Desinstitucionalizar a drogadição

Roberto Tykanori Kinoshita

Por que apresentar a drogadição como uma instituição? Ao longo dos últimos 6 anos trabalhando num CAPS AD, alguns aspectos do cotidiano do serviço que se mostram recorrentes e caricatos foram se tornando evidentes sinais de institucionalização.

Por exemplo, a história que os pacientes relatam sobre o seu problema com álcool ou drogas tem uma estrutura discursiva simplificada e idêntica para a maioria dos usuários do CAPSad: início do consumo na juventude, após alguns anos de consumo ocorre um perda do controle, ponto crítico em que haveria uma transformação de consumidor para dependente, seguida de um rol de perdas pessoais, família, emprego, casa e acompanhados pela incapacidade de mudar o rumo de suas vidas, convictos de que a causa de todos as ocorrências ruins da vida foram decorrentes do consumo, abuso e dependência de substâncias.

Esta observação denota a ideia de que existiria um discurso de um tipo de “história natural da drogadição” que valida a convicção de que as substâncias são a causa dos males da vida. E a sua recorrência para inúmeras pessoas acrescenta mais um índice de validade e veracidade. Fica subentendido que a transformação seria alguma modificação do cérebro que passaria a operar numa circularidade – necessidade de substância- efeito da substância- necessidade. Situação paradoxal em que o consumo gera necessidade e que a necessidade leva ao consumo.

Então temos uma história natural, um mecanismo explicativo e a formação de convicção de um fenômeno.

Mas refletindo sobre a situação, vem a pergunta – como pessoas com corpos, vidas, inserção social e formação cultural, tão diferentes podem relatar uma história tão homogênea? Onde foram parar as experiências pessoais, os sonhos, as expectativas, as frustrações e as esperanças?

Em relação às explicações – se as substâncias são a causa dos males, por que a imensa maioria dos consumidores não se encontra na mesma situação? Ao contrário, apesar de consumirem, seguem com vidas plenas de histórias singulares variadas. Além disso, como a satisfação de uma necessidade pode gerar a própria necessidade?

A partir destas reflexões passamos a buscar inteligir a situação como uma instituição, isto é, um conjunto de saberes, de relação de poderes, de normas, de condutas e procedimentos que visam controlar alguma dimensão da vida social (no caso, o consumo descontrolado de substâncias) e, mais especificamente, a noção de institucionalização, como o descompasso entre a instituição e as necessidades das pessoas e da sociedade, levando a uma perda de sentido original, restando apenas a manutenção do status quo, recorrendo ao uso da força para dissolver a contradição entre intenções e resultados, tornando-se máquinas de violência.

As instituições têm seus problemas-alvo – o manicômio lida com as pessoas perigosas para si e para outrem; a drogadição lida com as pessoas que não conseguem parar de consumir substâncias, apesar de saberem que estão sendo prejudiciais.

Para que uma instituição seja operante ela necessita de um modo específico de identificar os fenômenos, de uma determinada episteme. Considerando que todo processo cognitivo depende de ações de distinções, podemos dizer que a institucionalização ocorre quando há um enrijecimento cognitivo, isto é, as distinções passam a ser estáticas e fixas, com os consequentes modos de valoração também fixos. A mesma distinção é operada nas situações mais diversas, distorcendo e gerando observações semelhantes em cenários variados. Este é um mecanismo auto validador que toma as semelhanças produzidas pela distorção cognitiva como evidências das explicações propostas e não como produto da rigidez cognitiva. Ou seja, confunde a ordem das causas dos fenômenos.

Considerando que todo processo cognitivo depende de ações de distinções, podemos dizer que a institucionalização ocorre quando há um enrijecimento cognitivo, isto é, as distinções passam a ser estáticas e fixas

Outro aspecto da Institucionalização envolve a mistificação reducionista das causas dos fenômenos. Sob um pensamento linear e simples, uma explicação desde um domínio fenomênico passa a ter valor explicativo em muitos outros domínios fenomênicos, de modo que uma explicação única passa a ser validada em todos os domínios fenomênicos. Ou seja, adota-se uma causa única para todos os eventos, fenômenos e transformações.

