Entrevista com Elizaldo Carlini – Parte 1

Por Denis Petuco

Essa entrevista foi realizada como parte da pesquisa de doutorado de Denis Petuco, que produziu o livro “Pomo da Discórdia”. Tanto na Tese quanto no livro apenas trechos das entrevistas e de forma anonima foram publicados. Assim, recuperamos e editamos a transcrição dessa conversa, realizada em 2015. Por conta da extensão e riqueza do material, optamos por dividir o texto e publicar em diferentes edições de nossa revista. Este é a primeira parte da entrevista.

Elisaldo Luiz de Araújo Carlini foi um médico, psicofarmacólogo, professor universitário e pesquisador brasileiro. É considerado referência mundial e um dos pioneiros nos estudos farmacológicos sobre o potencial terapêutico da cannabis e de outras substâncias psicotrópicas. Foi professor da UNIFESP, fundador do  Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas  (CEBRID), condecorado duas vezes pela Presidência da República por seu trabalho científico pioneiro. Fundador da ABRAMD, morreu em 16 de setembro de 2020.

D: Denis Petuco

CARLINI: Elisaldo Luiz de Araújo Carlini 


D: A voz dos usuários de drogas sempre aparece no cenário político brasileiro discutindo as questões relacionadas à proibição, ao direito de uso, à criminalização. Eu tenho dificuldade de encontrar a voz do usuário que demanda tratamento em saúde. Por exemplo, na Marcha da Maconha, encontramos vozes exigindo a legalização. Mas a voz do usuário se colocando como alguém que quer discutir a política de tratamento, o modelo de tratamento, me parece silenciada. Percebemos que há controvérsias no que tange ao tema das políticas e estratégias de saúde para essa população. O que você acha que aparece como controvérsia nesse campo? Em que momento começaram a aparecer discórdias? Em que momento elas se intensificaram?

CARLINI: Meu contato com este problema não é de hoje. Eu fiz Medicina na Escola Paulista de Medicina, e, desde então, achava que havia um desrespeito na maneira como o doente brasileiro, necessitando dos recursos públicos, era tratado. Independentemente dele ser usuário de drogas. O tempo das consultas dos médicos, os medicamentos que o hospital poderia fornecer, o tempo que eles perdiam na fila de espera… Eu lembro que me chamava atenção, como estudante e depois como formado, a situação de existir rádio patrulha na porta do Hospital São Paulo. Não para a proteção aos que estavam esperando, mas para evitar que se rebelassem contra as horas de espera na fila. Quando começavam a esbravejar, a polícia estava lá como uma espécie de “Olha, fica quieto aqui. Você não pode reclamar porque isto aqui é de graça”. Eu lembro que, já formado, comecei a trabalhar no prédio do Departamento de Psicobiologia, que ficava na volta do Centro de Triagem. A fila vinha do Centro de Triagem, ia até a esquina, virava, ia até a próxima esquina, virava e cruzava a porta de entrada do departamento onde eu estava trabalhando. Chamava minha atenção que, ao chegar de manhã, quando embicava o carro para entrar na garagem, a fila já estava ali. Tinha que pedir licença para poder entrar com o carro e, claramente, percebia a inimizade. Olhavam-me como aquele cara que estava chegando cedo para não atendê-los, como um inimigo.

D: Nós estamos falando de que ano professor?

CARLINI: De uns 30 anos atrás. E eu lembro que fui falar com o diretor da Escola Paulista de Medicina e com o do Hospital São Paulo. Eles tomaram a atitude que foi possível naquela época: como os pacientes ficavam na fila por horas, em pé, caminhando ao redor do quarteirão – porque a fila dava uma volta completa no quarteirão até chegar naquele ponto inicial -passaram, numa certa hora do dia, a distribuir um café com um pãozinho. Quando eu vi aquilo, fiquei sem saber exatamente o que responder. Porém percebi uma coisa incrível: o pessoal ficou satisfeito. Eles ficaram felizes porque receberam, pela primeira vez, alguma atenção por parte do serviço público. Eles tinham direito – “direito” entre aspas.

