O analista demiurgo: do caos à voz do caso

Diva Reale

É antes do ópio que a minh’alma é doente

(Opiário, de Álvaro de Campos)

A literatura é, para mim, uma fonte de prazer que encontra no cinema o seu maior rival. Na elaboração deste artigo, não foi diferente.

Tudo começou a partir de conversas com Vitori em torno de seus estudos sobre o clássico de William Burroughs “Junky” (1950), estendido para elementos da biografia do escritor estadunidense, bem como da Geração beat de um modo geral. A ideia de que seria possível suscitar, a partir desse escrito, correlações e pontos de entrecruzamento com a clínica das toxicomanias, das adições a drogas, e com a psicanálise, foi o que motivou o nosso encontro. Foi assim que emergiu para mim a lembrança de um caso clínico, batizado aqui de Anônimo, sem que de início ficasse evidente quais poderiam ser os pontos de intersecção ou tangência.

Acreditávamos que esses pontos poderiam ser encontrados ao longo da elaboração deste processo de escrita. E, de fato, pouco a pouco algumas leituras acabaram por me levar a rever o filme Naked Lunch (1991), de David Cronenberg, com o qual acabei estabelecendo uma maior interlocução. Surgiu, então, um caminho que religa o caso clínico e o filme, bem como a necessidade de desmembrar o trabalho em dois artigos, que manterão uma forte interlocução.

Começarei por uma apresentação breve do caso de Anônimo. Na sequência, buscarei elucidar as razões pelas quais sua passagem por minha clínica tenha se dado à maneira de um cometa, configurando um problema comum na clínica das adições, sobretudo nos casos de maior gravidade: a baixa adesão ao tratamento. Farei algumas conexões com as ressonâncias trazidas pelo filme, com sua estética particularmente marcada pela presença do abjeto e pelas reações que este comumente provoca.

Finalizarei correlacionando alguns aspectos da biografia do autor, em particular aqueles envolvendo a morte da esposa, cujo caráter trágico ainda nos incita a fazer alguma elaboração.

Anônimo: adição a crack e o mergulho na sua própria interzone1

Um homem, de aproximadamente 40 anos, fez uma passagem muito rápida de menos de 03 meses, entremeados com internações curtas, decididas unilateralmente pelo paciente.

O trabalho terapêutico com Anônimo alternou acontecimentos num ritmo alucinado – que culminaram com internações e seu desligamento na última delas –, com momentos em que sua história pregressa foi sendo trazida aos poucos. Quando ele conseguia vir às sessões, produzia uma forte impressão de honestidade e seriedade, mesclada com um profundo sofrimento na sua forma de avaliar suas histórias de vida, presentes e passadas. Ele parecia realmente precisar de ajuda e, acreditei eu à época, que gostaria de ser ajudado!

Havia outra forma de contato onde as comunicações carregavam afetos e produziam intensos efeitos perturbadores. Essas comunicações ocorriam, frequentemente, quando ele estava sob efeito do crack, fosse ao telefone ou mesmo presencialmente. A forma dessas comunicações sugeria a presença de mecanismos de identificações projetivas maciças, num clima de intensa turbulência, sobretudo quando enunciava de forma indireta falas ameaçadoras contra si.

Em mim formou-se também um contexto contratransferencial de maior apreensão, após ele ter me contado como as complicações de um divórcio recente o tinham afetado muito dolorosamente, sobretudo pela presença de obstáculos judiciais que interferiam diretamente na sua relação com o filho pequeno.

Anônimo, como um cometa, deixou em seu rastro uma marca: uma dolorosa e cruel impossibilidade de criarmos juntos condições para sustentar um trabalho psicoterápico, que lhe permitisse manter-se vivo e funcional fora do ambiente protegido da internação.

Anônimo, como um cometa, deixou em seu rastro uma marca: uma dolorosa e cruel impossibilidade de criarmos juntos condições para sustentar um trabalho psicoterápico, que lhe permitisse manter-se vivo e funcional fora do ambiente protegido da internação. Anos depois, a frase de despedida da tumultuada última sessão fez parte de uma aula onde discuti formas de términos: “com você eu tive as melhores conversas de minha vida”. Ainda busco decifrar pela investigação psicanalítica da relação terapêutica, via exame da transferência e sobretudo da contratransferência, quais os sentidos possíveis que essa frase carregava. Se, do meu ponto de vista, de fato tivemos algumas boas conversas, noutros momentos fui capturada por afetos intensamente disruptivos.

O que inicialmente trouxe o caso de Anônimo, e que permanecera intrigante até que alcei esse caso para esta elaboração numa escrita, foram os momentos em que apareceram sua rejeição e repulsa franca à redução de danos. Essa rejeição convocou a necessidade de um trabalho elucidativo. Como alguém que admitia ser seu desejo ter podido terminar seu percurso inconcluso de estudos sociais poderia ter uma reação tão visceralmente contrária aos princípios contidos no paradigma trazido pela redução de danos à clínica? Não considerei, naquela época, que ele simplesmente poderia ter sido apresentado de forma distorcida e ideologicamente polarizada a essa forma de abordar as questões, que toma múltiplas formas na medida em que envolve os diferentes usos, em diferentes contextos, por usuários com distintos graus de vulnerabilidade.

Para este trabalho elegi apresentar Anônimo a partir de duas passagens que me surpreenderam pela resposta emocional intensa provocada em mim. Ambas ocorreram no momento do término da sessão, na saída do paciente, já em pé!

Numa primeira entrevista  

A primeira passagem ocorreu na primeira entrevista, no momento exato após nossa despedida. Ao virar-se de costas para ir embora, vislumbro um rasgo relativamente grande na parte de trás da calça, próximo às nádegas, deixando entrever a roupa de baixo. Tomo um susto, e experimento forte constrangimento e grande embaraço. Mas o que mais me intrigou foi que, além da surpresa e resposta emocional excessivas, soou ainda mais estranho o pensamento que veio em seguida, algo do tipo: “o que eu deixei de ver ao longo da sessão, o que me escapou que agora me pegou tão fortemente?”. E, complementando esse pensamento, frente a um sentimento desproporcional, uma frase ainda mais estranha poderia ser: “onde foi que eu errei…?”, seguida de uma tristeza profunda e de grande compaixão pelo garoto abandonado e mal cuidado. Imediatamente depois, ainda nos ecos imediatos desse momento, surgiram associações – aparentemente catastrofistas – com psicose, depressão grave e cracolândia!