Sob a égide da causa/explicação única são geradas normas e procedimentos voltados a tentar controlar ou eliminar a causa única. Todas as outras relações são sobreinterpretadas e os fenômenos sobredeterminados à sombra da causa única (substância) e as ações/afetações propostas visam anular ou eliminá-la.

Para uma “história natural” comum, uma única e mesma resposta é apresentada. E cria-se um círculo vicioso em que o próprio fracasso da abordagem passa a ser visto como confirmação da abordagem. As recaídas são percebidas como a confirmação da teoria, e não como fracasso da teoria, mas do paciente!

Em suma, a Institucionalização pode ser vista como uma distorção cognitiva do tipo “um entendimento único, que serve para todas as circunstâncias”.

Nesse sentido a Drogadição pode ser entendida como uma Instituição enrijecida e desconectada da vida concreta.

Institucionalização das relações de cuidado

Se assumirmos que estamos lidando com uma percepção/entendimento reducionista, considerado válido para todos os casos, implica que interagimos com as pessoas que buscam atendimento recorrendo a um modelo geral único, sob o qual a pessoa será interpretada. Franco Basaglia fez um comentário sobre este tipo de situação: todas as relações entre pessoas põem em marcha uma dialética sujeito-objeto onde Um frente ao Outro sempre promove uma objetificação do Outro, mas o Outro também é “Um”, que também objetifica o seu interlocutor. Nesta dialética, as tensões, ressonâncias e dissonâncias, levam a composição de um mundo compartilhado e consensual. Basaglia sugere que nas relações dos profissionais e pacientes na Instituição, situação em que há uma assimetria de poder, esta dinâmica dialética de mútua objetificação é rompida e o profissional, que detém mais poder, mantém o paciente na condição de objeto e invalida as tentativas do Outro se colocar como sujeito. O construto cognitivo institucionalizado serve como um anteparo às afecções produzidas pelas interações da paciente, reduzindo as vivências a categorias racionalizadas descritas como sinais e sintomas. Para a superação desta situação, Basaglia recorria à epochè fenomenológica, à suspensão do pensamento e juízos pré-estabelecidos para se abrir a uma interação dialética, expondo-se às afetações mútuas, na busca da construção de mundos compartilhados, onde todos tem seu lugar de legítimos sujeitos e se permitam a serem objetificados pelos Outros, como parte da vida social.

Se colocamos a Drogadição entre parênteses, suspendendo o juízo, criamos a possibilidade de entrar em contato com os afetos do sujeito a nossa frente, sem o aparato cognitivo institucionalizado.

A Instituição Drogadição faz com que a vida afetiva dos pacientes, seus modos de ser afetado e de afetar aos outros, sejam reduzidos à explicação causal única – a substância. Daí, o foco da atenção passa a estar localizado na questão das substâncias e todos os esforços se voltam para isso.

Se colocamos a Drogadição entre parênteses, suspendendo o juízo, criamos a possibilidade de entrar em contato com os afetos do sujeito a nossa frente, sem o aparato cognitivo institucionalizado.

A questão que se apresenta então é uma situação em que um sujeito diz, nos termos de Ovídio, “sei e reconheço o que é o melhor, mas sigo o pior”. Não se trata da substância (que é tomada como a explicação causal do impasse) mas do drama que vive o sujeito que age pelo pior e que a sua compreensão racional das coisas não é suficiente para agir de acordo com esta compreensão. Este deslocamento do foco nos leva a repensar os termos do problema.