Aquilo marcou muito a minha postura no futuro, quando eu escolhi fazer psicofarmacologia, estudando problemas de dependência de drogas. A situação era mais ou menos a mesma: a total ausência de direitos dos doentes que eram internados – nunca por decisão própria,  mas por decisão do serviço. A internação dependia de vários fatores, até mesmo da existência de um leito, mas nunca, eu acho, era uma questão do paciente. O discurso era totalmente médico. Aqueles não eram seres que habitavam o ambiente, não viviam numa sociedade. Eram desgarrados naquele hospital. É por isso que tinha a rádio patrulha lá. Uma época, fui candidato a diretor desta escola, não sei precisar a data, mas a minha bandeira era: Nós estamos aqui em Vila Clementino, na rua principal do bairro, onde tem o Hospital São Paulo, e os pacientes saem das periferias, da zona sul de São Paulo, e chegam até aqui. Os médicos e estudantes daqui aprendem que esta é a maneira de fazer as coisas. O médico chega sei lá que horas e o aluno chega para acompanhar o serviço médico dos ambulatórios. Eu propus uma mudança: ao invés de termos esse ambulatório de um quarteirão inteiro, deixando esse pessoal todo amontoado aqui, vamos abrir pequenos centros espalhados. Primeiramente, vamos fazer um estudo para saber de onde vem a nossa clientela, e nós vamos até lá. Seria bom que os alunos começassem a aprender o que é pisar o barro, o que é ver aquela situação toda.

Uma época, fui candidato a diretor desta escola, não sei precisar a data, mas a minha bandeira era: (…) ao invés de termos esse ambulatório de um quarteirão inteiro, deixando esse pessoal todo amontoado aqui, vamos abrir pequenos centros espalhados. Primeiramente, vamos fazer um estudo para saber de onde vem a nossa clientela, e nós vamos até lá.

Minha proposta foi derrotada fragorosamente, eu não tive voto nenhum. Eu não sei se os alunos votavam na época, mas a opinião deles também foi contrária.

Isso marcou muito a minha vida. Logo depois eu fui para os EUA, fiquei por lá uns 4 anos. Vi que por mais odiosa que possa ser a visão que muitos de nós temos a respeito da hegemonia americana, do imperialismo, eles tinham mais justiça. Só não tinham justiça com os negros. Eu fiquei trabalhando na Universidade de Tulane, em Louisiana, na época em que foi transformada a primeira escola branca pública em uma escola mista. Eu presenciei cenas que não esqueço: vi uma menininha branca e um menininho negro descerem de um carro de polícia, com não sei quantos guardas ao redor. Havia uma fileira incrível de mulheres dos dois lados do corredor – era um corredor polonês -, e elas diziam: “Kill them! Kill them!”. Um negócio espantoso pra mim. Isso me passou uma impressão: “O Brasil não é desse jeito ainda.”. Mas eu me lembrava muito bem do Millor Fernandes, quando uma vez perguntaram se ele tinha preconceito contra a raça negra e ele disse: “Não, nenhum, imagine… O negro no Brasil sabe o seu lugar.”.

A primeira mudança ocorreu, talvez, na década de 1990, quando Solange Nappo, minha companheira, e eu fomos convidados pela OMS para fazer uma pesquisa. Ela trabalhava com drogas e era uma pesquisa sobre uso da cocaína – nem existia o crack, era 91 ou 92 -, usando técnicas qualitativas. E o que é técnica qualitativa, traduzindo nas mais simples das palavras? O detentor do saber é o usuário, e nós vamos aprender com ele o que é este mundo. Portanto, nós temos de ter respeito por ele. Então nós desenvolvemos vários trabalhos, a Solange tem publicado e acompanhado talvez umas duas dezenas de trabalhos usando esta técnica. Aprendemos muita coisa junto aos usuários. Deixávamos muito claro: “Olha, quem sabe é você. Eu quero aprender com você, para você me ensinar… Sua vida, como é que ela é?”. Foi um trabalho muito importante para mim, e que acabou por cristalizar aquele sentimento mais ideológico que a gente tinha, de que era preciso incluir, de que era isto que tinha que mudar.

