O Som da Britadeira. Considerações sobre o desmonte da rede de saúde mental a partir da experiência de uma enfermaria para dependência de substâncias psicoativas em Hospital Geral

Valéria Lacks

O som de uma britadeira rasga a noite
O barulho ensurdecedor é quase apaziguado pela ideia
De que algo precisaria ser construído
Nos meandros das decisões
O que restará da paisagem?
Nunca saberemos…”

Valéria Lacks

Este texto reflete uma decisão a partir da experiência vivencial para falar do meu percurso enquanto fundadora e coordenadora de uma enfermaria psiquiátrica para tratamento de dependências em hospital geral. Essa escolha permite um recorte, ao longo de 22 anos, de um modelo assistencial que pode responder às demandas de uma rede prioritariamente ambulatorial. Essa rede costuma utilizar o recurso da internação de maneira pontual, mantendo o indivíduo circulando nos diversos serviços, de forma inclusiva e respeitando suas escolhas.

A Unidade de psiquiatria para tratamento de dependências em hospital geral, localizada em Diadema (Hospital Estadual de Diadema), foi inaugurada em maio de 2001. Seu objetivo é o atendimento sob regime de curta internação de dependentes de drogas que apresentam riscos de vida ou comorbidades que poderiam ser melhor tratadas com as equipes multidisciplinares presentes no hospital geral. O território compreende a rede de assistência a usuários de drogas das 7 cidades do grande ABC (Diadema, Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra). O Hospital foi fundado no ano 2000 como uma OS (organização social) através de um contrato entre a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo e a SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina)1.

A unidade surgiu em 2001 em consonância com as diretrizes do Ministério da Saúde, que previa enfermarias psiquiátricas em hospital geral como apoio para a rede de assistência extra-hospitalar, em especial os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) presentes no território. A proximidade com outras especialidades do hospital, além de outros equipamentos da rede como os do sistema judiciário, escolas públicas, Unidades Básicas de Saúde (UBS), e Consultórios de rua nos permite articulações importantes para que a continuidade do tratamento pós internação se desse de forma menos estigmatizada e o mais efetiva possível.

Naquele tempo muito estava sendo investido na saúde: novos CAPS, novos hospitais que tinham o compromisso de investirem na saúde mental. A equipe era grande, com médicos 24 horas, 3 psicólogos, terapeuta ocupacional, assistente social e enfermagem com especialização em saúde mental.

Eu havia feito dois estágios no Centre Medical Marmottan (em 1991 e 1994), onde Claude Olievenstein2 desenvolveu  metodologia própria em relação à toxicomania. As internações por lá eram curtíssimas (por volta de 7 dias), mesmo com pacientes dependentes de opiáceos. Ocorre que antes da internação, aqueles pacientes já haviam sido acolhidos e toda articulação para o momento da desintoxicação e a programação do pós cura já estava feita num compromisso entre o paciente e a instituição.

Esta era minha experiência sobre internação. No Brasil, todo meu trabalho havia se desenvolvido no PROAD (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes do Departamento de Psiquiatria da EPM-UNIFESP). De lá, já havia entendido que a internação seria uma opção rara no tratamento de nossos pacientes.

Do Marmottan,  trouxe as noções do modelo francêsde tratamento, em que a voluntariedade, a gratuidade e o anonimato eram os fios condutores de todo o olhar sobre as particularidades da toxicomania. Além disso, o acolhimento era parte essencial de toda intervenção. Assim a instituição funcionaria como um espaço de transferência em que a linguagem poderia conferir existência para o sujeito. (Oliveira & Tedesco, 2006)

A enfermaria de desintoxicação do Marmottan era conduzida basicamente por enfermeiros que permaneciam com os pacientes nos vários espaços de convivência (sala, refeitório, posto de enfermagem e quartos) trabalhando as questões que surgiam de forma espontânea.

Existia uma porta de vidro transparente, que tinha uma função simbólica em que o dentro e o fora se relacionavam basicamente com o movimento interno de cada sujeito. Ele poderia decidir se completaria ou não o tratamento combinado – se decidisse sair todo o processo deveria ser recomeçado, quando autorizado.

Esta experiência me inspirou a pensar no modelo da Unidade de Psiquiatria. A princípio a unidade funcionava com um ambulatório, uma enfermaria e um atendimento em interconsulta para outras unidades do hospital que requisitassem atendimento psiquiátrico.