Esta frase “onde foi que eu errei…?” é tipicamente enunciada por mães (ou também pensada e calada por pais) que se veem confrontadas com algo do filho que lhes causa um forte sentimento negativo e que, por culpa ou mesmo vergonha, se volta acusatoriamente contra si.

Aqui, creio ter pescado uma pista robusta de um componente que pode ter desempenhado um forte papel na dinâmica relacional que se estabeleceu entre nós. Esta frase “onde foi que eu errei…?” é tipicamente enunciada por mães (ou também pensada e calada por pais) que se veem confrontadas com algo do filho que lhes causa um forte sentimento negativo e que, por culpa ou mesmo vergonha, se volta acusatoriamente contra si.

Sigo elaborando o raciocínio clínico sobre esse momento com a hipótese [de introjeção dessa acusação de si] trazida pela história da relação de Anônimo com a mãe, particularmente enfocando tremendas brigas em sua adolescência. Ele se lembra de ter enfrentado reações emocionais de grande turbulência da mãe, que muitas vezes foram seguidas de rupturas que o marcaram profundamente. Talvez daí advenha o fato de que sobre a mãe não falamos quase nada, pois os efeitos dessa convivência rompida na adolescência permaneceram presentes em outras camadas de seu psiquismo, provavelmente com intensos afetos cindidos de sua consciência. Dessas dinâmicas inconscientes creio ter experimentado os efeitos na relação terapêutica, via identificações projetivas ou algo que chamarei de encenações de despedida, visto que creio terem sido performatizadas, coroando atos disruptivos associados ao consumo excessivo da droga de eleição, o crack. Ele abandonou por 03 vezes a continuidade do trabalho, partindo para internações abruptamente decididas, embora permanecesse ligado contratualmente a mim até a última das internações daquele período.

Um aspecto curioso contribuiu para que um certo tipo de clima na relação terapêutica fosse se estabelecendo. Em mais de uma vez reparei que ele não só reagia negativamente na hora que eu trazia uma ponderação positiva ou compreensiva frente a algo que ele recriminava fortemente em si, como também ele trazia na sessão seguinte uma atitude que parecia guardar nítida relação do tipo reativa ao aspecto por mim valorizado, agindo negativamente de maneira oposta àquela atitude apontada como positiva. Reagir destrutivamente a algo experimentado como um elogio ou apreciação positiva é algo sugestivo de uma dinâmica de oposição ao outro, que ganha maior relevância do que a coisa em si. Nessa dinâmica, ele está aprisionado ao outro, sendo que a relevância emocional dada à presença alheia se mede pelo seu esforço em se diferenciar por meio de uma oposição a esse outro.

Aos poucos foi-se delineando um aprisionamento de Anônimo a essa dinâmica. Ele parecia estar preso a uma posição resultante, existencial e sintomática, prenhe de dor, que se manifestava por discursos fechados, gelidamente impingidos com cargas de niilismo crudelíssimo.

Última sessão: fechamento

Assim chegamos à segunda passagem, por ocasião da última sessão. Em várias ocasiões ele afirmou, referindo-se a si mesmo, ser “muito pior” – neutralizando e transformando em equivocada minha abordagem compreensiva de certas situações em que ele se auto acusava ferozmente. Esta abordagem era sentida como um erro meu, uma avaliação equivocada sobre quem ele era! Nessa última sessão de encerramento, novamente no momento em que já estamos nos levantando para a despedida, experimento agudamente sentimentos e afetos maciços, intensamente conflitantes. Transcrevo anotações da época:

Na tumultuada última semana, num dos telefonemas, de dentro do quarto do hotel, Anônimo me disse: “pensei naquilo, naquela história do revólver, você sabe…, mas preferi me internar novamente, já. E, por isso, me despeço de você”.

Isso tudo aconteceu numa tarde lotada, entre uma sessão e outra sem intervalo, em que recebi 03 ou 04 telefonemas dele e da família. Foi por meio dessa trabalhosa comunicação que consegui amarrar uma última conversa-consulta de finalização, para o mesmo dia, ao final do expediente, visto que ele se internaria ainda naquela mesma noite. Ambos sabíamos que não fora possível criar condições para instituir um “tratamento em regime ambulatorial”, que pudesse viabilizar futuramente uma psicoterapia propriamente dita!

Intensidade maciça de dor e sofrimento, ameaça compartilhada de ruptura entre nós e ameaça de vida, numa vertiginosa oscilação entre voltar contra si ou contra mim sua dor e autodesprezo. Quando não era ele próprio o objeto de um ataque mordaz, ele se voltava contra mim, ao expressar seu curioso e especial desprezo pelo caráter laico da psicanálise.

O cume dessa situação da última sessão de despedida ocorre com ele já em pé, começando a vir em minha direção, pedindo, num tom de súplica contida, se ele poderia me dar um abraço – frente ao que, com um estranho e intenso sentimento e, por delicadeza, compelida a não poder dizer não, cedi. Nunca me emendei completamente desse sentimento, pois junto com a concessão do abraço tive um sentimento de ser uma pessoa terrível, voltando contra mim uma violenta culpa de ter sentido necessidade de rejeitar esse pedido, pela qualidade estranha do afeto expresso pelo paciente, enquanto o fazia. Tudo aconteceu em poucos segundos, mas a grande intensidade dos sentimentos que acompanharam a despedida tornou esse momento completamente presente quando a ele retorno. É preciso que eu esclareça que um aperto de mão, um beijo no rosto ou mesmo um abraço ocorreram comigo em determinadas circunstâncias, quando brotam fluidamente de uma certa coloquialidade e espontaneidade, quase sempre em resposta à iniciativa dos pacientes. Já nesse caso, o abraço obtido por meio dessa forma simultaneamente suplicante-invasiva, teve pouco a ver com uma simples despedida afetiva.