D: Deixe-me pegar este gancho porque isto é muito valioso. O senhor já vinha trabalhando com a temática das drogas quando aconteceu esse convite para a pesquisa qualitativa. Diante dessa proposta, o senhor encontrou um método que era afinado com aquelas ideias que o senhor…

CARLINI: Com aquelas ideias… E por outro lado também, eu acho que eu já não tinha aquele preconceito de que “Quem sabe sou eu. Eu, médico, sou o senhor da sabedoria, e o outro, quando vou atender, tem que seguir as minhas ordens.”. Eu deixei de lado a prepotência da Medicina. Porque eu acho que a Medicina, pra mim, agora, é uma profissão prepotente e dominadora. E isso realmente não se casa bem com a problemática de drogas. Estamos discutindo muito isso atualmente, é um assunto importante demais para ser trabalhado só pela Medicina. Eu falo isso publicamente: “Tem que botar aí o sociólogo, o filósofo, o religioso, o jurista…”. É uma coisa que tem de ser feita pela coletividade que domina um certo saber. Nós temos que aprender com o saber dos outros e tentar fundir essas duas culturas: a popular e a científica.

Outra coisa que foi importante pra mim foi começar a perceber que os tratamentos para usuários de drogas são, primeiramente, questionáveis na essência, ao tratar todo mundo com uso de medicamentos; em segundo lugar, e mais importante, eles não são efetivos. E nós persistimos nesse erro por causa da dominância do discurso médico, que ainda se coloca acima de tudo. Solange tem sido a magistral nesse ponto, porque ela introduziu o programa de pesquisa qualitativa no campo da dependência de drogas no Brasil. A tese dela foi feita em 91/92, “Baqueros e Craqueiros”, onde ela entrevistou este pessoal todo. E descobriu coisas incríveis! Sobre a definição de dependência de drogas, por exemplo, ela pegou 6 ou 7 definições que eu incorporei no meu saber. Na realidade, esses dependentes de cocaína ou de uma droga qualquer, tem definições muito melhores do qualquer definição científica. Descrevem sem pedantismo, de uma maneira muito clara, o que a pessoa realmente sente, e não aquilo que ela deveria sentir segundo um saber.

Nós nos metemos a estudar as coisas na seguinte ordem: por que as pessoas voltam a usar? Apenas 30% consegue ter algum êxito nos tratamentos clássicos e 70% não permanece no acompanhamento. E aí vem o problema da abstinência. Eu acho que nós tínhamos que batalhar muito para ter o beber moderado, o beber ajustadamente, sobriamente, sabiamente. Nós poderíamos ter um sucesso muito maior, mas é negada essa possibilidade de tratamento.

Então, começamos a ver quais as razões íntimas pelas quais as pessoas dizem voltar para o uso: “por que eu voltei?”, “por que eu aumentei a dose?”. Começamos a descobrir uma série de coisas muito interessantes que não sabíamos, que a ciência não mostrava. Por exemplo: você pega o crack; é a única droga que dá a fissura – e este já é um termo popular, porque na ciência usa o termo em inglês, “craving” – durante o próprio uso da droga. Você começa a usar e já fica desesperado, procurando encontrar uma nova pedrinha, as firulas que caíram pelo chão, porque não aguenta a ideia de que o efeito vai passar. Então nós pensamos: “será que se conseguirmos um meio de controlar a fissura não seria mais fácil efetivar qualquer tratamento, inclusive os clássicos, que podem ser feitos em qualquer serviço público?”. Essa é a nossa tentativa agora. Nós temos certeza de que se conseguirmos bloquear a fissura, ou diminuí-la, a pessoa terá, ao menos, uma melhor aderência ao tratamento e, quem sabe, mais aderência ao pós-tratamento.

