Entrevista com Andrea Domanico

Esta entrevista com Andrea Domanico ocorreu no mês de julho deste ano, em meio a pandemia de COVID-19, por meio virtual.

Andrea é psicologa e psicanalista, uma das pioneiras do trabalho de Clínica Ampliada e Redução de Danos no Brasil, participou das primeiras ações de prevenção à transmissão de infecções em usuários de drogas injetáveis e é co-fundadora do Centro de Convivência é de Lei.

Possui graduação em Psicologia pela Universidade Paulista (1990), mestrado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001), doutorado em Ciências Sociais – Antropologia Urbana, pela Universidade Federal da Bahia (2006), e pós doutorado em Enfermagem Psiquiátrica pela Universidade de São Paulo (2017).

Atua em pesquisas relacionadas à Antropologia Urbana com pesquisa em cenas de uso de drogas, além de temas relacionados com psicologia geral, social e clínica, redução de danos, aids, hepatites virais, tuberculose, prevenção, drogas, neurociência. É professora visitante na pós graduação em Neuropsicologia e em Psicologia Clínica de Adultos na Universidade Anhembi-Morumbi e professora na graduação de Psicologia na UNICID, além de psicóloga clínica, social e supervisora de psicologia.

A sigla AD. antes das respostas se referem à entrevistada

Demais siglas:

RD = Redução de Danos

HIV = Vírus da Imunodeficiência Humana

UD = Usuários de Droga

UDI = Usuários de Droga Injetável

AIDS = Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

MS = Ministério da Saúde

PROERD = Programa Educacional de Resistência às Drogas

QUIMERA Sabemos que o início da RD no Brasil, assim como em outros lugares pelo  mundo esteve bastante atrelado com prevenção às doenças transmissíveis, queria escutar de você como foi seu ingresso nesse campo, se já eram duas coisas atreladas desde o princípio  ou um interesse levou ao outro e como vê a aproximação destas duas questões.

AD. A RD no Brasil se inicia entre um grupo de profissionais que vão trabalhar para evitar a transmissão do HIV, é diferente da RD que surge na Holanda quando um grupo de UD já estabelecido se organiza e pede um programa de troca de seringas. Aqui não foi assim. Aqui começou com Fabio Mesquita¹ e então, em 1993, tivemos uma grande reunião em Florianópolis em que o MS anunciou que iria financiar projetos que trabalhassem com UDI para prevenir AIDS. 

Ainda não tínhamos a teorização da Clínica Ampliada, nos termos clínicos, mas começamos a atender pessoas em um trabalho quase que emergencial. Era uma época de pandemia com um grande número de pessoas se infectando com o HIV sem saber. 

Assim, entro na RD para trabalhar especificamente com troca de seringas. Acontece que como vinha dessa formação de base psicanalítica e me aproximando de Winnicott, a RD passa a fazer muito sentido na prática. Como você vai atender uma pessoa que faz uso de substâncias sem lidar com as outras questões, como o que a levou a usar drogas de fato? Será que seu problema é a droga mesmo ou ela está entrando aí como uma forma de resolução? 

A RD se inicia no Brasil como uma grande estratégia de prevenção, mas também vai surgir por um grupo de técnicos, de teóricos, como uma alternativa ao tratamento das pessoas que fazem uso de substâncias, como uma maneira de se olhar a situação de uso de drogas. 

No meu ponto de vista, isto encaixa bastante com a teoria de Winnicott, quando ele diz que temos de olhar o ambiente, a pessoa e aquele conflito que a angustia. A RD segue a referência de Zinberg², que na década de 80 diz que devemos observar a droga, o indivíduo e o ambiente. 

Assim, a RD aparece como estratégia de prevenção e vem se tornar o que chamamos hoje de apologia ao cuidado ou uma construção da autonomia em relação ao uso de drogas. Não temos mais dito nem prevenção ao uso de drogas, mas construção de autonomia, educação para drogas. Porque prevenção é uma palavra ruim, tem um significado de evitar; e nós não conseguimos evitar as questões relacionadas à droga. Podemos até evitar o uso, mas não podemos evitar que as pessoas vejam, que as pessoas falem, que elas circulem em ambientes que exista a droga. 