As portas de entrada eram o grupo de acolhimento ou os encaminhamentos feitos pela rede, prioritariamente pelos serviços de saúde do território, normalmente realizados pelo telefone. Junto a esta rede os caminhos para o momento da internação eram discutidos conjuntamente. Alguns desses pacientes participavam do grupo de acolhimento antes da internação para que pudessem elaborar melhor a função desta intervenção naquele momento de seu percurso terapêutico. Muitos desses pacientes permaneciam no grupo e conseguiam ressignificar seu sentido e desse modo, reinvestiam no tratamento sem a necessidade de internação.

A internação pode funcionar como alavanca no projeto terapêutico, mas em nenhum momento pode ser considerada central, e sempre que possível não ser a porta de entrada do tratamento.

Por outro lado, todos os pacientes com riscos iminentes de suicídio, ameaças reais de morte, ou com grave comorbidade psiquiátrica eram internados prontamente através da triagem médica realizada todos os dias, mesmo se não tivessem iniciado outro tipo de tratamento.

Além da bagagem do acolhimento trazida da experiência francesa, a internação propriamente dita ocorre num curto espaço de tempo (média de 15 dias) e assim como na enfermaria do Marmottan não são permitidas visitas. Para nós, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, lei 8069, as visitas são permitidas e programadas para esta faixa etária.  Esta regra visa poder trabalhar os pacientes e seus familiares com suas questões específicas, afastando os mecanismos de negação e alienação das dinâmicas familiares que mantêm ativos os elementos crônicos das relações. (Lacks & Pitta, 2006)

Este modelo não seria possível e não faria sentido sem uma rede articulada que trabalhe prioritariamente no território. A internação pode funcionar como alavanca no projeto terapêutico, mas em nenhum momento pode ser considerada central, e sempre que possível não ser a porta de entrada do tratamento.

As diversas possibilidades de atendimento ao longo dos anos

Gostaria de ressaltar o aparente paradoxo ao falar sobre um modelo de internação psiquiátrica. A ideia de rede que, quando bem articulada e contando com equipamentos que vão desde os atendimentos em UBS e CAPS até serviços ligados à assistência social e equipes de redução de danos podem suprir a grande maioria dos atendimentos. Desse modo, ela pode usar melhor um serviço que ofereça internação – até porque consegue identificar mais precisamente as necessidades dos usuários.

 Nesse sentido, a equipe de Hospital Geral tem a tarefa fundamental de compreender e participar ativamente junto com outros atores da rede para que as intervenções pontuais, sob regime de curta internação, sejam bem-sucedidas.

Isto significa que o trabalho articulado com os equipamentos da rede que nos solicita ajuda, amplifica as possibilidades e os caminhos a serem trilhados no projeto terapêutico de cada paciente.

Durante esses anos pudemos realizar atendimentos através de articulação com a saúde indígena, com equipes de consultório de rua e com a justiça.

A seguir, apresento 2 casos que ilustram bem a potencialidade da rede devidamente articulada.

Num desses casos, um paciente de 17 anos, que chamarei de Diego, nos foi encaminhado devido aos sintomas alucinatórios que apresentava; estava psicótico, era transsexual e fazia uso de diversas substâncias. Estava em acompanhamento irregular em um CAPS I de São Paulo. Veio juntamente com o pai, alcoolista, que foi internado em comunidade terapêutica ainda em vigência do internamento de Diego. Ele tinha ainda uma irmã, um pouco mais velha, que estava grávida e residindo sozinha, sem condições mínimas para acompanhar Diego. O Conselho Tutelar já estava ciente do caso dessa família e tinha grande dificuldade para abordar Diego que estava sempre fugindo.

A mãe de Diego faleceu quando ele tinha 14 anos. Este fato iniciou a desestruturação de vários aspectos de Diego. Até então fazia atividades numa ONG da comunidade que inclusive acompanhava as relações interfamiliares. Depois da morte da mãe ele já não frequentava a ONG e iniciou o uso de drogas. A acolhedora da ONG nos visitou e naquele momento era quem mais sabia de sua história, mas já estava sem notícias dele há alguns meses.

A extrema vulnerabilidade desse paciente e a carência total de uma rede de apoio estabelecida até para pensar numa alta, nos fizeram tomar a decisão de acionar a vara da infância, pois sabíamos que sem um suporte adequado advindo do Estado, muito pouco poderíamos fazer para mitigar os efeitos de sua vida vulnerada.

