O papel decisivo do LSD para a construção da tríade contracultural sexo, drogas & rock n’ roll

Marcelo Pinheiro

A partir de experimentos do psicanalista Timothy Leary, um dos gurus da Geração Flower Power, o chamado “ácido lisérgico” foi diretamente responsável por revoluções musicais, comportamentais e sexuais documentadas a partir dos anos

O primeiro uso conhecido da tríade “sexo, drogas e rock n’ roll” – expressão que marcou a segunda metade do século XX como síntese de uma revolução sociopolítica sem precedentes – foi registrado em artigo publicado na edição de 17 de outubro de 1969 da revista LIFE assinado por Edward Kern, editor da publicação estadunidense.

Intitulado Revolution Continued – Can it Happen Here (em tradução livre, “revolução continuada – isso pode acontecer aqui”), o artigo é parte de uma extensa reportagem, do jornalista Adrian Hope, advertindo sobre a ameaça que rebeliões populares de cunho socialista e comunista também poderem assolar os Estados Unidos, intitulada, em bom português, Do Leste, a Guerra Popular – um passo a passo da doutrina de guerrilha inventada por Mao e usada nas revoluções modernas do Vietnã a Cuba.

No artigo, em que literalmente é registrada a frase “sexo, drogas e rock”, ainda sem o adendo “n’ roll”, ao detectar a ascensão da contracultura como uma desafiadora frente de rebelião juvenil contra o status quo normativo da sociedade estadunidense, Edward Kern observa e sentencia:

“(…) O simples fato de a juventude ter rompido com a tradição não tem precedentes na história e aponta para mudanças profundas na estrutura da sociedade americana. Ainda mais revolucionário, no entanto, é o fato de ter se equipado com o que o sociólogo Theodore Roszak chama de ‘contracultura’, um estilo de vida antagônico em quase todos os aspectos ao da América convencional. A contracultura tem seus sacramentos em sexo, drogas e rock, sua literatura em centenas de jornais underground, sua arte em cartazes fluorescentes e em filmes de cinema, seu panteão inconstante de heróis culturais em gurus zen e grupos de rock e, é claro, seu traje de identificação, seu estilo de cabelo, sua fala e seus sinais de reconhecimento mútuo.”

(Kern, 1969)

Mesmo não destacada no artigo de Kern, a ascensão do consumo de LSD foi um dos elementos decisivos de transformação comportamental e de alterações bruscas nas rotas estéticas até então perseguidas pela cultura do rock n’ roll, egresso desde a década anterior como fenômeno de massas e visto, desse “retrovisor” da história, como aglutinador de rebeliões à flor da pele, e inspirador de uma perigosa lascívia juvenil.

Evento auge para a difusão mundial da tríade “sexo, drogas e rock n’roll”, o Festival de Woodstock, realizado entre os dias 15 e 17 de agosto de 1969, aglutinou mais de 500 mil jovens em uma fazenda de Bethel, no estado de Nova York, com a promessa de três dias de “paz e amor” e a participação de estrelas como Jimi Hendrix, Janis Joplin e Gratful Dead, entusiastas declarados do LSD.

A escalada de transcendência propiciada pela substância mágica, capaz de conduzir adesistas “às portas da percepção” – parafraseando Wiliam Blake, em seu compêndio de escritos produzidos entre 1790 e 1793, The Marriage of Heaven and Hell (O Casamento do Céu e do Inferno) – remete, no entanto, a experimentos anteriormente registrados, como veremos a seguir. 

Origens do “drop out”

Em um álbum falado e homônimo, lançado em formato de LP em 1966, o psicanalista Timothy Leary cunhou a expressão “turn on, tune in & drop out” (algo como “se ligue, entre em sintonia e caia fora”). Sentença que reverberou, com amplitude maior, em um discurso proferido por Leary na abertura do Human Be-In, festival que reuniu mais de 30 mil proto-hippies no Golden Gate Park, em São Francisco, em 14 de janeiro de 1967.

O evento, considerado o prelúdio do chamado “Verão do Amor”, contou com a participação de bandas como Jefferson Airplane, Grateful Dead, Quicksilver Messenger Service e Big Brother and The Holding Company, pioneiras do chamado rock psicodélico, e também conhecidas como representantes do Frisco Sound ou de Acid Heads, epítetos característicos para definir a sonoridade lisérgica dessas bandas originárias da cena musical de São Francisco, e notáveis por longas improvisações instrumentais movidas a altas dosagens de LSD.