“Assim, a RD aparece como estratégia de prevenção e vem se tornar o que chamamos hoje de apologia ao cuidado ou uma construção da autonomia em relação ao uso de drogas.”

No que tange a complexidade daqueles que atendemos hoje, ao paciente que vem com uma demanda de uso de substância vamos de fato oferecer alternativas para pensar, com ele, o que ele quer: parar de usar, administrar seu uso, entender o que está acontecendo…

E nessa complexidade os pacientes refletem e trazem perguntas, como “se podem vir a sessão se usarem drogas”. E podem vir sim para a sessão! Talvez não seja possível trabalhar algumas questões, mas é preferível que use e venha falar sobre isso do que faltar, não aparecer mais. Claro que muitas vezes com um paciente alcoolizado não dá para fazer grandes interpretações. Mas há de se entender, quando o paciente chega alcoolizado, o que ele está tentando lhe dizer. 

QUIMERA Isso que você traz é bastante interessante, pensando no seu trabalho em diversos settings. Como você percebe essa questão da escuta psicanalítica no trabalho de campo, nas cenas de uso? São coisas separadas para você ou há uma posição como analista nesse lugar do campo? São feitas intervenções com pessoas intoxicadas?

AD. Depende do que você está fazendo no campo. Se você está em um trabalho de RD, de educação para o uso, é uma coisa. Você vai discutir sobre como que usa a droga, como deixa de usar, vai dar insumo, explicar como usa o insumo. 

Se você vai para o campo para fazer um trabalho de plantão psicológico, ou de plantão de bad trip, é outro tipo de intervenção. Obviamente se estou na rua, fazendo uma ação de distribuição de preservativos, e uma pessoa dissocia, se posso, vou puxá-la de lado, conversar e encaminhar. Mas não é esse o objetivo. 

Eu consigo fazer isso de uma maneira clara porque faz 30 anos que trabalho com isso. Atender na rua, fazer a escuta na rua, fazer o que o Winnicott chama de setting ampliado, também pressupõe acordos. Acordos de escuta, de sigilo, de que vai ajudar a pessoa a encontrar alternativas para os problemas atuais. Esse tipo de atendimento pode ser feito em poucas consultas, como foi comum para mim na pandemia, com trabalhos fechados de 12 sessões em que se faz um socorro focal, direcionado. Mas com uma escuta psicanalítica, olhando para o inconsciente, para questões mais profundas. E no final pode se indicar um encaminhamento, uma procura ao CAPS ou sugerir que seja um momento de dar um tempo nas drogas. 

A Clínica Ampliada que surge com a RAPS nos ajuda nessa compreensão quando diz que o ambiente, a rua, também pode ser um setting. Ela pode se configurar como setting quando você lhe dá um limite. O setting é um limite. Organiza-se, diz “aqui ninguém vai vir que é particular, estou conversando só eu e ela”; é possível fazer. Mas é também muito importante ter a calma de dizer quando não é possível. Se a pessoa chega muito intoxicada, nós a acolhemos, escutamos, damos uma água, mas não tomamos decisão nenhuma. 

QUIMERA Um dos projetos mais importantes, até hoje, no âmbito do cuidado e acolhimento aos frequentadores da cena de uso da Luz, é o Centro de Convivência “É de Lei”. Você teve e ainda tem participação central na história desse projeto. Pode falar um pouco da idealização do “É de Lei” e da história de sua construção? E desta singularidade em ser um Centro de Convivência?

AD. Eu e Cristina Brites³ trabalhamos em um projeto ligado a uma ONG de prevenção a AIDS. Era um projeto de troca de seringas para UDI, na região do Brás e na Penha e começamos a acessar e contratá-los para trabalhar conosco como Redutores de Danos. Eles passaram a frequentar a entidade, mas, como eram UD extremamente estigmatizados, negros, magros, marcados por suas injeções, com HIV, isso incomodou algumas pessoas e nos foi ordenado não nos reunir mais com eles no local.