Esses afetos ocorreram nessa situação de adeus, configurando uma reedição de uma interação de despedida que já fora impactante anteriormente, num contexto onde o paciente ainda estava experimentando uma pororoca de respostas emocionais à presença dos efeitos de uma intensa sessão de intoxicação recente pelo crack.

A emergência em mim de um sentimento de culpa, surpreendente pela sua incomum intensidade, evocado por termos descritivos incomuns de autoacusação, como por exemplo “me sentindo abominável”, pedia uma elaboração. Esses afetos ocorreram nessa situação de adeus, configurando uma reedição de uma interação de despedida que já fora impactante anteriormente, num contexto onde o paciente ainda estava experimentando uma pororoca de respostas emocionais à presença dos efeitos de uma intensa sessão de intoxicação recente pelo crack. Ele viera direto da cena de uso para a sessão de encerramento e daqui iria diretamente para a internação. O pedido de abraço soava estranho, desafinado. Novamente, termos desmesuradamente fortes descreviam o sentimento diante da situação: uma forma falseada de docilidade que continha uma hostilidade abusiva. Primeiro por eu me rebelar e me repreender por fazer algo não genuíno, de maneira oprimida. Um desagrado comigo em experimentar sentimentos tão brutos, inexplicáveis, dadas as circunstâncias compartilhadas, por alguém que genuinamente me despertava compaixão e que despertara o desejo de poder tratá-lo. Muito mais acontecera naquela sessão além do que fora dito e reconhecido na consciência. A escrita dedicada ao caso é uma resposta a essa necessidade, congeladamente urgente, de elaboração frente a essas maciças trocas emocionais, via introjeções e capturas contaminantes da psique alheia com afetos intoxicantes.

Esse efeito profundamente dissonante pode ter acontecido justamente por conta de uma dor de despedida de algo bom, que não pôde ser mantido e retido junto a si. Os cortes e as mudanças abruptas desse momento se inscreveram na memória da analista. Quando Anônimo foi embora, ele deixou algumas interrogações ecoando.

Sobre a impossibilidade de permanecer em tratamento comigo

Se, por um lado, na despedida, Anônimo afirma que “tivera as melhores conversas da vida”, por outro ele produz, no momento da saída, um imbróglio que me introduz um grande desconforto. Ele gostaria que eu soubesse ou acreditasse que ele apreciara muito as nossas conversas. Ficava, assim, parecendo que o fato de ele não poder fazer um uso terapêutico da continuação dessas conversas, isto é, a impossibilidade de se engajar em uma psicoterapia não era devido a um problema intrínseco a elas. Creio que fiquei por muito tempo presa ao enigma do que considerei ser uma discrepância entre seu discurso fortemente pautado nos princípios que regem os 12 passos, a base terapêutica sobre a qual se apoiavam os locais onde ele costumava se internar nos últimos anos, e sua passagem por uma faculdade da área de humanas conhecida por uma sólida formação de pensamento crítico. Aliás, creio que ele não ficou alheio a esse pensamento, razão pela qual gostou das conversas que tivemos. Mas elas não puderam ser integradas como fonte potencial de esperança para trilhar um caminho de tratamento e alívio de seu sofrimento.

A captura na forma de pensar sua própria dependência à última droga de eleição – há poucos anos, o crack –, pautada no modelo fortemente moralista dos 12 passos, incluía a reprodução de uma hostilidade com aquilo que me colocava em outra chave: eu lhe fui apresentada pelo pai como sendo uma profissional que reconhecia e validava a redução de danos. E ele expressava um total desprezo pelas concepções consideradas irrealistas de que pudesse haver algum controle sobre o uso, acreditando que não haveria outro caminho que a abstinência. Importante salientar que tal apreensão de Anônimo estava mais ligada a um ponto sobre o qual ele podia tertuliar comigo, independentemente de eu ter feito qualquer proposta diretiva de adotar esta ou outra proposta como estratégia ou conduta fechada para ele.

Nunca tivera a experiência de que um paciente viesse até mim trazendo consigo tamanha hostilidade àquilo que inicialmente se tornara uma nova forma de enfrentar parte dos prejuízos que afetavam uma parcela de usuários de drogas com maior vulnerabilidade. A expansão e assimilação dos princípios que regem a redução de danos como algo potencial e efetivamente capaz de revolucionar a abordagem clínica das adições ao álcool e outras drogas foi algo que a passagem do tempo foi evidenciando. Eu havia estudado profundamente a perspectiva redução de danos (Reale, 1997), pois pudera testemunhar (e participar de) sua emergência no Brasil. Foi um privilégio poder participar da equipe que formulou a primeira pesquisa epidemiológica e intervenção junto à população de usuários de drogas injetáveis no final dos anos oitenta (MacRae, Reale, & Fernandez, 2020). Foi a primeira vez que tive contato em solo brasileiro com usuários de drogas em seu próprio contexto, fora de ambiente institucional de saúde. Era um tempo onde as Cracolândias ainda não haviam surgido, tampouco os CAPS! A força que emana desta experiência, cujos desdobramentos impactaram profundamente as políticas de drogas (sobretudo as políticas de saúde) configuram um campo cujas práticas permanecem até hoje um pomo de discórdia (Petuco, 2019) como objeto de disputas ideológicas, e acabam por imprimir ao campo da clínica não apenas uma ampliação de sua potência, como também tensões que nem sempre se restringem aos desafios de aprimorar seus usos terapêuticos. Os ecos desta polarização na clínica contribuíram para a necessidade de investigar melhor o que impediu Anônimo de poder se tratar comigo.

E aqui, também, Anônimo pôde contribuir para uma ampliação de minha experiência. Pois notei que um outro aspecto da dinâmica transferencial possivelmente se atualizou através da emergência de afetos difíceis, mantidos desde o período de grande turbulência na sua adolescência, que envolvera o pai divorciado da mãe precocemente. A reviravolta ocorrida na vida de Anônimo após seu divórcio certamente contribuiu para essa atualização.