Fizemos uma pergunta que tinha a mesma motivação do que você está indagando: “Será que o dependente de crack que está na rua, encontra algum meio de minorizar seu sofrimento físico e psíquico?”. Então, começamos a estudar como eles fazem para reduzir os danos. E quando eles querem parar por conta própria, o que eles fazem? É uma coisa interessante. As duas teses foram defendidas agora, em dezembro, orientadas pela Solange. Uma tese foi concentrada sobre as substâncias que eles usam por conta própria, principalmente maconha. Tem um saber por trás disso e eles conseguem explicá-lo direitinho, da maneira deles. A outra substância é a ayahuasca, o Santo Daime. E aí nós pensamos mais no teor, no conteúdo religioso, junto à droga. São esses dois tratamentos que eles fazem entre eles quando querem minorar. E procuram evitar o serviço médico, não o procuram espontaneamente. Se nós não conseguimos conciliar esses dois saberes, eu acho que a gente não vai pra frente.

E quando eles querem parar por conta própria, o que eles fazem? (…) Uma tese foi concentrada sobre as substâncias que eles usam por conta própria, principalmente maconha. Tem um saber por trás disso e eles conseguem explicá-lo direitinho, da maneira deles. A outra substância é a ayahuasca, o Santo Daime. E aí nós pensamos mais no teor, no conteúdo religioso, junto à droga.

Começamos, então, a estudar os CAPSad. Descobrimos que alguns serviços públicos tem os Consultórios de Rua. Os Consultórios de Rua, para mim, chegam a ser revolucionários. Diadema é onde eu mais me aprofundei no assunto, estou tendo muito contato com eles agora. Procuro dar a aula que eles pedem que eu dê, nunca proponho um programa. Às vezes eles querem saber de alguma coisa, e aquilo que eu sei, eu assumo. Trocamos ideias. A primeira vez que eu entrei em um Consultório de Rua, em uma reunião em que fui convidado, sabe qual foi minha impressão? Entrei na sala e pensei: “Entrei no Brasil!”. Foi exatamente o meu pensamento porque sempre sou contra essa universidade branquinha… Na medicina, quase 100% dos alunos são brancos. E naquela sala metade era de cor. Quase todos, com exceção de um, que era o psicólogo, quase todos tinham o ensino médio. Eles não tem um emprego, eles abraçaram a causa e recebem uma ninharia, algo como 900 reais. E aí eu fui vendo coisas que eu não conhecia. Uma vez, sentado contra a luz, não enxergava direito a face de uma pessoa negra, de cabelo bem comprido, alisado, que eu tomei por uma mulher e não era, mas eu não sabia, aconteceu uma coisa que foi um choque danado e que mede como nós temos preconceito racial neste paí. O que aconteceu foi o seguinte: eu peguei uma xícara de café, cheguei para ela e disse: “Olhe, você pegue primeiro porque eu sou da velha guarda, que ainda acha que as moças merecem em primeiro lugar.”. E o rapaz ficou muito sem graça. E aí eu olhei melhor, vi que tinha o cabelo comprido, que tinha seios, e eu olhei mais de perto e notei que tinha uma barba muito espessa. Cortada, mas muito espessa. Eu quase morri de vergonha. Eu fiquei péssimo. Fiquei muito mal: “Meu Deus, eu ofendi o cara, fui caçoar dele… Imagine, vai parecer que foi ironia.”. Fiquei muito mal. Fui falar com o chefe: “Mas doutor, o que o senhor está falando? Ele ficou felicíssimo do senhor achar que ele é uma mulher mesmo, porque ele realmente é um travesti que acredita ser mulher!”. E para mim, no meu conceito machista, isto era impossível de acontecer.