Em outro local, apresentamos uma proposta alterativa como explicação para o que correntemente tem sido denominado com o termo drogadição ou dependência química. O modelo neurobiológico reducionista dominante é contestado recorrendo a referencial neurocientífico de cunho sistêmico e complexo. Esta abordagem se constitui sobre conceitos rigorosos como: a) sistema autopoiético, 2) determinismo estrutural, 3) recusa de toda teleologia, que tem como corolário a ideia de que um organismo vivo não sofre interações instrutivas e as transformações decorrentes das interações com o meio são determinadas pela estrutura existente no momento da interação e não pela ação do meio nem pelo resultado da transformação. Daí refutamos a ideia de que a deriva estrutural ou a sequência das modificações estruturais de um organismo que, como observadores, denotamos como comportamento possam ser determinadas por uma substância qualquer.

Observamos que vivemos continuamente deslocando nosso ponto de observação, ora tomando um corpo como uma unidade simples em relação ao seu meio, que chamamos de comportamento, ora deslocando para a observação das relações internas de um organismo, tomado como uma unidade composta, que denominamos como fisiologia. Como não nos damos conta de que há essa dupla observação, estabelecemos relação causal entre domínios fenomênicos distintos, isto é, misturamos fenômenos de ordem distinta. O que acontece simultaneamente – fisiologia e comportamento, como fenômeno unitário, desdobramos ilusoriamente em fenômenos sequenciais de causa e efeito. Porque na observação vivenciamos sequencialmente, isto é, primeiro num domínio e depois um outro. Como exemplo, explicamos o deslocamento de um veículo do Rio de Janeiro a São Paulo recorrendo à mecânica do motor que o faz mover-se. São fenômenos correlatos e simultâneos, mas cada um tem sua explicação em seu domínio fenomênico. Por este entendimento buscamos evitar ao máximo o reducionismo.

Por outro lado, temos ainda a percepção consciente do corpo e de sua fisiologia. Percebemos o corpo nas suas interações com o mundo ao redor pelas alterações que sofremos – afetações desde o exterior. Além disso, percebemos as transformações internas do corpo, as afetações desde o interior, a sua fisiologia, como emoções. Estas afetações desde fora ou desde o interior, quando conscientes, denominamos como afetos.

A dinâmica de transformações de um organismo, sua deriva estrutural, é determinada pela estrutural atual, no presente. Considera-se que as afetações são desencadeantes destas transformações, mas não as determinam.

Podemos dizer que uma sequência de transformações, uma deriva estrutural, corresponde a uma sequência de afetos. Daí observar uma sequência de estados afetivos corresponde a observar uma sequência de estados corporais, ou dito de outro modo, um comportamento corresponde a uma sequência de estados afetivos. Ou, visto pelo lado do comportamento, as condutas dos sujeitos são determinadas pelos estados dos corpos, seus afetos e suas memórias afetivas, e não pela vontade ou livre arbítrio.

A observação de determinados padrões recorrentes de estados afetivos permite compreender parte da determinação de comportamentos por meio dessa dinâmica de afetos.

Assim entendemos que a situação de pessoas enredadas no uso de substâncias ocorre em função de uma dinâmica de estados afetivos recorrentes. Denominamos a esse estado como Circuito da Drogadicção, propondo como um esquema explicativo do fenômeno da adicção. Denominamos de circuito em função de uma dinâmica circular recorrente em espiral que o sujeito é levado passionalmente de um complexo afetivo a outro.

Para melhor entendimento utilizamos como esquema referencial, noções de Alegria, Tristeza e Desejo, oriundas da filosofia de Espinosa, ressaltando que fazem referências a dinâmicas da capacidade de existir, sendo o aumento uma alegria e a diminuição a sua redução, e a força para perseverar na existência como o desejo. Estes 3 movimentos estão presentes em proporções diversas nos corpos e dão origem a enorme variedade de afetos quando associados a ideias, imaginações e ideias de ideias, que serão entendidas com mais ou menos adequadas.

Retomando a noção de Circuito de Afetos, identificamos nele três núcleos ou complexos afetivos de afetos predominantemente tristes, que têm características distintas e possibilitariam intervenções apropriadas.