” Surgiu a ideia de um Centro de Convivência, em que eles poderiam conviver com seus iguais, nós entre nós, drogado com drogado falando de droga. Um espaço em que podemos estar com as nossas especificidades e nos proteger.”

Decidimos, então, sair  e discutimos com os usuários sobre isso. Surgiu a ideia de um Centro de Convivência, em que eles poderiam conviver com seus iguais, nós entre nós, drogado com drogado falando de droga. Um espaço em que podemos estar com as nossas especificidades e nos proteger. 

O princípio era simples, e continua o mesmo. Era um espaço na Rua 24 de maio ao lado da Galeria do Rock, na Galeria Presidente, funcionava todo dia das 14 às 20h, em que não era permitido usar drogas, para a convivência de usuários de drogas, para falar sobre drogas e estar com usuários de drogas. Então virou uma referência, como um lugar em que todos se identificam como usuários de drogas na ativa.

QUIMERA Você já falou da RD como um jeito de olhar o campo, de um ponto de vista ético, mais do que uma estratégia de prevenção. Pode falar, nestes diferentes campos, se há uma diretriz que se segue, se é muito diferente a abordagem, o estar em um ambiente de festas e nestes outros settings que você trouxe?

AD. Eu penso que o princípio é um só: a construção da autonomia da usuária e do usuário frente à complexidade do fenômeno das drogas.

Em 2001, o É de Lei fez um evento que chamava “Outras estratégias são possíveis”. Já estávamos trabalhando com usuários de crack, então começamos a pensar para além da troca de seringas. Fornecimento de protetores labiais, de piteiras, de copos de águas, e outras tecnologias. Este seminário dividiu as estratégias de RD para as formas de uso e não para a droga em si. O que muda toda a concepção, o É de Lei sempre foi inovador neste sentido.

Em 2011, o É de Lei começa a fazer um projeto específico para atuar em festas raves, o Projeto ResPIRE. Ele atua nos eventos com plantões de bad trip, com redutores de campo na cena da música, onde oferecem água, orientam usuários, pensam encaminhamentos para os postos médicos e realizam testagem de drogas.

Pouco antes da pandemia, estávamos discutindo as festas de comunidade, que tem menos recursos financeiros, educacionais, que são grandes e que necessitam, também, de um espaço de discussão. A discussão que sempre vamos trazer nas festas é a ventilação e a água. Sempre vai negociar distribuição de água, pedir para abaixar o preço ou mesmo distribuir. Nós sabemos que a água é fundamental para qualquer droga, qualquer uma que se utilizar deve se usar água antes, durante e depois.

QUIMERA Você falou dos meios e modos de uso de drogas que me remete aos seus temas de seu mestrado e doutorado, o primeiro que fala dos usuários de cocaína injetável e o segundo falando do crack, a cocaína inalável. São populações parecidas, o que você observou de diferenças e semelhanças entre esses grupos?

AD. Em meu mestrado, pesquisei porque os UDI continuavam compartilhando seringas. Então participei de cenas de uso, criei um roteiro de observação e pensei quais eram as estratégias para que eles não compartilhassem seringas. 

Veja, nós falamos compartilhar, mas nas cenas de uso injetável o que ocorre é a reutilização das seringas. Você usa uma dose de 0,5 ml em uma seringa de 1 ml e passa a seringa para o outro. E o que acontece que faz o usuário passar essa seringa? 

Começamos a observar que se tiver seringa limpa ele não vai reutilizar. E a barganha não é o HIV, as hepatites. É a droga. A barganha: seringa limpa não entope. O meu mestrado foi para entender isso e pensar nas estratégias. O resultado é que quanto maior o número de seringas menor a chance de compartilhamento. 

Já minha tese de doutorado foi entender por que cinco projetos pilotos de crack que trabalhavam na ótica da RD não se desenvolveram de forma satisfatória. O que acontece para um projeto de RD não se desenvolver? No caso do crack, pela ditadura dos projetos e pelo pânico moral. 