Posso até fazer um paralelo: eu, como cidadão branco, da escola médica, classe média do Brasil, que sempre diz que não tem preconceito racial – eu estava uma vez em Natal e fui na praia. Botei um chapéu de praia e fui andar. Quando eu estava a uns 100 metros de distância, olhei para trás, e vi que meu chapéu de praia estava sendo levado pelo vento e tinha um pretão correndo atrás. Na hora em que eu vi isso, pensei: “Bandido, vai roubar o meu chapéu!” e saí correndo atrás do homem. Foi instantâneo, sem pensar. Quer dizer, isso foi incutido na minha cabeça quando eu era criança. Quando eu fui chegando perto, o rapaz me viu e abriu o maior sorriso… Aquilo me avacalhou. Por coincidência, era o Professor Capenguelê, honoris causa da Universidade da Nigéria, que estava dando um curso na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Como é que eu tenho um preconceito desses, achando que eu não tenho? E isso é uma coisa que o doente brasileiro, o usuário de drogas, sofre de uma maneira terrível. Porque ele é usuário de drogas, muitas vezes é preto, uma porcentagem relativamente alta tem uma outra opção sexual. Isto faz dele o infeliz dos infelizes. E ele é tratado por essa Medicina branca, autoritária, completamente dominadora… Não dá certo! E digo mais: não dá certo com psicólogo também. Não sei se o sociólogo tem esta vivência…

D: Tem sim…

CARLINI: É uma coisa que vamos ter que mudar. Em parte, vejo que meu conhecimento sobre o que se deve fazer com a população usuária de drogas é baseado nessa percepção, que me acompanha desde jovem, de que o Brasil é um país cheio de preconceito racial, que um grupo sofre de todos os desajustes sociais por ser preterido. Você tem pobreza, você tem uso de drogas. E pode ser que esteja usando a droga como uma bandeira: “Olha, eu sou livre.”.

Pra terminar, eu quero te contar uma nova descoberta que fiz. Ano passado teve aquela reunião em Portugal, em que o Julino falou… Ele está quase no fim do doutoramento dele, estudando o problema do álcool. Nós tivemos a chance de apresentar esses dados no 21º Congresso Internacional de Psiquiatria Social. E eu falei: “Opa, Psiquiatria Social é diferente de Psiquiatria Farmacológica.”. E diferente da Psicanálise, que eu não entendo nada de Psicanálise. Eu nem acho que a Psiquiatria tenha a amplitude necessária para atingir milhões e milhões de pessoas.

Primeira coisa: eu não vi nenhum estande de laboratório farmacêutico. Nenhum! Nos congressos internacionais de Psiquiatria, de Farmacologia, nos congressos de Psiquiatria no Brasil, é aquela quantidade enorme, dezenas e dezenas de estandes que te dão cafezinho, camiseta, máquina fotográfica, tiram fotos… Presentes de tudo quanto é tipo, propaganda de tudo quanto é medicamento novo. Junto com isto tudo, você tem dezenas de simpósios satélites para falar da nova droga para tratamento da esquizofrenia.

Lá não tinha nada disto. Só tinham dois estandes grandes de livros científicos, principalmente da parte social. Foi um congresso de 4 dias, com quase mil tópicos. Cada mesa redonda com 4 tópicos. Eu não vi um tópico – eu não estou exagerando – sobre esquizofrenia, sobre depressão, sobre psicose, sobre as doenças. Eu vi muitos tópicos, por exemplo, sobre processos depressivos devido à migração nos países em desenvolvimento. Um nordestino que sai de lá e vem pra cá, cai nessa selva… Problemas, por exemplo, de ansiedade gerados pelo subemprego. Uma quantidade enorme de problemas devido a acidentes climáticos. E as guerras civis. Mas era muito, muito, sobre o que é a sociedade causa no ser humano, do ponto de vista mental. E eu falei: “Mas gente, é isto que nós temos que ver no Brasil.”. Então, na realidade, eu acho que esse é o futuro da Psicofarmacologia quanto ao problema das drogas: o que leva o ser humano a isso? Não é a droga em si. Se eu tenho maconha em cima da mesa, ela vai ficar um século aqui se o ser humano não utilizar. Agora, eu quero saber por que o homem utiliza. E esse não é um assunto médico, mas de questões básicas da humanidade. Eu vou no 22º ou 23º, que vai ser em Londres, e vou levar um grupinho daqui. A minha ideia é ir lá contar que o CEBRID existe e que nós queremos ver se conseguimos fazer com que a Psiquiatria Social comece a entrar no Brasil. Essa vai ser a minha briga agora em novembro.