1. O primeiro complexo de afetos tristes é o complexo pessoal, originário da história pessoal de interações durante a vida. Envolve as experiências vividas nas diversas esferas da vida (social, cultural, econômica, educacional). Este complexo de afetos tristes se confronta com o desejo, que se movimenta pela preservação na existência e que move o corpo por alguma mudança no sentido de aumento da potência. O corpo retém marcas, memórias de experiências anteriores associadas à experiência do aumento de potência. Entre estas memórias, estão aquelas ligadas à experiencia com o uso de substâncias que promovem um aumento da potência de parte do corpo, por tempo limitado. Essa memória desencadeia a busca por reviver esta experiência, como compensação da Tristeza, recorrendo ao uso de substâncias conduzindo ao segundo núcleo.

2. O segundo núcleo de afetos é o complexo de afetos flutuantes, percebidos como alívio, como cessação de um mal-estar pelo uso de uma substância. Como se trata de aumentos de potência em apenas partes do corpo, as proporções de alegria e tristeza, maior ou menor potência, se misturam e se alternam. Nos casos de uso continuado, a dinâmica recursiva induz a adaptação do corpo à ação da substância, tendendo a diminuir os efeitos percebidos e a demandar maior quantidade de consumo. Embora a interação com a substância possa gerar um vetor de aumento de potência parcial, seus efeitos são limitados no tempo, e os afetos tristes do núcleo primário retornam com maior intensidade, por contraste. A adaptação do corpo tem consequências que não se limitam à biologia, pois implicam maior dispêndio de recursos, custos financeiros crescentes, redução da capacidade laboral e suas consequências nas relações interpessoais e sociais. Essas produzem aumento de problemas que são geradores de mais tristeza e configuram o terceiro complexo.

3. O terceiro núcleo também é constituído de afetos tristes, mas distintos do primeiro e do segundo. Trata-se do complexo sociocultural, ou ressaca moral, gerado nas relações históricas em que as interações entre os indivíduos têm como referência os pares de afetos de culpa/perdão, honra/vergonha e medo/poder. Os afetos tristes do primeiro complexo somados à frustação gerada pelo Alívio efêmero e os gastos e desgastes nas relações sociais, desencadeiam a culpa por ter buscado alívio no uso de substância, a vergonha pela incapacidade de refrear o consumo e o medo das consequências futuras. A cada vez que um desses afetos emerge, reinicia-se o ciclo, retornando a viver as tristezas do primeiro núcleo e as subsequentes. Quando a experiência acumulada pelo sujeito carrega muitas memórias desse circuito, no momento do alívio do 2º núcleo, já se antecipam as terríveis vivências de culpa, medo e vergonha do 3º núcleo, gerando um curto-circuito em que a busca por Alívio é deixado por uma busca pelo esquecimento total das coisas – Oblívio. No Oblívio, o consumo é levado aos extremos do corpo, pelo uso contínuo e recorrente da substância por dias seguidos, como se o único meio de lidar com o sofrimento acumulado fosse o total esquecimento.

Algumas reflexões sobre as práticas pautadas pela noção de drogadição como instituição e pelo circuito dos afetos como modelo de explicativo.

Durante o período inicial de estudos e discussões pautados pelos textos de neurobiologia de Maturana e as teorias dos afetos de Spinoza, as ideias apresentadas levaram as pessoas da equipe a refletirem sobre suas vidas, seus modos de ser e se relacionar. Questionamentos sobre verdades, realidades e certezas estabelecidas passaram a ser parte do cotidiano. Depois de um tempo de construção de conceitos referenciais compartilhados é que as mesmas passaram a se arriscar a atuar junto dos pacientes guiados pelas novas ideias.

Esse processo reflexivo trabalhoso foi identificado como um dos primeiros obstáculos a serem superados no processo de cuidado clínico. 

Como desconstituir a drogadição institucionalizada? Como pôr em cheque um conjunto de crenças que normatizam as condutas e práticas diárias junto com seus afetos associados?