Tardiamente elaboro: é provável que a vinda de Anônimo tenha sido uma “vinda oprimida”, obrigando-se a vir por razões extrínsecas ao seu interesse nesse tratamento comigo. Talvez no momento da despedida ele tenha me devolvido, isto é, colocado de volta em mim o sentimento de opressão que o obrigou a me procurar, para agradar (sem ceder) e não perder a ajuda que o pai se dispusera a dar.

Suas histórias pregressas, revisitadas, indicam que a impossibilidade desse tratamento vingar certamente também teve a ver com aspectos insuportáveis ou insustentáveis da relação com o pai, que intermediava, de forma não confiável, a sustentação financeira do atendimento privado. Esses tópicos não puderam ser pensados e conversados a tempo, visto que exigiriam uma confiabilidade para sua abordagem, que não pôde ser conquistada. Um clima em que a intensidade de afetos disruptivos predominou na maior parte dos encontros, em que o mostrado não deveria ser “disciplinado” pela nomeação: clima nada favorável a um pensamento reflexivo, capaz de elaborar o conjunto de acontecimentos e comunicações ocorridas, sobretudo por exigir uma presença mais ativa da interpretação. Acolher e interpretar, mesmo que esse segundo momento possa ou deva ser guardado pelo analista para si próprio, exige a capacidade de estabelecer o contato e a conexão, (r)estabelecendo uma distância psíquica capaz de permitir uma discriminação eu-outro. 

Anônimo deixou em mim a necessidade de elaboração desses sentimentos intensamente desconfortáveis, nascidos e inscritos em meu corpo nos poucos minutos derradeiros. Se pudesse escolher um nome para o principal sentimento organizador de suas angústias, diria que Anônimo padecia de uma profunda abjeção de si.  

Sobre o abjeto

Foi em Kristeva, em seu ensaio sobre a abjeção a que se refere o livro Poderes do horror (1982), que encontrei uma aproximação útil para edificar uma hipótese sobre os elementos psíquicos que contribuíram para amplificar o sofrimento de Anônimo. Para Kristeva, o que torna algo abjeto não é a ausência de limpeza ou de saúde, mas sim

aquilo que perturba uma identidade, um sistema, uma ordem. Aquilo que não respeita os limites, os lugares as regras. O intermediário, o ambíguo, o misto.  O traidor, o mentiroso, o criminoso em sã consciência, o violador sem vergonha, o assassino que alega salvar… Todo crime, por assimilar a fragilidade da lei, é abjeto, mas o crime premeditado, o assassinato acobertado, a vingança hipócrita o são mais ainda porque redobram e aumentam a exibição da fragilidade legal. […] A abjeção, em si, é imoral, tenebrosa, oscilante, suspeita: um terror que dissimula, uma raiva que sorri, uma paixão por um corpo que é vendido ao invés de ser abraçado, um devedor que vende (o credor), um amigo que o apunha-la pelas costas (Kristeva, 1982, p. 4)2.

Em Anônimo, a fala que buscava a máxima honestidade surgia no relato de atos intensamente condenáveis para si. Esse relato era feito como um ato de constrição frente aos atos de conspurcação ou profanação da dimensão sagrada do lar. Assim ele se sentia a respeito do uso do crack e consumo de pornografia, feitos dentro de sua casa, nos tempos que antecederam e culminaram com a separação. Daí vem a sua afirmativa: “sou muito pior”!

A sequência de acontecimentos deixou a sensação de que foi um erro a abordagem de acolhimento de seu sofrimento, trazendo uma visão compreensiva da instalação do sofrimento relacionado a sua história de vida, prenhe de sintomas que lhe renderam perdas significativas.

Uma hipótese: a viagem como uma odisseia regressiva em busca dos fragmentos de self perdidos

Para conduzir uma discussão a esse respeito, seria preciso incluir aqui a noção de regressão no contexto psicanalítico (Winnicott, 2000a) e sua relação com a contratransferência, em especial com o ódio (Winnicott, 2000b)3. Essa primeira aproximação com o texto de Winnicott Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto psicanalítico (Winnicott, 2000a) pode ser problematizada, tanto pela propriedade de se considerar que poderia ter havido uma regressão nesse período, quanto no sentido de questionar se o que aconteceu nessas 12 sessões poderia ser descrito como um contexto psicanalítico propriamente dito. Talvez uma descrição mais fidedigna do enquadre fosse considerar essas 12 sessões como estando mais próximas de um misto entre consultas psiquiátricas e de entrevistas preliminares, durante esse contato meteórico entre analista e paciente. Para o desenvolvimento mais substantivo de uma discussão deste tópico teríamos de fugir muito do escopo deste artigo. Vou me ater a uma breve discussão sobre a questão da regressão, e a viagem ou estado de intoxicação sob efeito da droga, correlacionando com uma hipótese de Olievenstein (Parada, 2019), e uma hipótese pessoal, partindo de minhas próprias observações clínicas.

Conforme Parada (2019), Olievenstein propõe que durante as primeiras viagens4 com alguns psicodélicos e, sobretudo a heroína, “o usuário atravessa, em estado quase onírico, fantasmas inconscientes dos mais recalcados pelos tabus de nossa sociedade. Assim sendo, sobretudo em suas primeiras experiências, com frequência o drogado viveria representações de incesto, morte, prazeres proibidos ou vergonhosos etc. Essas experiências deixariam marcas profundas na economia subjetiva dos dependentes, que voltam a se drogar tanto para reencontrá-las como para esquecê-las ou suportá-las” (p.89).

Este retorno à consciência, mesmo que alterada, seria responsável por produzir um efeito traumático, que exerceria este efeito de fascínio e repulsa, produzindo paradoxalmente a necessidade de a elas retornar para “reencontrá-las como para esquecê-las ou suportá-las”.

Estes conteúdos podem ser entendidos como emergindo de uma desorganização do psiquismo temporária, pelo efeito da substância, que permitiria uma suspensão da repressão de conteúdos reprováveis, retornando para e durante este estado de consciência alterado. Este retorno à consciência, mesmo que alterada, seria responsável por produzir um efeito traumático, que exerceria este efeito de fascínio e repulsa, produzindo paradoxalmente a necessidade de a elas retornar para “reencontrá-las como para esquecê-las ou suportá-las”. Uma espécie de efeito Conan Doyle5, de que o assassino sempre precisa voltar à cena do crime. Mas de qual crime estaríamos falando?