D: Eu queria voltar um pouquinho. O senhor falou um pouco, lá atrás, sobre a utilização da maconha como algo que pode ajudar no controle da fissura, enfim…

CARLINI: Isso para doença, então?

Atualmente, um dos tópicos é o uso da maconha para o tratamento de problemas de epilepsia. Há 40 anos atrás, alguns dos principais trabalhos científicos que deram início a este debate vieram daqui. Inclusive, foi a primeira vez no mundo em que se falou em canabidiol na terapia da epilepsia. Trabalho clínico. Aqui você pode ver o primeiro trabalho clínico falando do canabidiol, dizendo que ele não é tóxico. E mais uns 4 ou 5 trabalhos comentando sobre a parte experimental, com animais, que a gente fez.

D: Adorei a frase com a qual o senhor termina: “Vamos acabar importando remédios à base de maconha como já fazemos…”. Já começou, né? Teve uma matéria há pouco tempo na televisão falando justamente de um casal de altas posses, com uma filha que tem um tipo específico de epilepsia, e que começou a importar canabidiol. A mãe, muito corajosamente, vai a público e diz: “Eu estou tendo de traficar…”. E ela reforça: “E a palavra é esta: eu estou tendo de traficar uma substância ilegal para poder tratar minha filha.”. É isso: ela está tendo de importar ilegalmente uma substância que lá fora é legalizada…

CARLINI: É, parece que agora ela conseguiu uma licença para poder importar… Já está havendo mesmo… Nesse ponto, para o simpósio da semana que vem, já recebemos duas propostas de empresas americanas que querem abrir um estande. Uma delas, para mostrar os produtos medicinais que já estão vendendo; a outra se diz a maior clínica terapêutica do mundo que usa produtos a base de maconha, com 30 mil pacientes. Eles já estão querendo entrar. A gente não aceitou de jeito nenhum.

D: Bom, o senhor contou a situação emblemática da fila aqui em frente, e de como isso interpelava o senhor como um exemplo concreto do desrespeito com o qual os usuários do sistema de saúde eram tratados…

CARLINI: E não só no Hospital São Paulo, que até começou a dar um pãozinho com café…

D: Sim, aquela fila como um símbolo do Brasil. Mas não ficou claro pra mim em que momento o senhor encontra a temática das drogas. Em que momento isso se transforma em uma temática de interesse, de pesquisa, de trabalho?

CARLINI: São dois pontos, dois momentos bem diferentes. O primeiro foi o interesse pela droga. Pela maconha. Eu não estava nem interessado. Como estudante de Medicina, eu tive aulas com o Professor José Ribeiro do Valle, que foi o primeiro cientista brasileiro – ele era médico também – a abordar o assunto da maconha sob um ponto de vista experimental e científico. Até então, só se falava sobre maconha como a erva assassina, o traficante não sei das quantas… Só se falava mal. E eram revisões clínicas feitas por psiquiatras. Só isso que se fazia. Aquela coletânea de artigos de 58 é um horror!

D: É maravilhosa como peça arqueológica.

CARLINI: Sim, lógico. Eu até cito um dos trabalhos em uma das aulas que dou sobre isto. Mas o Ribeiro do Valle dizia que era preciso estudar a maconha. E era o que ele sabia fazer, porque ele era um farmacólogo experimental. Eu comecei o meu estágio trabalhando com ele, interessado na maconha, só na maconha.

Em seguida, eu já estava no fim do curso e comecei a ser assistente voluntário dele, quando veio o interesse pelas drogas estimulantes, sobretudo as metanfetaminas. O cristal, ice… Isto porque na década de 50 – eu me formei em 57 – na década de 50 começa a haver descrições de abuso do Pervitin (que é a metanfetamina) entre estudantes universitários de Medicina. Ainda centrado na droga, eu queria saber o que a droga fazia no camundongo, se a droga aumentava o movimento metabólico, se diminuía, se fazia o animal mais agressivo, menos agressivo. E, na verdade o Ribeiro do Valle não chegava a lugar nenhum, porque esse caminho dele não era um caminho. Como o de atualmente, eu acho que não é um caminho. Ele chegou para mim um dia e disse: “Olha Carlini, nós estamos todos errados. Nós estamos estudando a maconha que o homem usa, e isto é um erro; nós temos é que estudar o homem que usa a maconha.”. E essa frase se tornou básica para mim. A partir daí eu comecei a ficar interessado nisso.