Diego já estava conosco há 30 dias com melhora de seus sintomas psicóticos e sem nenhuma queixa de fissura por drogas. Seu uso parecia fazer parte do contexto em que vivia. Apesar da melhora dos sintomas, permanecia sem crítica de sua condição clínica. Sabíamos que sozinho não conseguiria dar continuidade ao tratamento nem à própria subsistência.

Falamos com a irmã em atendimento telefônico e, categoricamente, ela nos disse não ter condições de cuidar do irmão. Encontramos também uma tia que era a responsável por uma criança deficiente e recusou-se a recebê-lo.

O atendimento realizado pela juíza e pela promotora foi bastante cuidadoso. Diego sabia do movimento que estávamos fazendo e participou presencialmente de 2 audiências. Ele sabia que não poderíamos liberar sua alta sem que tivesse um suporte. Em algum nível entendia que não teria um lugar minimamente estável para si.

A vara da infância também tentou articulações com a rede (Conselho Tutelar, CAPS e Abrigamento). Diego já estava com quase 18 anos e a ida para um abrigo parecia ser uma solução temerária, já que seria um trabalho de pouco tempo e um novo corte de cuidado aconteceria.

A solução encontrada pela equipe em conjunto com a juíza e a promotora foi de que esperássemos até que Diego completasse 18 anos para que fosse encaminhado para uma residência inclusiva, recém-inaugurada e vizinha a um CAPS Infância e Juventude (IJ) que o acompanharia após a alta.

Mais 2 meses se passaram até que Diego fizesse 18 anos e pudesse ser encaminhado. Período longo que pode ser finalizado graças ao vínculo construído na enfermaria: a instituição para ele foi o espaço de acolhimento, ele foi se aproximando aos poucos de cada membro da equipe. Algo que marcou bastante essa aproximação foi sua relação com as perucas de dread que gostava de usar. Com o tempo a que trouxe consigo se estragou. Quando conseguimos um cabeleireiro nas proximidades que aceitou atendê-lo e refez a peruca, ele deu um grande salto de confiança em relação à equipe: participava mais de atividades e falava de sua história. Quando sua sobrinha nasceu, colou sua foto na parede do seu quarto e fazia questão de compartilhar com todos sua alegria. Essas aproximações foram acontecendo devagar. Em todos os momentos ele participava das decisões e dos tempos necessários para que as soluções pudessem aparecer.

Algumas fugas e retornos fizeram parte desta difícil trajetória. Neste sentido, não podemos dizer que a internação foi voluntária. Depois de 2 meses Diego só queria a alta. Movimento muito saudável da parte dele. Mais interessante ainda foi que ele chegou a sair, pegou um ônibus e voltou espontaneamente, reforçando a ideia de que ainda que ambivalente ele tinha um desejo de permanecer no processo. Talvez por ser adolescente e precisar dessa relação com as figuras de autoridade, afinal, ele não havia vivenciado essa experiência em outros vínculos.

As equipes do CAPS IJ e da Residência Inclusiva estiveram conosco num espaço de supervisão para que pudéssemos construir juntos um projeto terapêutico viável ao longo de vários meses.

Este caso representa uma articulação não usual entre a justiça, a saúde e a assistência social. Normalmente nosso trabalho limita-se a um curto período em que a avaliação do sujeito desintoxicado pode contribuir para que o trabalho extra-hospitalar possa prosseguir com novas alternativas. Neste caso, porém, pela carência de um vínculo de tratamento anterior, pela necessidade avaliada de constituição de uma rede de proteção, que pudesse colaborar com o enfrentamento ao alto grau de vulnerabilidade psicossocial, uma grande parte do trabalho para melhorar as chances de continuidade do tratamento foi realizada a partir da unidade de internação. Fica nítido nesse exemplo, que o Projeto Terapêutico Singular pode ocorrer em qualquer ponto da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), desde que haja articulação possível entre os serviços do território.

O segundo caso trata de um indígena habitante de uma aldeia Guarani, etnia Mbiá, localizada no litoral norte de São Paulo. Vou chamá-lo de Miguel. A articulação aqui iniciou-se com um pedido de uma psicóloga que na época trabalhava na Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), que na ocasião atendia também a população indígena. (Conselho Regional de Psicologia da 6ª. Região, 2010)

Ela nos pediu auxílio para um paciente alcoolista que, numa crise psicótica, havia atacado uma criança da aldeia. Miguel encontrava-se ameaçado por ter agredido uma criança. Veio voluntariamente para o hospital, orientado pelo pajé da aldeia. Miguel já não se encontrava agitado, nem apresentava sintomas psicóticos produtivos como delírios e alucinações.  Antes da internação passou um período na “Casa de Reza”, local ritual central do povo Guarani. Ali já havia se recuperado bastante de seu quadro de agitação. Permaneceu tranquilo nos aproximadamente 30 dias de internação. Adaptou-se aparentemente bem e depois de poucos dias já falava espontaneamente de si e do ocorrido.