Em minha experiência como analista tenho encontrado na escuta de pacientes quando descrevem suas viagens algumas peculiaridades de temáticas e conteúdos que guardam relação ressonante com temáticas sugestivas de relevância na sua história subjetiva. Minha hipótese é que estes conteúdos emergentes têm especificidades com sua história subjetiva e por esse motivo despertam a necessidade de a eles retornar, o que configura um colorido com potencial de acionar algo da compulsão à repetição, como uma volta do paciente para pontos nodais da fratura, uma cena inconsciente de um crime lesa-subjetividade. A viagem pensada nestes termos segue um roteiro que consiste em visitar e revisitar infinitamente num looping os pontos de seu passado onde se albergavam situações enigmáticas ou emblemáticas que guardavam relação direta com aquilo que nele se estilhaçou. Nesta viagem de repetição o paciente também estaria sendo impulsionado a reencontrar ou reeditar o momento da fratura do espelho, recolhendo os fragmentos do espelho partido (Olievenstein, 1985, p.83), que podemos alternativamente chamar de fraturas narcísicas.6

Em suma proponho que a repetição típica dos estados de dependência à droga se estabelece também pela busca da viagem como forma de revisitar estes pontos.

Mas poderíamos relacionar com a questão da regressão? Consideremos a regressão nos termos propostos por Winnicott:

[…] é inútil utilizar o termo regressão toda vez que nos deparamos com um comportamento infantil num relato clínico. O termo regressão acabou dando origem a um significado popular que não precisamos adotar. Quando falamos de regressão em psicanálise, supomos a existência de uma organização egoica e uma ameaça de caos (grifo meu). Há muito que estudar aqui sobre o modo como um indivíduo armazena memórias e potencialidades. É como se houvesse uma expectativa de que surjam condições favoráveis que possibilitem a regressão e ofereçam a oportunidade para a retomada do desenvolvimento que havia sido inicialmente impossibilitado ou dificultado por falha do ambiente.

(Winnicott, 2000a, p. 378)

Quero enfatizar aqui justamente a ideia de uma organização egoica bastante frágil, bem como a presença de uma ameaça ao caos que, no caso dos usuários, sobretudo os que insistem no uso pelo tempo suficiente para que o estado dependente se instale, é algo paradoxalmente buscado! Minha hipótese é que justamente o encontro com o produto-droga, e seus efeitos na viagem propiciam justamente aquilo para o qual já havia “uma expectativa de que surjam condições favoráveis que possibilitem a regressão”.

O temor e a busca do reencontro com o caos, é propiciado e defendido pelo controle onipotente propiciado pelo uso da droga na viagem, supostamente em um experimento controlado: a cada viagem compra-se um ticket para um roteiro onde um certo tipo de loucura será visitado.

Portanto, em uma abordagem complexa, multifatorial, em que não se privilegia a priori nenhum modelo de entendimento etiopatológico, não é só a busca do elemento prazeroso que os efeitos psicofarmacológicos da droga propiciam que continua movendo a busca da droga: há também um elemento subjetivo, ligado a formas de abertura da consciência para outros estados ou, como querem alguns – profissionais de saúde mental não psicanalistas –, que seja uma outra forma de acessar o inconsciente. Aqui o termo inconsciente é usado num sentido mais descritivo de oposição à consciência, e menos relacionado às formas descritas inicialmente por Freud e expandidas contemporaneamente por outros analistas para outras formas não circunscritas ao inconsciente constituído pela repressão. 

Trago a ideia olievensteiniana onde já há uma certa motivação inconsciente ainda que traumática, que torna a repetição da viagem dos toxicômanos mais do que uma simples compulsão induzida psicofarmacologicamente, ou mesmo pela relação de objeto do tipo fetichista, própria dos fenômenos do registro da compulsão à repetição, mas que há uma verdadeira odisseia dessa busca ontológica de encontrar uma solução para a cisão do self, para a perda de si-mesmo, retornando ao(s) ponto(s) que assinala(m) os motes daquela ruptura arcaica.Há uma necessidade, que não pode ser reconhecida como um gesto de esperança, e que nem mesmo chega a tornar-se consciente, de que algo possa acontecer numa dessas visitações, algo que possa colocar em movimento situações congeladas. E pelo seu caráter repetitivo e compulsivo, tais visitações podem trazer dois sentimentos que correm em paralelo: fascinação e abjeção.

Voltando ao Anônimo, os impactos e as sucessivas interrupções abruptas encenados naquele curto período impediram o estabelecimento de um caminho restitutivo de alguma confiança em si, no qual pudesse encontrar o sentimento de ser alguém que poderia refazer sua vida. Se pensamos na história da relação turbulenta com a mãe, sobre quem foi taxativo e falou uma única vez – “era uma histérica, não tinha quaisquer condições emocionais para cuidar de mim na adolescência com o uso de drogas” –, Anônimo poderia, transferencialmente, precisar ser capaz de me enlouquecer e, assim sendo, estaria buscando o descontrole, a tempestade explosiva na relação. Como eu não ofereci a repetição buscada da relação com a mãe em tese descompensada, ele encontrou contenção, pois eu segui fiel ao esforço de instituir as condições de trabalho para que uma psicoterapia pudesse vir a ocorrer. Sobrevivi7, em alguma medida, a vários desafios lançados ao trabalho. Por exemplo, fui notificada de cortes sumários de meus honorários, no segundo mês, sem que houvesse condições para sua reversão, que foram absorvidos por mim. A delicada situação de dependência financeira de Anônimo, para quem seria impossível arcar pessoalmente com os honorários, a menos que fossem recalculados num valor simbólico, recolocou o problema temporariamente para ser avaliado em um outro momento. Os componentes de participação da interferência do pai, reeditando o conflito edípico de um casamento rompido precocemente, foi outro componente que tornou ainda mais disruptiva a situação.