O pânico moral emperrava a defesa de projetos como estes, pois em reuniões com Secretário de Saúde, ele fala que usuário de crack tem de parar de usar, não tem que ter seus direitos respeitados. Isso era uma coisa.

A outra coisa é o que chamei de ditadura dos projetos. Por conta de financiamentos, várias entidades foram criadas, mas nem todas tinham perfil para trabalhar com pessoas. Isso criou falta de identificação com a população, falta de usuários na equipe e focalismo da ação, como fazer a troca de cachimbos sem trabalhar com o restante da rede.

QUIMERA Vemos epidemiologicamente uma substituição entre os anos 1990 e 2000 em que o uso de cocaína injetável foi desaparecendo, enquanto houve um aumento do uso do crack. É a mesma população que trocou um pelo outro, são pessoas/processos diferentes, como você enxerga essa situação?

AD. Há uma complexidade nisso que precisamos entender. Primeiro a época que surge o crack no Brasil, após uma política proibicionista que barra o comércio de éter e cetona. Assim a cocaína que chegava como pasta base nos EUA não podia ser transformada em cloridrato. Ocorreu então um acúmulo muito grande, que estimulou os farmacêuticos do comércio de drogas a recuperar uma maneira de utilizar a cocaína fumada, criando o crack. 

Essa forma teria um início dos efeitos quase imediato, semelhante ao injetável, por ser usado via pulmonar. Quando você fuma em 5 segundos já está sob efeito, injetável demora 1 minuto, enquanto por via nasal demora quase 10 minutos. 

“Então não houve uma migração, pelos menos os nossos usuários não migraram. Houve, sim, novos usuários entrando. E os UDI morreram de hepatite, não de AIDS, a grande maioria.”

O Crack, quando surge no Brasil, atrai os novos usuários. Os velhos usuários de cocaína injetável começaram a ter problemas para encontrar droga de qualidade para usar, mas tinham muito preconceito com esses novos colegas. Porque quando surgiu o crack, as pessoas não sabiam utilizá-lo, quando surge uma droga as pessoas não sabem como usar. Surgiu o estereótipo do craqueiro, magro com a boca queimada, sujo. Os usuários injetáveis não eram assim, usavam manga comprida, tinham certo glamour. Eles precisavam de um local e de um equipamento para usar. O crack não, qualquer coisa você pega uma lata, a amassa e fuma.

Então não houve uma migração, pelos menos os nossos usuários não migraram. Houve, sim, novos usuários entrando. E os UDI morreram de hepatite, não de AIDS, a grande maioria.

QUIMERA Você mencionou sobre o sentido do uso drogas. Trazendo para nosso campo mais da clínica, algumas pessoas na psicanálise falam da clínica das adicções, de uma quarta estrutura adicta; e você está trazendo isso de outro ponto de vista, como algo que pode aparecer em vários lugares. Queria que você desenvolvesse isso, a droga é um sintoma?

AD. Eu sou muito clássica nisso, para mim as relações que as pessoas têm com as drogas ou são neuróticas, ou são psicóticas ou são perversas. Não acredito em quarta estrutura. 

O que observo são pessoas com diferentes tipos de relações com as drogas e que essas relações inclusive podem mudar. Pode-se ter uma relação extremamente desorganizada com a droga e depois mudar para uma relação organizada. Assim como pode optar por não ter relação nenhuma com a droga. 

Às vezes, a redução de danos possível é a abstinência. Nós nunca fomos contra a abstinência. Muitos nos acusam de ser contra a abstinência, não sou. Só não acredito que ela é a única solução. 

Também há uma questão muito séria nessas linhas que trabalham com os 12 passos e com a abstinência como única alternativa, pois não se resolve o problema da droga. Alguém que diz que não usa droga há cinco anos e quatro meses, está há cinco anos e quatro meses sofrendo nessa relação com a droga. Tanto que ele tem de nomear isso. Ele parou de usar, mas não resolveu a questão. 