Ribeiro do Valle era um fisiologista clássico, que fazia farmacologia, e tinha também uma sabedoria mineira imensa. Ele me ensinava coisas de filosofia de vida importantes, através de ditados de Minas Gerais. Era uma coisa maluca. Alguns ditados que até hoje me marcam. “Carlini, você vai fazer pesquisa? Então confie apenas na forte força do seu fraco braço.”. Afinal: não desista fácil, vá em frente. E isso me ajudou muito a não desistir da profissão diante das dificuldades.

Então, eu comecei a trabalhar. Fui para os EUA com a ideia de aprender Psicofarmacologia em um contexto mais amplo, com uma bolsa da Fundação Rockefeller. Ali, eu trabalhei no Departamento de Farmacologia, muito ligado a um famoso psiquiatra americano, Daniel Fridman, e a um famoso psicofarmacologista americano, Nicolas Giarno. Ambos morreram. Ambos da Universidade de Yale. Lá eles discutiam abertamente os aspectos sociais.

D: Ok… Então o senhor estava se formando – e quando eu digo “se formando” não é apenas no sentido do diploma, mas enquanto pesquisador, enquanto ser humano, e enquanto um ser humano que é pesquisador, e que está se interessando por este tema. Ao mesmo tempo – coloco aqui como afirmativa, mas é uma pergunta -, estava se constituindo um cenário brasileiro de pesquisadores e de pessoas interessadas no tema, correto?

CARLINI: Eu tenho a impressão de que Ribeiro do Valle teve uma influência muito grande nisso. Eu comecei a trabalhar com ele na década de 50. Ele recebeu vários estagiários de fora, e depois teve seus discípulos (dentre os quais, eu sou o mais velho), que deram continuidade ao trabalho. Então, se você pegar, por exemplo, lá para o Sul, tem o Takahashi, com trabalhos importantes, muito citados, e que criou uma escola científica da maconha; tem o Zuardi, de Ribeirão Preto, que é psiquiatra e tem uma série de trabalhos científicos sobre o canabidiol. Ambos são ligados à Escola Paulista de Medicina, que foi onde surgiu o movimento mais científico da maconha, e não o movimento mais ideológico, que define maconha como coisa de preto. Então, são 3 centros: CEBRID, o centro do Reinaldo Takahashi em Santa Catarina, e o centro do Antônio Zuardi em Ribeirão Preto. Do Zuardi, saíram mais uns 2, e do Takahashi também saíram outros. Temos também o Crippa, que acho que agora está em Minas Gerais, e temos agora essa série grande de pesquisadores mais jovens que estão começando, mas acho que o início desse movimento de renovação da maneira de encarar a maconha foi do Ribeiro do Valle.

E começa a haver também um movimento muito rico – e aí eu não sei se é a partir dos psiquiatras, sociólogos, economistas… – para denunciar a força da indústria farmacêutica em forçar o tratamento quando não deveria haver tratamento.

D: Mas o senhor diz que quando o senhor e a professora Solange começam a fazer esta pesquisa qualitativa encomendada pela OMS, vocês começam a se deparar com outras coisas. O senhor disse, inclusive, que aquilo lhe permitiu o reencontro com ideias que o senhor já tinha a respeito das questões sociais. O senhor está dizendo que desde o início do século XX já havia uma tradição na psiquiatria voltada ao tratamento de usuários de drogas, mas sem controvérsias. O senhor consegue identificar algum momento em que começaram a aparecer essas controvérsias? Em que momento começaram a aparecer outras vozes dizendo outras coisas sobre como tratar essas pessoas?