 Revendo hoje a repetição das internações feitas por Anônimo, creio que elas podiam indicar menos uma desconsideração àquilo que vínhamos tentando fazer juntos, e mais a expressão da certeza de Anônimo de que não contaríamos com recursos que pudessem sustentar nosso trabalho conjunto. Essa pode ter sido, talvez, a principal razão naquele momento do sofrimento de Anônimo para sua conclusão de que, por melhor que fossem as conversas que tivemos, elas não poderiam virar uma psicoterapia de fato. Anônimo precisava seguir em frente. Não havia espaço para mudar seu plano de cura. Não pude oferecer o que ele buscava. Restava a necessidade de punir e expiar seus pecados, e ele partiu em busca de seu caminho para honrar sua necessidade de expiação.

Ressonâncias associativas: Anônimo, Burroughs e os destinos da abjeção

No começo deste artigo, indaguei-me sobre quais poderiam ser os pontos associativos trazidos à baila pelo caso de Anônimo e as conversas sobre Burroughs, sobre o livro Junky e sobre o filme Naked Lunch. O tema da abjeção foi o ponto de convergência encontrado. Ambos, filme e a passagem meteórica de Anônimo, produziram em mim um impacto que permaneceu intacto. Em relação a Anônimo, esse impacto gerou as condições para que a escrita deste artigo se impusesse e recebesse alguma elucidação, como pudemos ler acima.

Quanto ao filme, assistido próximo de seu lançamento em 1991, nunca teria me reaproximado dele: lembrava-me vagamente, sobretudo do incômodo que deixara. Ao voltar a assisti-lo, reencontrei uma atmosfera desagradável, própria do sentimento de abjeção depositado e adormecido muitos anos atrás. Não fosse a iniciativa de Vitor, certamente ele permaneceria assim, adormecido. 

Reproduzo propositadamente um trecho de crítica ao livro, de um autor não especializado em literatura, criador do site de críticas de filmes, HQs e cultura pop Formiga Elétrica:

Entre doses mastodônticas de drogas e as outras atividades marginais pelas quais já era conhecido, Burroughs escreveu freneticamente sem a menor preocupação com estruturas formais . O resultado é uma obra que não existe para ser assimilada como a maioria das pessoas espera. Entregar-se a essa leitura exige a disposição de deixar-se levar pelos sentidos, pura e simplesmente, como se estivéssemos sob o efeito de alguma droga. Quaisquer interpretações pessoais da obra virão por esta postura (se vierem), sem tentar decifrá-la conscientemente. O motivo disso é que Burroughs buscou desconstruir o próprio conceito da linguagem, evidenciando as limitações da própria com a fragmentação e rearranjo aleatório. É através disso que ele cunha o termo Interzona, designando uma área de realidade mais profunda, que a maioria das pessoas não enxerga.

(Fontana, 2018, grifo meu)

Embora essa afirmativa de Fontana entre para o conjunto heterogêneo de recepção que o livro produziu – fortemente negativa ou fortemente positiva –, seria no mínimo controverso dizer que houve uma falta de preocupação com as estruturas formais da escrita. Afinal, o livro é considerado por estudiosos da literatura uma obra-prima (Harris, 2003), pois nele foi forjado um novo estilo literário, o estilo cut-up! Fora esse ponto controverso, a apresentação de Fontana é muito sugestiva de sua percepção de que algo no livro não permite uma apreensão que autorize um uso da racionalidade e do intelecto para sua apreciação. Ele sugere ao leitor do site que tenha a disposição de deixar-se levar pelos sentidos, pura e simplesmente! O filme, por sua vez, deu forma ao asqueroso, onde gosmas, sangue e uma voz pérfida dão às criaturas monstruosas uma presença acentuada do sentimento de abjeção, que pode cegar e afastar o espectador.

Sobre essa forma de escrita denominada cut-up, não poderia descrevê-la melhor, pois precisaria me afastar demasiado daquilo que me propus neste artigo, mas ela compõe um livro escrito em pequenos esquetes, chamados por Burroughs de routines, quenão guardam entre si uma organização linear, não mantendo nenhuma relação com formas comuns como contos ou crônicas, sendo que o término do livro não oferece qualquer amarração ou esclarecimento sobre o conjunto (Harris, 2003).

Ora, esse caráter incognoscível da obra corresponde em boa medida ao efeito do desvanecimento da capacidade de arrazoar da consciência, algo comum no aparecimento do sentimento de abjeção, que produz uma forte repulsa, o oposto do movimento necessário de permanecer próximo de algo sobre o qual nos dispomos a refletir.

De um dos maiores estudiosos da obra de Burroughs veio este comentário sobre Naked Lunch: “Norman Mailer disse que Naked Lunch ‘é absolutamente fascinante porque me leva a lê-lo mais e mais’, mas o oposto também é verdade: sou atraído a lê-lo mais e mais porque é absolutamente fascinante, porque nunca consigo compreender sequer a verdade que nunca consigo compreender” (Harris, 2003, p. 217, tradução nossa). Ora, esse caráter incognoscível da obra corresponde em boa medida ao efeito do desvanecimento da capacidade de arrazoar da consciência, algo comum no aparecimento do sentimento de abjeção, que produz uma forte repulsa, o oposto do movimento necessário de permanecer próximo de algo sobre o qual nos dispomos a refletir. O fascínio e o nojo se complementam, em sua oposição. Tal como é universal a atração que as pessoas experimentam ao flagrarem um corpo estendido no asfalto! Para alguns, é quase impossível não se aproximar para olhar de perto, mesmo que antecipem que o que poderá ser visto possa ser penoso e poderá causar uma forte comoção.

Três passagens colhidas do verbete William S. Burroughs na Wikipedia explicitam a relação do autor com a sua própria escrita. A primeira compila diferentes citações que corroboram a interpretação de Burroughs sobre a forma cut-up, o que revela um outro aspecto bastante marcante dos últimos anos de sua vida e que envolve sua relação com ocultismo e o interesse por aspectos mágicos:

Burroughs era inabalável em sua insistência de que sua escrita em si tinha um propósito mágico. Isso foi particularmente verdadeiro quando se tratou do uso da técnica de corte. Burroughs estava convencido de que a técnica tinha uma função mágica, afirmando que ‘os cortes não são para fins artísticos’. Burroughs usou seus cut-ups para ‘guerra política, pesquisa científica, terapia pessoal, adivinhação mágica e conjuração’ – a ideia essencial é a de que os cortes permitiriam ao usuário ‘quebrar as barreiras que cercam a consciência’.