Faço uma analogia com o relacionamento. Se você se divorciar de uma mulher e falar que está há cinco anos e quatro meses divorciado, que está resolvido, fica claro que não está resolvido.

QUIMERA Como você percebe os avanços teóricos nas últimas décadas em relação ao campo da clínica do uso de drogas?

AD. Acredito que tivemos poucos avanços nesse sentido. Tivemos um grande avanço com a conceituação da Clínica Ampliada.

Eu não acho que o uso de substâncias tenha que estar na Saúde Mental. Acredito que devia estar na atenção básica, na psicologia da saúde. Colocar a complexidade do uso de drogas na saúde mental é dizer que todos que usam drogas têm questões com a saúde mental. 

Tem pessoas que usam drogas e tem milhares de outros problemas que não dizem respeito à saúde mental. Na cracolândia se enxerga miséria, pobreza, exclusão, violência sexual, marginalização… Depois se enxerga uma questão com o uso de drogas, mas não foi a dependência que causou tudo isso. Às vezes esse uso de drogas é uma alternativa. As pessoas não usam droga para ficar mal, usam para viver melhor. 

“Quando vamos brindar com álcool, estamos buscando ficar bem, comemorar. Assim como quando encaminhamos um paciente para tomar uma medicação psiquiátrica é para ele se sentir melhor, para ele parar de arrumar o armário dez vezes, parar de alucinar.

Quando conseguimos ter essa visão, muda-se a perspectiva sobre o uso de drogas.”

Quando vamos brindar com álcool, estamos buscando ficar bem, comemorar. Assim como quando encaminhamos um paciente para tomar uma medicação psiquiátrica é para ele se sentir melhor, para ele parar de arrumar o armário dez vezes, parar de alucinar.

Quando conseguimos ter essa visão, muda-se a perspectiva sobre o uso de drogas. É importante falar a verdade sobre as drogas. Falar para um jovem para não usar drogas, porque elas fazem mal é terceirizar a conversa, é deixar para que outra pessoa discuta com ele. Se, por outro lado, disser “Olha, usar droga pode ser gostoso, mas cuidado que ela pode te levar para um caminho que é ruim”, isso abre para que o jovem venha conversar sobre o assunto.

QUIMERA Neste sentido você tem um trabalho com educação e prevenção, como vê a disputa deste espaço com iniciativas como o PROERD?

AD. Todos sabem que o PROERD é muito ruim. O professor sabe, o aluno sabe, todo mundo sabe. O PROERD é o de menos para nós. É claro que levar a polícia para falar de drogas é um absurdo, o jovem sabe disso. Trazer policiais para discutir drogas é não querer discutir drogas, é simples assim. 

QUIMERA Nessa perspectiva de militância, mesmo em nossos congressos que em geral são de bastante consenso, um campo que ainda traz desconforto e debate é o do feminismo. Queria que você comentasse sobre esse tema.

AD. É importante entender que a RD sempre caminhou junto com essas pautas afirmativas. Sempre lutou contra o racismo, contra xenofobia, contra a LGBTfobia e contra o machismo. 

Existem questões muito específicas a serem tratadas em relação ao gênero. Quando falamos de mulheres que usam drogas, mulheres cis e mulheres trans, sempre vamos ouvir: “mulher bêbada ninguém aguenta, é horrível”. Além da questão da maternidade, se ela está grávida, se tem filho.

A questão patriarcal é subliminar em todos os âmbitos da nossa sociedade, no uso de drogas não é diferente. Então se observarmos o encarceramento, mulheres presas por crimes relacionados a drogas tem sempre a pena maior. Na questão de moradia, a Luana Malheiro4 escreve sobre isso, observa-se que elas não estão na rua porque usam drogas, mas sim por serem vítimas de violência sexual, que fez elas irem para rua. 

“Então, se temos hoje mulheres na rua usando droga, temos de investigar, pois muito provavelmente o Estado faltou com elas, no sentido de lhes dar uma proteção quando elas sofreram uma violência doméstica.”