A partir do Human Be-In, o bordão provocativo de Leary foi então adotado por jovens de todo o mundo para resumir os ideais libertários da contracultura e a experiência transcendental propiciada pelo uso da substância cientificamente conhecida como Ácido Lisérgico Dietilamida, o LSD.

Até 1966, com o aval científico de pesquisadores como Leary, que primeiramente fez experimentos fechados com alguns de seus pacientes, o LSD foi vendido em farmácias dos Estados Unidos com a simples exigência de prescrição médica. A substância era então distribuída pelos laboratórios Sandoz – liberação que, aliás, inspirou A Girl Named Sandoz, composição psicodélica da banda Eric Burdon & The New Animals.

Na transição de 1967 para 1968, no entanto, o uso recreativo de LSD foge de controle, quando centenas de milhares de hippies, de costa a costa dos Estados Unidos, passam a atuar como agentes multiplicadores da cultura lisérgica difundida por Leary.

Situação que alardeou nas autoridades americanas a urgência de dar logo um fim à viagem da turma. Mesmo com a substância banida das prateleiras das farmácias desde outubro de 1966, o LSD continuou a ser difundido em círculos clandestinos, por meio de laboratórios químicos caseiros e de traficantes experimentados, que forneciam a droga embebida em cartelas multicoloridas, micropontos e em soluções líquidas. 

Uma viagem anterior

Um experimento coletivo, divisor para o movimento migratório feito pelo LSD, que saiu do ambiente científico para tornar-se combustível de transe generalizado da geração Flower Power, foi tema do livro O Teste do Ácido do Refresco Elétrico, clássico do chamado Novo Jornalismo, publicado por Tom Wolfe em 1968. No catatau, o repórter, notório por seus ternos brancos, narra uma sucessão imprevisível de aventuras tresloucadas vividas na estrada pelo grupo denominado Merry Prankters (em tradução livre, Festivos Gozadores). 

Liderados pelo escritor Ken Kesey, autor de Um Estranho no Ninho, romance vertido para o cinema por Milos Forman, no clássico filme protagonizado por Jack Nicholson, os Pranksters se reuniram em 1962, bem antes da ascensão do psicodelismo, para dar início a experiências embrionárias de uso coletivo e recreativo de LSD, em uma comunidade alternativa sediada em uma chácara em La Honda, na Califórnia.

Dois anos mais tarde, em 1965, quando os Beatles e os Rolling Stones ainda se consolidavam e quando a tríade tema desse texto – sexo, drogas e rock n’ roll – nem aventava desenhar o panorama melancólico de fim de década que culminou no tal “fim do sonho” decretado por John Lennon, autor de uma das faixas mais emblemáticas como signo de influência sobre o LSD, Lucy in The Sky With Diamonds, os Pranksters empreendem uma viagem literal e sem precedentes.

Em 1964, Kesey decide comprar um velho ônibus escolar fabricado em 1939. Faz nele uma série de pinturas psicodélicas e adaptações, como incluir um sistema de áudio para que os músicos que embarcassem na trupe pudessem “transar” um som.

Tendo o neologismo “furthur” como itinerário (um trocadilho entre as palavras “além” e “futuro”), municiado de muito LSD diluído em gotas acrescidas em litros de suco de laranja, Kesey caiu na estrada com os Pranksters. No volante do tresloucado coletivo estava ninguém menos de que o escritor Neal Cassady, autor de O Primeiro Terço e inspirador do personagem Dean Moriarty, de On The Road, a obra-prima de Jack Kerouac, ícone máximo da chamada geração beat.  

Esse drop out de Kesey, Leary e seus discípulos lisérgicos tinham um propósito bem definido: cruzar o máximo de cidades norte-americanas e identificar voluntários dispostos a realizar os chamados “acid tests” (daí o “teste do ácido” no título do livro de Wolfe). O simbolismo de um ônibus como transporte de sonhos potencialmente coletivos e inspirados pelos estudos radicais de Leary foi logo reverberado em canções que marcaram época, como Magic Bus (1967), do The Who, ou a edipiana The End (1967), do The Doors, em que o poeta e vocalista, Jim Morrisson, versa sobre certo ônibus azul de destino desconhecido – para alguns críticos musicais, uma sutil parábola sobre os jovens que partiam para a Guerra do Vietnã.

De hipster a hippie

O leitor mais atento às manifestações comportamentais da juventude das últimas décadas deve conhecer a conotação de chacota inerente ao termo “hipster”, geralmente atribuído a jovens barbudos com indumentária de brechó e afeitos a objetos anacrônicos, como máquinas de datilografar e óculos setentistas de armação retrô.