(Wikipedia, verbete William S. Burroughs)

A segunda passagem nos permite conhecer um pouco do que o próprio Burroughs nos diz a esse respeito:

Eu diria que a minha experiência mais interessante com as técnicas anteriores foi a percepção de que quando você faz cut-ups, você não consegue simplesmente justaposições aleatórias de palavras: elas significam algo e, frequentemente, esses significados se referem a algum evento futuro. Eu fiz muitos recortes e depois reconheci que o recorte se referia a algo que eu li mais tarde em um jornal ou livro, ou algo que aconteceu […] talvez os eventos sejam pré-escritos e pré-gravados e é quando você corta linhas de palavras que o futuro vaza.

(Wikipedia, verbete William S. Burroughs)

A busca efetiva de quebrar uma organização formal da escrita discursiva e, ao que parece, de condições de escrita sob o efeito de substâncias psicoativas que favoreçam a desorganização do encadeamento semântico-gramatical, é reconhecida e tem uma interpretação do próprio autor quanto à sua finalidade. Uma hipótese que trago aqui traz à baila é o impacto da natureza criminosa do acidente fatal envolvendo sua esposa Joan, ocorrido em 1951. Tanto por razões externas quanto internas, os afetos frente a esse episódio parecem ter conjurado uma necessidade da escrita, ao mesmo tempo que exigiam que a nomeação direta dos acontecimentos precisasse ficar de fora, deslocada ou deformada. Ambos os livros, Junky (1953) e Naked Lunch (1959), foram publicados após a morte da esposa. Assim, podemos imaginar a escrita de Naked Lunch, movida por um complexo conjunto de motivações, efeitos do encontro de afetos e rupturas existenciais (envolvendo sua própria prisão, e posterior soltura e mudança de país) e um estilo marginal de vida do autor, que parece não se distanciar das narrativas que já se encontravam colocadas em Junky, envolvendo experiências limites com o consumo de drogas.

Não disponho no momento de condições para levar a cabo uma investigação que permitisse encontrar embasamento para estabelecer correlações mais precisas entre esses fatores. Como analistas, podemos afirmar que a necessidade de elaborar o acontecimento é algo imperativo, e sabemos, pelos próprios autores, quando falam do seu processo de tornar-se escritores, que a escrita é um poderoso meio de elaboração. Podemos dizer que Burroughs, com a ajuda de Ginsberg, se tornou um escritor, o autor de Junky, tendo seu primeiro livro publicado nesse momento. E, paradoxalmente, haveria também nesse momento uma impossibilidade de tratar o assunto da morte da esposa de uma forma que pudesse ser incriminadora, além do fato de que ele poderia estar simplesmente esbarrando em áreas inacessíveis para si, do ponto de vista daquilo que permite ao escritor construir narrativas convencionais. O uso de drogas maciço que permeia o processo da escrita, além de também fazer parte da trama em Naked Lunch, já surgira anteriormente à trágica morte da esposa, como parte dos escritos e cartas que, posteriormente a esse evento, compuseram o manuscrito do Junky e deram origem à primeira versão publicada.

Foi nas conversas iniciais com Vitor que pude fazer essa recomposição da sequência da escrita e de seu destino pareado ao trágico acontecimento. Houve a menção de que a versão inicial do livro tinha uma ligação a cartas trocadas com Allen Ginsberg, que soube também ser um verdadeiro agente literário para Burroughs, Kerouac e outros membros do grupo beat. A presença estratégica dos jovens amigos escritores em algumas cenas iniciais do filme de Cronenberg deu origem à impressão de uma força constitutiva do pertencimento neste círculo de jovens amigos, decisiva para a constituição dos elementos do self de Burroughs que deram origem ao nascimento do escritor.  

Num terceiro trecho extraído do mesmo verbete William S. Burroughs na Wikipedia, o autor reconhece publicamente a importância da morte da esposa para tornar-se um escritor:

Eu sou forçado à terrível conclusão de que eu nunca teria me tornado um escritor, a não ser pela morte de Joan, e nunca teria uma compreensão da extensão em que este evento tem motivado e formulado a minha escrita. Eu vivo com a ameaça constante de posse, e uma constante necessidade de escapar da posse, do controle. Assim, a morte de Joan trouxe-me em contato com o invasor, a Alma Suja, e manobrou-me para uma longa luta na vida, em que não tive escolha a não ser escrever a minha saída dela.

(Wikipedia, verbete William S. Burroughs)

Para poder estabelecer os sentidos que essa afirmativa pode suscitar, reitero que seria necessário seguir pesquisando sobre o autor, sobre sua vida e sua obra. Fica a sugestão. No entanto, posso dizer que não foi por acaso que Cronenberg se interessou por filmar o infilmável: diretor conhecido por uma filmografia em que a marcante presença de conteúdos perturbadores o faria digno do apelido de mestre do abjeto.

Na adaptação livre do livro, Cronenberg alcançou uma narrativa que nos remete, simultaneamente, aos filmes policiais noir dos anos 50 e a um clima scy-fi/alucinado/onírico-delirante! No filme, o caráter mais francamente alucinatório-delirante se instala após a morte da esposa. É na máquina de escrever-inseto, com o ânus-falante às costas – constructo do objeto-imagem-alucinação monstruosa – que estão colocadas as falas insustentáveis como discursos de humanos, exercendo uma operação de borramento e deslocamento da autoria pensante da ação para um território fantástico ou scy-fi. O roteiro do filme cria um clima que fica a meio caminho de uma realidade fantástica e de uma guerra fria, cunhando uma trama de espionagem que costura atos de violência e de uma sexualidade homossexual em uma estética de horror-queer.