Então, se temos hoje mulheres na rua usando droga, temos de investigar, pois muito provavelmente o Estado faltou com elas, no sentido de lhes dar uma proteção quando elas sofreram uma violência doméstica. 

Há de se ter muita delicadeza no olhar para a questão das mulheres que usam drogas, pois elas estão suscetíveis a perder os filhos, a sofrer violência sexual. Essas mulheres são mais abusadas, por estarem intoxicadas, porque o uso diminui a censura, porque tem vontade de dar uns beijos e quando vê o homem já está em cima delas, e não conseguem dizer não. 

As mulheres carregam este estigma por serem  cuidadoras, serem as que protegem, as que organizam. Nem ser muito louca podemos, pois temos de nos cuidar, de proteger, de ser referência. 

É preciso ter um olhar bem dividido para a questão das mulheres. É preciso ter atenção a tudo: estratégias, acesso, cuidado, oferta de horários alternativos, espaços diferenciados para mulheres trans; precisamos de um olhar diferenciado para as mulheres trans, que hoje estão no auge do estigma mais uma vez.

Mas uma coisa o feminismo nos ensinou. Que as mulheres são pessoas e têm direitos iguais. As mulheres são pessoas: essa é a pauta do feminismo. 

QUIMERA E havia especificidades para as mulheres no trabalho pioneiro que você desenvolveu?

AD. Sim, havia várias coisas direcionadas para as mulheres. Insumos, como seringas com agulhas mais finas para mulheres. Orientações para que elas aprendessem a se auto injetar, pois muitas não sabiam se aplicar e ficavam na dependência do parceiro, que primeiro usava e depois reutilizava a mesma seringa para ela. Tudo nesta perspectiva da autonomia no uso e no cuidado.

Para as usuárias de crack entregávamos protetores grandes que serviam também como batom. Muitas trocavam sexo por drogas e não podiam usar manteiga de cacau, pois ela rompe o preservativo no sexo oral.

E a própria defesa do preservativo interno. Inicialmente a política pública seria voltada para as profissionais do sexo. Nós defendemos que as mulheres usuárias de drogas e  parceiras dos usuários de drogas fossem incluídas. Pois esse homem muitas vezes não tem ereção completa e assim não consegue utilizar o preservativo externo. 

Criamos espaços específicos para mulheres, desde grupos de mulheres, discussão de insumos, e ensinar colocar preservativo com a boca. 

O que temos trabalhado com as mulheres é sempre discutir o autocuidado e o olhar diverso, coisas que tem ajudado as mulheres. Coisas simples como conversar sobre a importância de, ao ver uma mulher passando mal, acolhê-la e ficar por perto. E este cuidado mútuo é algo que estamos observando aumentar entre as mulheres. 


1 Fabio Mesquita foi pioneiro na introdução de políticas públicas voltadas à prevenção de transmisão do HIV em usuários de drogas injetáveis. Coordenou os Programas de AIDS em Santos, São Vicente e São Paulo. Foi fundador da International Harm Reduction Association.

2 Norman Earl Zinberg, psiquiatra e psicanalista inglês, estudioso da interferência do ambiente na relação do usuário com a droga. Famoso pela observação do uso de heroína por tropas americanas no Vietnã, que cessava ao regressarem ao solo americano. Sua obra Drug, set, and setting: the basis for controlled intoxicant use é referência para o pensamento clínico em questão.

3 Cristina Maria Brites é graduada, mestre e doutora em Serviço Social pela PUC-SP, figura importante na trajetória da Redução de Danos no Brasil e co-fundadora do Centro de Convivência É de Lei. Atualmente é professora associada da Universidade Federal Fluminense.

4 Luana Silva Bastos Malheiro é antropóloga, mestre e doutora pela UFBA; sócio fundadora do Coletivo Balance de Redução de Danos, membra fundadora da Rede LatinoAmericana e caribenha de Pessoas que Usam Drogas (LANPUD) e da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA) e compõe a Secretaria Executiva da Plataforma Brasileira de Políticas Sobre Drogas (PBPD)

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