CARLINI: Isso começa a partir da década de 60. No Brasil é mais difícil precisar, mas tem muito a ver também com o problema de como tratar o emaconhado, ou o maconheiro. Começa a haver, então, pessoas duvidando da necessidade de se internar as pessoas por causa do uso de maconha. Começa a haver também pessoas duvidando da eficácia da terapêutica, do tratamento, por exemplo, com antidepressivos. Tem um cara na Inglaterra, Charles Medawar, que tem um livro publicado sobre o número de doenças que aparecem por causa do uso de antidepressivos. Ele parou de publicar há uns 10 anos atrás. Ele foi um cara que chama muito a atenção. E começa a haver também um movimento muito rico – e aí eu não sei se é a partir dos psiquiatras, sociólogos, economistas… – para denunciar a força da indústria farmacêutica em forçar o tratamento quando não deveria haver tratamento. Nessa época eu já começava a encontrar essas dúvidas. O uso excessivo, por exemplo, de benzodiazepínicos no Brasil; o uso de ansiolíticos; o uso de antidepressivos no tratamento para emagrecer; o uso de anfetaminas, também para emagrecer. Tudo isso sem justificar a relação de risco e benefício. Isso que foi fazendo surgir (ou ressurgir, sei lá) correntes opostas a esse tratamento hegemônico, calcado em internar e enfiar, sei lá, neurolépticos ou antidepressivos em qualquer tratamento.

D: É o mesmo período, me parece, em que está surgindo com força, no cenário internacional, o movimento da Reforma Psiquiátrica de duvidar da eficácia do manicômio como espaço de tratamento. É nessa mesma época?

CARLINI: Sim, é o mesmo movimento. Eu acho que foi uma interrogação global a respeito dos tratamentos existentes. Inclusive da chamada “dependência de drogas”, que a OMS considera uma doença. Foi aí que começaramm a surgir, por exemplo, na Itália, a desinstitucionalização, Franco Basaglia… Foi assim que surgiram aqui os CAPSad… E, paralelamente, surge também o desafio a respeito da psicofarmacologia. Eu dou uma aula que eu chamo de “psicofarmacologia ao contrário”. Esse é o título da aula. A ideia surgiu quando eu estava assistindo a um programa na Bandnews, chamado “Saca-Rolha: Um Jornal ao Contrário”. Uma das coisas que caracteriza o programa é que eles fazem justamente o contrário daquilo que você espera. O que me chamou a atenção é que eles elaboraram um episódio que diz exatamente o que eu penso sobre a Psicofarmacologia. Eles contam a história de um trabalho científico verdadeiro: o sujeito vem com a voz toda empostada, falando de um trabalho científico na Inglaterra, e conta que mostraram que o sexo faz o homem perder peso. Bom, aí entra um segundo sujeito, com a voz mais empostada ainda: “É por isso que o casamento faz o homem engordar.” (risos). É uma coisa incrível! É o saca-rolhas que é o contrário! E eu pensei que a Psicofarmacologia é exatamente isso, ou seja, faz o contrário do que você espera. Eu tenho uma aula em que mostro coisas inacreditáveis. Você sabe que agora, a última palavra para a Psiquiatria não é depressão, não é ansiedade, muito menos psicopatologia: é felicidade. Ou, melhor dizendo: a infelicidade (unhappiness). Você precisa ver o número de artigos científicos que existem, publicados em boas revistas, onde eles experimentam drogas em doses subterapêuticas em indivíduos normais, para melhorar a capacidade de contactuação, o raciocínio, deixar o estado de espírito mais equilibrado, etc… Não é para doença nenhuma. E agora criaram uma coisa que eu achei a pior dos últimos 10 anos – tem até a OMS no meio e Prêmio Nobel comentando – o tratamento da infelicidade. Agora, pela Psicofarmacologia, como é que você mede a infelicidade? Primeiro, o que é? Você sabe que tem agora um índice de felicidade, um “felicitômetro”? E você já tem inúmeros trabalhos publicados em boas revistas, onde eles estão usando diferentes substâncias para verificar se melhora o nível de felicidade. Já tem até um país ideal em nível de felicidade: é o Butão.

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