Os modos de agir e sentir estabelecidos e vividos como realidade absoluta colocam-se como enormes barreiras à mudança.

Como promover a reflexão dos usuários sobre suas vidas, suas percepções, suas emoções e circunstâncias de modo contínuo? 

O interessante é que, apesar de uma certa desconfiança e, até resistência à mudança tenha ocorrido, a legitimação do sofrimento vivido no Complexo Pessoal, já propunha um diferencial ao recolocar a dimensão humana em jogo em detrimento da determinação absoluta das substâncias.

Estas questões incitaram a experimentos práticos seguidos de discussões com os usuários. As atividades grupais passaram a servir como laboratório de experimentações e discussões sob a lógica do circuito dos afetos. O interessante é que, apesar de uma certa desconfiança e, até resistência à mudança tenha ocorrido, a legitimação do sofrimento vivido no Complexo Pessoal, já propunha um diferencial ao recolocar a dimensão humana em jogo em detrimento da determinação absoluta das substâncias. Mas para isso, foi necessário a recusa do script instituído, por exemplo “do nada dá vontade de usar”, “não sei por quê uso”.

Essa negação das noções institucionalizadas demanda um processo crítico sobre alguns aspectos epistemológicos que necessitam serem postos em questão.

  1. Mente e Corpo – a unidade mente e corpo é um tema complexo a ser abordado. Como duas faces da mesma moeda, ao observarmos um, perdemos o outro. Mas o objeto primeiro da mente é o corpo, ou a ideia de corpo. Esta ideia de corpo, ainda sensação imediata, sem palavras, sem linguagem pode ser percebida, mas não descrita. Para a descrição de qualquer coisa, é preciso uma linguagem. Ou é preciso ter uma ideia da ideia.  As descrições já são um desdobramento da ideia do corpo enquanto objeto primeiro. Outro desdobramento é o entendimento que o corpo/mente  mantém relação com o meio, com outros corpos. Mas o que percebemos na mente são sempre os efeitos que a interação com estes outros causam em nosso corpo. Isto é, tudo o que sabemos são os efeitos do mundo sobre o nosso corpo, mas não temos acesso imediato do mundo. Daí, realidade é apenas o que percebemos através das modificações que o corpo passa na interação com o mundo. Não acessamos o mundo lá fora. Somo submetidos às forças e afetados por elas.
  2. Linguagem – entendida como coordenação de ação e emoção (fisiologia) – não acessamos o mundo lá fora, independente de nós. Nós fazemos surgir o mundo na interação do nosso corpo com outros corpos, que pode vir a se compor em movimentos coordenados e fisiologias ou emoções coordenadas. Nessa composição, nesse acoplamento de corpos, que se movem em interações recursivas, uma série de coordenações de ações e emoções se estabilizam e podem ser referenciados por vocalizações – palavras – que servem como referência para outras coordenações. Assim, nesse desdobramento infinito, o mundo vai adquirindo consistência dos referenciais e a constância das relações, gerando um mundo aparentemente estável , como se fosse independente do que fazemos. A linguagem serve como a ferramenta que constitui o mundo compartilhado.
  3. Lógica causal – é frequentemente revela modos de pensar teleológicos nas falas dos usuários, isto é, pensamentos onde os fins são considerados causas eficientes das ações; nessa linha a falta de substâncias aparece como causa dos comportamentos. É preciso apontar de modo concreto como uma coisa que não está presente pode ser motor da ação? Essa forma teleológica de explicar as relações causais confunde a ordem dos fenômenos e tende a obscurecer os determinantes efetivos das condutas. Assim buscamos construir a ideia de que é preciso conhecer os motores concretos que antecedem as ações, distinguindo das justificativas das mesmas. Por exemplo – quando o usuário diz que o uso é para obter prazer – consideramos apontar que o motor está no afeto presente concreto de mal-estar ou desprazer, e o uso da substância é justificado pelo efeito de eliminar o desprazer. Se considerássemos que o motor fosse o prazer futuro almejado, a situação de partida de desprazer viria apagada e se abriria o espaço para um julgamento moral sobre a volúpia da pessoa, sua incapacidade de refrear seus instintos primitivos etc. que geram culpa, vergonha e medo.
  4.  Relação entre Razão e Emoção – A crença normativa de que a Razão é uma das características essenciais dos humanos, que nos distingue dos animais, e que nos conduzimos exclusivamente pelas diretivas da Razão, produz uma cisão nas vivências da pessoa, de modo a não perceber a presença e determinação contínua das emoções nas condutas. Também produz uma cisão contradições percebidas entre o que se entende ou imagina entender, e as emoções que efetivam as condutas, chega-se ao impasse de que, embora racionalmente ciente dos males, acaba-se agindo contrariamente ao pensado. É preciso apontar claramente que o ser humano não age pela Razão, mas é determinado pelas suas Emoções. Estabelecer processos de reflexão sobre as situações do cotidiano em que a intensidade das emoções, ou afetos, é reduzida e se torna mais fácil perceber como as condutas são movidas por afetos além de tornar mais fácil perceber e, ao mesmo tempo, aquelas experiencias em que, sabedores das consequências indesejadas de determinados estados afetivos, buscamos meios de modificar, refrear e mudar os afetos.
  5. Afeto muda afeto, a razão não muda o afeto – O item anterior pode ser resumido nesta ideia. Mas o que é a Razão então? Podemos esquematizar e dizer que se trata de um método de conhecer as coisas, por meio de classificação, comparação, estabelecer proporções e ordenação dos fenômenos. Este conhecimento permite que se façam explicações de como os fenômenos são gerados/causados, fazer previsões de efeitos futuros, baseados nas experiências passadas. E este modo de agir e de conhecer precisa ser direcionado aos fenômenos afetivos vividos para se saber como ocorre a dinâmica dos afetos de cada pessoa. Saber distinguir, comparar, perceber a intensidade, permite estabelecer quais afetos são úteis, quais são desgastantes, e em quais circunstâncias, quais são os afetos que são contrários e que podem deslocar, refrear ou diminuir a força dos afetos[6] .

