foram espaçar os usos (60,8%), espaçar as doses dentro de uma sessão de uso (54,5%), limitar a quantidade e não a ultrapassar (41,3%) (Giné; Calderón; Guerrero, 2016). Essas medidas podem limitar, além dos riscos físicos, a possibilidade de dependência da cetamina.

É fundamental que reconheçamos o intuito do uso, que deve influenciar a dose e o local onde se pretende utilizar a substância. Quando o intuito é o uso de doses maiores, a necessidade de manter um (a) cuidador (a) passa a se tornar ainda mais relevante, pois pode ocorrer dificuldade de reação geral e coordenação durante o uso. Deve-se levar essa informação em consideração com fins de evitar pessoas que possam apresentar comportamentos abusivos ou que não sejam de inteira confiança. Além disso, os efeitos da cetamina sugerem cautela referentes ao uso em locais com praia ou piscinas. O (a) cuidador (a) deve ser alguém que já conheça o uso e os riscos da substância e mantenha postura calma diante dos seus efeitos.

Por fim, mas não menos importante, para o uso cheirado da cetamina deve-se evitar suportes sujos (como pias de banheiro), assim como o compartilhamento de insumos (como compartilhar o canudo de uso), pois há risco de contaminação por hepatites virais.

Há diversas interações arriscadas entre a cetamina e outras substâncias psicoativas, portanto, deve-se evitar a interação entre substâncias. Aos usuários que pretendem realizar o uso de mais de uma substância, conhecer a tabela de “drug combinations” do Tripsit é uma alternativa, ainda que seja pouco, pois no uso social de substâncias proscritas, em geral, desconhecemos a quantidade exata de uso, o que prejudica a avaliação de riscos.

Usos terapêuticos

Atualmente, a cetamina é comumente associada ao seu uso em saúde mental, especialmente no tratamento de quadros depressivos refratários a outros medicamentos (Yavi et al., 2021). Um terço dos pacientes com transtorno depressivo maior, atualmente, não tem resposta apropriada com os medicamentos prescritos, além do alto número de pacientes sem resposta terapêutica após o uso de mais de dois diferentes medicamentos antidepressivos. A cetamina surge como uma substância psicodélica dissociativa capaz de promover um efeito antidepressivo agudo, em distinção aos medicamentos atuais que demoram semanas para produzir efeito clínico.

Pode-se destacar, quanto aos riscos, que esses são bem inferiores aos encontrados nos usos sociais contínuos ou pesados, pois o uso clínico da cetamina ou da escetamina é realizado em poucas oportunidades e com doses controladas.

Outra substância semelhante à cetamina, a escetamina, que é um isômero da cetamina racêmica, também tem sido utilizada no tratamento de transtorno depressivo refratário. No Brasil, há um medicamento de uso nasal, o Spravato, utilizado com essa finalidade. O interessante da cetamina e da escetamina é que, enquanto outras substâncias antidepressivas demoram semanas para o início do efeito clínico, elas demoram horas. Isso é, o efeito é quase imediato, com grande potencial para aliviar sintomas, inclusive de ideação suicida.

Algo curioso é que, diferente das demais substâncias psicodélicas, a maior parte do uso terapêutico da cetamina e da escetamina não adere aos modelos inovadores dos demais psicodélicos. A mais inovadora característica da psicoterapia aliada ao uso de psicodélicos, é que ela reaproxima o uso de fármacos, à experiência subjetiva catalisada por esses e à psicoterapia, alcançando resultados expressivos. Na maior parte das pesquisas com cetamina e escetamina, no entanto, não há uma grande preocupação com a experiência subjetiva durante o uso e tampouco com o setting terapêutico. A experiência subjetiva psicodélica/dissociativa é considerada “efeito colateral”. Isso é, o modelo que predomina nos tratamentos com cetamina e escetamina no Brasil e no mundo são modelos reducionistas, de orientação biomédica, sem atenção aos desdobramentos psicossociais que poderiam contribuir para os resultados do uso da substância (Freind et al., 2023).

Apesar da pouca preocupação com um modelo que integre a farmacoterapia e a psicoterapia, as pesquisas indicam que a realização concomitante de psicoterapia com os tratamentos com cetamina/escetamina podem prolongar ou mesmo potencializar os seus efeitos clínicos (Wilkinson et al. 2017; Wilkinson et al., 2021). Além disso, há as exceções aos modelos reducionistas, a exemplo da psicoterapia assistida com cetamina (ketamine assisted psychotherapy) e da terapia psicodélica com cetamina (ketamine psychedelic therapy).

Considerações finais

Nem um vilão e nem uma heroína, a cetamina e seus análogos têm grande potencial terapêutico e usos sociais importantes. No campo dos usos terapêuticos, os esforços devem estar em produzir alternativas mais baratas para as substâncias no mercado. Ainda assim, há evidência suficiente da utilidade da cetamina e da escetamina no tratamento de transtorno depressivo maior unipolar ou transtornos depressivos refratários (Singh, 2016; Bahji; Vazquez; Zarate Jr., 2021) e, cada vez mais, também de outros transtornos mentais, eventualmente com a necessidade de psicoterapia concomitante (Fancy et al., 2023; Kelson et al., 2023; Martinotti et al. 2021). Essas formas de tratamento devem estar disponíveis no SUS, não de forma periférica, mas em serviços especializados que se articulem em rede.

O acesso a tratamentos de qualidade e com eficácia significativa devem compor o arsenal terapêutico que possa alcançar populações, por vezes, alheias a essas alternativas. Por fim, os modelos clínicos com cetamina e a escetamina devem incorporar não apenas a psicoterapia em seu protocolo, mas atentar cuidadosamente para as dimensões do set, do setting1 e da Matrix2. Sem o cuidado com as dimensões psicossociais, perdemos a oportunidade de oferecer mais efetividade nos tratamentos e, igualmente, de nos orientarmos pela integralidade do cuidado.


[1] – O set refere-se aos aspectos individuais como a personalidade, o estado emocional e expectativa do uso da substância, enquanto o setting refere-se aos aspectos contextuais e ambientais, inclusive as dimensões físicas, sociais e culturais. Ambos os fatores modulam diretamente a experiência com substâncias e também são conhecidos como fatores extra-farmacológicos. Os conceitos de set/setting foram popularizados por Timothy Leary e pesquisadores associados (Hartogsohn, 2021).

[2] – A matrix é um conceito cunhado por Betty Eisner em 1997. A matrix compõe uma dimensão sócio-cultural mais abrangente do setting e refere-se as condições de vida da qual se parte e para qual se retorna após o uso de substâncias psicodélicas (Beserra; Rodrigues; Monteiro, 2021), podendo modular os efeitos benéficos ou iatrogênicos no uso terapêutico.


Referências

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Fernando R. Beserra é psicólogo, mestre e doutor em psicologia clínica pela PUC-SP. Pós-doutorando em psicologia na PUC-Rio. Co-fundador e atual coordenador da Associação Psicodélica do Brasil (APB).

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