No próprio filme foi incluída a presença de dois jovens amigos escritores que acompanham o personagem principal também escritor William Lee8 e o estimulam a não desistir da escrita, em que pesem os obstáculos que se apresentam com seu instrumento de trabalho, que ganhou vida e se transformou mais de uma vez em objetos monstruosos de criaturas imaginárias. Novamente aí se inscreve o duplo efeito de fascínio e nojo, ou mesmo fascínio e horror, que inscreve o cinema de Cronenberg como sendo do estilo de horror corporal, englobado no conceito de New Flesh: A cosmovisão de horror de David Cronenberg, desenvolvido por Lobo em sua dissertação de mestrado (2016). Mas isso é assunto para um outro momento.

A conclusão do artigo se apresenta a mim como confirmando o acerto do caminho tomado pela revista ao trazer o tema “Sexo, Drogas & Rock N’ Roll”. Sinto que fui induzida, pelas minhas apetências, a adotar uma tradução transsemiótica da escrita para o filme, numa leitura psicanalítica em que o caso clínico se beneficiou da elucidação trazida pelo processo elaborativo da escrita do artigo. O achado sobre a abjeção foi o estímulo e o resultado do convite feito por Vitor, ao compartilhar sua paixão pelo livro Junky. O valor da produção cultural da geração beat fez-me enfrentar, para o benefício da ciência, a repulsa que nunca deixou de existir em mim pela estética do horror corporal presente no filme. Creio que a força que emana da literatura produzida por Burroughs, um escritor-junky explícito, permanece viva e já deu origem a uma ideia para um próximo trabalho, já em estado de gestação. Tenho a convicção de que ainda poderá render, aos apaixonados pela clínica das toxicomanias ou das adições, muita inspiração para seus estudos.


[1] Termo que se refere a um lugar imaginário, ainda que situado geograficamente, e para o qual a trama do filme Naked Lunch (1991, dir. David Cronenberg) migra, a partir do momento em que se institui fortemente um clima onírico, alucinatório e delirante na história.

[2] Tradução de Allan Davy Santos Sena.

[3] Este segundo aspecto será abordado num próximo trabalho ainda em preparação.

[4] Chama-se de viagem aos estados de intoxicação produzidos pela droga.

[5] Escritor e médico escocês que se tornou famoso pela criação de seu inesquecível personagem o detetive Sherlock Holmes, um ícone do gênero de romance policial.

[6] Esta ideia está impulsionando o preparo de um novo texto agora para um simpósio dedicado ao pensamento clínico de Winnicott.

[7] Termo usado no sentido dado por Winnicott, em que as emoções e atitudes adotadas pelo analista não sejam resultado apenas de reações pelas provocações sofridas.

[8] Nome usado por Burroughs na primeira edição de Junky, onde ele escolhe Lee, o nome de família do pai.


[i] Este artigo não teria saído se não fosse pelas conversas em torno do convite de Vitor para acompanhá-lo na aventura da escrita sobre Junky, a literatura beat e a clínica da dependência de drogas. Quis a imersão na investigação posta em jogo que o processo da escrita exigisse a transformação em dois artigos correlacionados parcialmente. Deixo meus agradecimentos ao Vitor que ao trazer seu apaixonamento pelo livro Junky despertou a faísca que gerou o ímpeto para esta pequena contribuição a esta edição da Revista Quimera. E incluo meus agradecimentos a Jorge Artur C. Floriani que nestas mesmas conversas trouxe valiosas informações sobre os beats que forneceu pistas para as hipóteses que alinhavamos em torno da participação e pertencimento de Burroughs no movimento, articulando sua relação com Allen Ginsberg, os livros Junky e Naked Lunch e a trágica morte de sua esposa.


Referências

Felix, J. C., Ponte, C., & Durão, F. A. (2011). Da dialética da intoxicação em Naked Lunch. Terceira margem, 15(24), 85-107. https://revistas.ufrj.br/index.php/tm/article/view/10935

Fontana, D. (13 de fevereiro de 2018). Almoço Nu é indefinível e incompreensível (no sentido consciente). Formiga elétrica. https://formigaeletrica.com.br/livros/almoco-nu-desconstruindo-tudo/

Harris, O. (2003). William Burroughs and the Secret of Fascination. Southern Illinois University Press.

Kristeva, J. (1982). Powers of horror: an essay on abjection. New York: Columbia University Press.

Lobo, R. S. G. (2016). New Flesh: a cosmovisão de horror de David Cronenberg. (Dissertação de Mestrado). Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.

Macrae, E., Reale, D., & Fernandez O. (2020). Intervenções e pesquisas pioneiras em redução de danos. In: Medeiros, R. P., MacRae, E. & Adorno, R. C. F. (orgs.). A complexidade da questão das drogas: ideias, utopias e ações. Salvador: EdUFBA.

Olievenstein, C. (1985). O destino do toxicômano.São Paulo, Almed.

Parada, C. (2019) Claude Olievenstein, o “velho guerreiro” da toxicomania: Leitura e descoberta.  In: Reale, D; Cruz, M. S. (orgs] Toxicomania e Adições: a clínica viva de Olievenstein, São Paulo, Benjamin Editorial.

Petuco, D. (2019). O pomo da discórdia? Drogas, Saúde, Poder. Curitiba, Editora CRV.

Reale, D. (1997). O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade. (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.

Winnicott, D. W. (2000a). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto psicanalítico. In: Winnicott, D. W. Da Pediatria à Psicanálise. Textos escolhidos.  Rio de Janeiro, Imago.

Winnicott, D.W. O ódio na contratransferência. In: Winnicott, D. W. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro, Imago.


Diva Reale é psiquiatra/psicanalista, Mestre em Medicina Preventiva pela FMUSP. Estagiária Hospital Marmmotan/Paris. Concepção/coord. Geral d’O Barato no divã. coord. cursos O Barato no divã: a clínica em contexto, e O Barato no divã: especificidades da clinica, Instituto Sedes Sapientiae.  Fundadora do grupo ABRAMD-clínica, coord. de 2011 a 2014. Organização livro Toxicomania e adições: a clínica viva de Olievenstein [2019]

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