Estes tópicos precisam ser trabalhados paulatinamente, de modo a ser consensuado com o usuário enquanto um esquema conceitual compartilhado. O compartilhamento do esquema conceitual operativo pela equipe é essencial para promover a desistitucionalização da drogadição.

O trajeto de aprendizagem passa pelo exercício de reflexão sobre os próprios afetos, a observação destes afetos e as possibilidades de provocar outros afetos. Inicialmente, as ideias do senso comum são fundamentalmente as impressões, imagens das forças sobre o nosso corpo. Esse tipo de conhecimento, Spinoza vai chamar de conhecimento de primeira ordem, composto por imaginação e ideias confusas. O objetivo seria por meio da reflexão crítica, esclarecer as relações causais, a ordem da sequência de causas e efeitos. E este exercício de conhecimento por si mesmo iriam gerar afetos que aumentam a potência de agir, que gerem alegria.

Nesse cenário, o exercício de reflexão racional – analítico e sintético – tem papel fundamental, mas que é facilitado pelo trabalho coletivo. Esta produção de saberes serve de base para o que Spinoza chama de conhecimento de segundo grau, que permite encontrar caminhos para deixar a vida absolutamente passional, dominada pelos afetos, para sermos capazes de desencadear afetos úteis por conta do conhecimento das dinâmicas. Em outras palavras, passar a ser a fonte da própria Alegria.


Referências

Maturana, H. (1997) A Ontologia da Realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG

Spinoza, B. (2007). Ética, edição bilingue. São Paulo: Editora Autentica


Roberto Tykanori Kinoshita é psiquiatra, ex Coordenador Geral de Saúde Mental Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde (2011-2015). Professor adjunto da Unifesp, Baixada Santista ; Chefe de Departamento de Saude Mental da Secretaria de Saúde pela DREAR

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