Nesse caso, o desafio de acolhimento de um membro de população originária para internação ocorreu por um motivo urgente. Talvez a internação tenha sido capaz de preservar-lhe a vida para que pudesse ter a chance de um recomeço.

Muitos membros de sua família eram alcoolistas, inclusive sua esposa. A internação foi um esforço da FUNASA para que ele iniciasse um tratamento para o alcoolismo e também o afastasse de sua aldeia num momento em que muitos o ameaçavam de morte. As questões que se impunham transcendiam sua patologia. Os membros da aldeia discutiam seu destino e pediam por uma punição. (Loureiro, 2010)

A condução de seu caso exigiu que um membro de nossa equipe fosse até a tribo para participar de um conselho. O conselho conseguiu ouvir sobre como Miguel estava evoluindo e que naquele momento já não representava um risco.

Ainda assim, a liderança da aldeia decidiu que Miguel ficaria em outra aldeia longe de sua família.

Nesse sentido, o principal trabalho visava reconhecer o impacto sobre Miguel frente a decisão de ser mandado para longe de sua família. Descobrir como ele se sentia nesta circunstância exigia um delicado trabalho. Como um legítimo guarani3 Miguel resignou-se e aceitou a decisão. Só viemos a receber notícias dele muito tempo depois. Soubemos que ele permaneceu bem por um longo tempo em Cananéia; posteriormente, perdemos o contato.

Nesse caso, o desafio de acolhimento de um membro de população originária para internação ocorreu por um motivo urgente. Talvez a internação tenha sido capaz de preservar-lhe a vida para que pudesse ter a chance de um recomeço.

Nada é tranquilo em casos como esses, mas certamente conseguimos encontrar alternativas que possibilitaram a difícil inserção na rede de saúde mental e assistência social necessárias para o projeto terapêutico de Diego. Da mesma forma, com Miguel tivemos a oportunidade de aprender muito sobre os desafios para conseguir oferecer assistência em saúde mental buscando todo o tempo articular o tratamento do branco (Juruá para eles) com o entendimento de Miguel e da liderança de sua aldeia.

Não vou me estender no relato dos inúmeros casos muito particulares e únicos que com suas demandas nos estimularam a apurar nosso olhar para suas respectivas singularidades.  Foi a partir do desenvolvimento da experiência de ajustar nosso olhar para os inúmeros casos em suas incomuns singularidades que pudemos aprender o quão necessário é não se deixar aprisionar a protocolos rígidos, pois estes têm pouco a nos ensinar.

Para nós muitas vezes ficou mais fácil responder a pedidos que vinham de consultórios de rua.4 Nesses casos também é essencial o trabalho articulado em que um redutor de danos faz a ponte entre o Caps e a curta internação para aqueles sujeitos que pedem por tratamento.

Outros ventos na saúde mental

Ainda no Governo Alckmin do estado de São Paulo alguns cortes financeiros começaram a ser feitos na saúde como um todo. A privatização do SUS têm um entrave complicado no que se refere a este aporte. O dinheiro que as organizações sociais recebem deve atender a todos os gastos necessários ao funcionamento do serviço. Com o tempo, os equipamentos se desgastam, mas o aporte é o mesmo. Além disso ,em cada crise do Estado, algum corte maior é feito sem reavaliar metas e necessidades.

Com esses cortes o hospital decidiu reduzir as equipes e a psiquiatria não foi poupada. Já em 2010, a equipe passou a ter médicos somente durante o dia. A partir daí, pouco a pouco perdemos a assistente social e 1 psicólogo.

A regulação de leitos passou a ser feita pela Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde do Estado de São Paulo (CROSS). Para nós isto significava que receberíamos pedidos de todo o Estado de São Paulo através de solicitações inseridas nesse sistema. No início, a Saúde Mental não havia sido introduzida neste sistema, até porque os serviços estavam funcionando com a lógica da territorialidade e da RAPS com os CAPS realizando atendimentos mais complexos e realizando matriciamento de outros serviços para que uma rede pudesse ser construída. A finalidade da RAPS é a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do SUS. Seus objetivos gerais são: promover cuidados de saúde; prevenir o consumo; reduzir danos; promover reabilitação e reinserção; e formação permanente (Garcia & Reis, 2018).