No entanto, a gênese desse epíteto nada tem de caricato. Hipster, na acepção original do termo cunhado pelo escritor e jornalista Norman Mailer em seu ensaio White Negro (que versa sobre a geração baby-boomer aficcionada por jazz e blues, perseguidora de certa “ginga” do gestual dançante e livre dos negros – daí o “hip”, de cintura) pode ser traduzido como: michê, proxeneta, gatuno, drogadito e traficante sazonal. Predicados que caíam como luva para o comportamento errático de Herbert Huncke.

Símbolo do autêntico hipster, Huncke introduziu o escritor William S. Burroughs ao universo soturno da heroína em 1944. Por meio do autor de Junkie, em que está presente como o protagonista Herman, Huncke também despertou fascínio em Jack Kerouac e no poeta Allen Ginsberg, dois dos maiores ícones da geração beat, que conheceram Huncke quando este era notório pela alcunha “Prefeito da Rua 42”, epicentro da escória junkie nova-iorquina do final dos anos 1940.

Kerouac e Ginsberg também eternizaram Huncke nas páginas de, entre outros, On The Road e Uivo. A despeito da delinquência incorrigível (passou 11 dos 81 anos na prisão), Huncke foi um intelectual empírico, cronista, memorialista e poeta respeitado por seus pares. De sua prosódia marginal surgiu a expressão ‘beat’ (abatido, exaurido, fodido), que batizou o movimento embrionário da contracultura.

Mas o que isso tem a ver com nosso tema central: sexo, drogas & rock n’roll?! Tudo e um pouco mais… A começar pelo fato de que o elemento “rock n’roll” da tríade jamais teria existido se não estivesse embrionariamente ligado à um dos gêneros musicais mais populares do século XX, o jazz, nascido do blues e que, em suas manifestações de vanguarda como o bebop e o hardbop, fez a trilha sonora da geração beat, também influenciada pelo comportamento de risco de grandes jazzistas, como John Coltrane, Miles Davis e Billie Holiday, que perigosamente flertaram com a heroína.

Além de ter contribuído para a derivação do termo hippie, os beatniks, com seu comportamento livre e progressista em relação a toda sorte de orientações sexuais, também foram decisivos para a difusão do chamado “amor livre’, um dos valores mais caros às manifestações contraculturais espalhadas ao redor do mundo, e que ganhou tração com o advento da pílula anticoncepcional, fármaco inspirador de uma inédita liberação das mulheres, que então reinventavam o movimento feminista.

Badtrips

Como sabemos, a dimensão inspiradora e transcendental tão difundida por artistas que foram notórios usuários de substâncias com elevado potencial de alteração da consciência nem sempre garantiu boas viagens. O chamado Clube dos 27, cujo nome faz referência ao trágico fato de diversos artistas da seara da música terem morrido precocemente aos 27 anos, dá suficiente dimensão de reincidentes badtrips ao relembrarmos de nomes já citados, como Hendrix, Joplin e Morrison, mas também de personagens mais contemporâneos, como Kurt Cobain, ex-líder do grupo Nirvana, e a cantora Amy Winehouse.

Um sobrevivente das décadas de 1970 e 1980, auge de sua dependência química em cocaína e heroína, Steven Tyler, vocalista do grupo Aerosmith tem um aforismo divertido para a conclusão desta reportagem com um toque de reflexão: “Sexo, drogas e rock n’roll: livre-se das drogas e você terá bastante tempo para os outros dois”.


Referência

Kern, E. (1969, 17 de outubro) Can it happen here? Life. 67(16):67-80.


Marcelo Pinheiro é jornalista e pesquisador musical: Desde 1998, atua como repórter e editor colaborando com veículos impressos e online como “Cenário”, “Elenco”, “FFWMag”, “Brasileiros”, “CULTURA!Brasileiros” e “Showlivre.com”. Vencedor do Prêmio Tim Lopes de Jornalismo Investigativo com uma reportagem sobre a exploração sexual de meninos em Fortaleza durante a Copa do Mundo de Futebol de 2014, também escreve sobre política, comportamento e sociedade.

1 Comentário

  1. Marcelo, parabéns! Gostei muito desse percurso pelos caminhos do LSD nas trilhas musicais e na contracultura do século XX, que interferem até hoje na política de drogas. Grande contribuição para a revista! Um abraço, Celi.

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