Nossos encaminhamentos eram realizados fundamentalmente por telefone. Até hoje só os hospitais e prontos-socorros têm acesso à central CROSS e por este motivo as internações pedidas pelos CAPS do território ainda são feitas pelo telefone.

Não escapamos dessa avalanche de medidas retrocedentes na saúde mental: no início de 2021 fomos informados que a Unidade de Psiquiatria do Hospital seria fechada imediatamente.

Começamos a receber pedidos de vagas pela CROSS em 2018. O monitoramento da Secretaria da saúde do Estado de São Paulo revelava que estávamos aceitando poucos casos encaminhados pela CROSS, já que mantínhamos o vínculo com o território e encaminhamentos pelo telefone.

Nesse mesmo período, muito estava sendo alterado na rede de saúde mental naquilo que chamamos de desmonte da rede de saúde mental: vagas em comunidades terapêuticas foram contratadas pela Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo e a lógica da internação para pacientes dependentes de drogas volta a ser a primeira opção para os pacientes, desconsiderando tudo que havia sido construído na luta antimanicomial. A Reforma Psiquiátrica é um movimento mundial de lutas por transformações nas práticas de atenção ao sofrimento psíquico e mental que se desdobrou em experiências concretas em diversos países, desde mudanças nos manicômios e na sua lógica, até propostas de desospitalização e desinstitucionalização (Costa-Rosa, 2013).

Não escapamos dessa avalanche de medidas retrocedentes na saúde mental: no início de 2021 fomos informados que a Unidade de Psiquiatria do Hospital seria fechada imediatamente. A justificativa era o corte no orçamento da saúde do Estado ocorrido meses antes. Junto conosco a pediatria também foi fechada.

Nos disseram que um estudo havia sido realizado na região e que como existe um hospital psiquiátrico no território poderíamos dispensar um serviço de psiquiatria em hospital geral.

Ocorre que nem mesmo a coordenadora de Saúde Mental do Estado sabia desse movimento até um mês antes de sua realização. Felizmente esta decisão foi derrubada poucos dias depois de seu anúncio através de uma decisão do Promotor de Justiça de Saúde do Estado. Tínhamos uma enfermaria lotada e não poderíamos simplesmente transferir os pacientes sob o risco de causar-lhes ainda mais danos. Na época tínhamos um paciente psicótico bastante traumatizado com internações em hospitais psiquiátricos.

Nossos parceiros do território também se manifestaram contra o fechamento inclusive com denúncia ao Ministério Público (MP). A Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (ABRAMD) também apresentou denúncia ao MP. O apoio afirmativo de várias instituições foi bastante forte, o que nos garantiu a continuidade do trabalho até hoje.

Mas nossa história não termina aí. Depois do desfecho quase trágico algumas exigências da Secretaria da Saúde, através do grupo que acompanha as OS, a Coordenadoria de Gestão de Contratos de Serviços de Saúde (CGCSS ), foram feitas. Para a Secretaria o atendimento de urgência fazia parte de nossa responsabilidade, sem o entendimento de que não éramos um serviço de urgência. Para isto existiam enfermarias em prontos-socorros, A ideia de que um paciente pudesse ser internado fora da emergência, isto é, trabalhar uma internação no serviço de referência sem que a internação fosse uma urgência não e o entendimento da Secretaria. A ideia é que poderíamos atender pacientes na urgência de qualquer município do Estado mesmo sem suporte social ou familiar e reencaminhássemos à rede local.  Além disso o número de pacientes involuntários cresce a cada dia. Esse tipo de política destrói um modelo que pressupõe a anuência do indivíduo e sua participação na construção de seu projeto terapêutico.

A lição está dada: alguns CAPS já funcionam como triadores para internação. Encaminham antes de qualquer outra intervenção. Os pacientes são atendidos por um médico (nem sempre um psiquiatra) que propõe a internação antes mesmo de iniciar o atendimento e avaliação minuciosa das demandas e necessidades dos pacientes.

Assim temos atendido nos últimos 2 anos. Driblando os encaminhamentos involuntários que não temos condição de fazer dada a falta de médicos 24hs e fortalecendo os encaminhamentos do CAPS da região.

A mudança é drástica. Muitos serviços entendem que a internação é a primeira opção. Muitos encaminhamentos são feitos de paciente sem nenhum suporte social e sem possibilidade de contrarreferência. Desta forma, o atendimento em rede se esvazia e muito pouco podemos articular para que os atendimentos possam continuar após a internação.

Conclusão

A precarização da rede de Saúde Mental nos últimos 5 anos parece clara. Mais internações e a normalização dessas medidas como sendo o caminho a seguir.

A exclusão volta a ter um sentido a despeito de todas as possibilidades de inclusão que a sociedade pode oferecer.

O som da britadeira segue alto.

Durante todos esses anos pude vivenciar momentos de grande empenho de nossa equipe e de todos os equipamentos da rede.  Também pude acompanhar as pequenas e ao mesmo tempo grandes mudanças nos encaminhamentos e na forma de atendimento da população que depende de drogas. O que percebo é a normalização da internação sem nenhum acompanhamento ou intervenção prévias. Acompanhar pessoas que já passaram por inúmeras internações como se isto fosse a regra tem sido nossa população atualmente. Muito triste, pois parece que repetimos um padrão muito pouco efetivo. Aumentaram as altas a pedido,

Tentamos manter os mesmos princípios éticos que nos nortearam desde o inicio, mas neste momento perdemos as referências das articulações e caminhos futuros.


[1] Organização Social (OS) é um título concedido pelo Poder Público a uma associação ou fundação privada, regida pelo Código Civil e instituída por particulares, para a celebração de relação de parceria e fomento para a realização de atividade de interesse público, de longo prazo.(Guia de apoio à gestão do SUS, 2023)
[2] Claude Olievenstein foi um psiquiatra francês pioneiro no tratamento da dependência de substâncias psicoativas.
[3] Os Guarani possuem uma história antiga (desde o século XVI) e conturbada de contato, configurada pelo confisco de seu território. No Brasil, os Guarani, além de carregarem o estigma de “índios aculturados” em virtude do uso de roupas e outros bens e alimentos industrializados, são considerados como índios errantes ou nômades, estrangeiros (do Paraguai ou Argentina) etc. Esse fato, aliado à aversão desses índios em brigar por terra, via de regra era distorcido de seu significado original e utilizado para reiterar a tese, difundida entre os brancos, de que os Guarani não precisavam de terra pois nem “lutavam” por ela. (Instituto socioambiental, 2000)
[4] O Consultório de Rua é uma iniciativa de atenção à saúde de pessoas que vivem em situação de rua expostas ao uso de substâncias psicoativas. Essa é a premissa básica do trabalho que surge da constatação das dificuldades de acesso aos serviços de saúde assistência social por parte dessa população desde crianças a adolescentes, adultos e idosos. (Nery et al., 2011)


Referências

CONASS. (2023). Guia de Apoio à Gestão Estadual do SUS- Gestão 2023-2026. Brasilia: CONASS

Conselho Regional de Psicologia da 6ª. Região(org). (2010). Psicologia e povos indígenas. São Paulo: CRPSP

Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da Reforma Psiquiátrica: contribuições a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo: UNESP

Garcia, P. T.; Reis, R. S. (org.) (2018). UNA-SUS/UFMA Redes de atenção à saúde: Rede de Atenção Psicossocial – RAPS. 1 ed. São Luís: EDUFMA

Lacks, V. & Pitta, J. C. (2006) A unidade psiquiátrica no hospital geral. In: SILVEIRA, D. X. da; MOREIRA, F. G. Panorama atual de drogas e dependências. 1 ed. São Paulo: Atheneu, p.196-203

Loureiro, C. (2010) O curador ferido de crianças In: Conselho Regional de Psicologia da 6ª. Região(org). Psicologia e povos indígenas. São Paulo: CRPSP, p. 237-243

Nery Filho, A; Valério, A. L. R.; Monteiro, L. F. (org.). (2011). Guia do projeto consultório de rua. 1 ed. Brasília: SENAD; Salvador: CETAD, p.160

Oliveira, M. P. M. T; Tedesco, S. (2006). O acolhimento. In: SILVEIRA, D. X. da; MOREIRA, F. G. Panorama atual de drogas e dependências. 1 ed. São Paulo: Atheneu

Ricardo, C. A. (ed.) (2000). Povos Indígenas no Brasil 1996/2000. São Paulo: Instituto Socioambiental. p.832


Valéria Lacks é médica psiquiatra, Mestre em medicina pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM- Unifesp) e Coordenadora da Unidade de Psiquiatria do Hospital Estadual de Diadema -SP. Atualmente é coordenadora da ABRAMD Clínica São Paulo.

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