O trabalho clínico-político com o Sujeito no campo das toxicomanias

Marta Conte

Este artigo propõe situar questões recorrentes no trabalho clínico no campo das toxicomanias, a partir da escuta de pacientes que têm como queixa principal a necessidade de controle do uso de drogas por conta dos efeitos inibidores no processo de subjetivação e de engajamento desejante, seja no trabalho, na vida em família, de casal, no social, no esporte, na política e nas produções culturais e artísticas. Situaremos algumas contribuições da Psicanálise e da Clínica Ampliada aliada à Redução de Danos para o campo da Saúde Mental, retomando movimentos, publicações e debates que auxiliaram a construir um trabalho clínico-político1 no campo das toxicomanias.  

A construção de um trabalho clínico-político no campo das Toxicomanias

A abordagem da Saúde Pública voltada para os usuários de álcool e outras drogas acompanhou os avanços promovidos pela reforma psiquiátrica e pelo movimento da luta antimanicomial, o que significou o reconhecimento de direitos e deveres dos loucos e, junto a eles, os das pessoas usuárias de álcool e outras drogas. Nos fóruns da luta antimanicomial nos anos 90 é que se passou a dar maior visibilidade à pessoa usuária de drogas, como um sujeito de direitos a ser acolhido na rede de serviços do SUS. Naquela época, emergiram no debate aspectos fundamentais para a consolidação de uma Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas no RS, tais como: responsabilidade individual, responsabilidade penal, liberdade de escolha, descriminalização, diversificação de modalidades de atendimento e de tratamento, qualificação na interface da saúde e lei, dispositivos intersetoriais (esporte, lazer, cultura, qualificação profissional), educação permanente, entre outros.

O acesso aos direitos não deveria prescindir do desejo subjetivo, pois é dele que se criam as condições para que o sujeito venha a exercitar o cuidado de si e a desejar um projeto singular de vida.

Ao longo do processo de consolidação da Reforma Psiquiátrica foi dada ênfase a aspectos fundantes da cidadania como os direitos sociais, os cuidados psicossociais e as formas de auxílio para viver, na transição entre a instituição total e uma reinserção social (TENÓRIO, 2001). A psicanálise vem se somar situando que o acesso aos direitos não deveria prescindir do desejo subjetivo, pois é dele que se criam as condições para que o sujeito venha a exercitar o cuidado de si e a desejar um projeto singular de vida. A psicanálise convida o sujeito a uma posição de implicação e autoria sobre sua vida e sua inserção no laço social. Neste sentido, tem sido fundamental retomar a clínica das toxicomanias para avançar para além das conquistas de direitos para as pessoas que consomem álcool e outras drogas (CONTE, 2004).

Nos anos de 2003 e 2004 a Associação Psicanalítica de Porto Alegre (REVISTA DA APPOA, 2003, 2004) elegeu como tema uma espinhosa especificidade: as toxicomanias. Em torno de 20 psicanalistas se ocuparam da escrita sobre sua clínica com toxicômanos e dessas experiências relatadas publicaram-se duas revistas: A direção da cura nas toxicomanias e Tóxicos e Manias e se fez uma jornada. Foi um debate muito importante e necessário à época, para chamar a atenção da comunidade psicanalítica, estudantes e sociedade em geral para o que estava se produzindo e escutando no âmbito desta clínica: priorizar o sujeito e não enfatizar a droga que consome; a necessidade de diálogo com outras instituições e áreas do conhecimento; a integração de diferentes práticas terapêuticas no tratamento e a aprendizagem no manejo de questões políticas e jurídicas. Os espinhos do tema remetiam ao que, nesta clínica, questiona o alcance de uma análise, também as especificidades no estabelecimento da transferência e as intervenções clínicas a serem empreendidas para além da interpretação. Outro aspecto a ser desvelado é o fato de as toxicomanias espetarem um dos sintomas centrais da nossa sociedade de consumo, explícito no imperativo: CONSUMA! que contém uma promessa de gozo, a qual engata o toxicômano de forma especial e tem movimentado o mercado global.

Por outro lado, o consumo de drogas está atrelado a um ideal social de liberdade, típico da sociedade contemporânea ocidental, e se estabelece a partir de uma negação das relações de dependência com as pessoas de referência, numa tentativa de alcançar uma condição de relativa “autonomia”, e a droga é eleita como objeto de “desejo”, encenando uma alternância entre falta e gozo, sem deslocamento metonímico possível, como aponta Mendes Ribeiro (REVISTA DA APPOA, 2003).

Ao considerarmos as toxicomanias como sintoma social, não pelo grande número de indivíduos que fazem uso de drogas na atualidade, como assinalou Melman (1992), mas por inscrever-se no discurso dominante, apontam o mal-estar de nossa sociedade na busca direta e imediata do objeto, sem mediação de um terceiro. Na relação dual com a droga, o terceiro que articula o laço não conta, e, isto nos implica diretamente na função de recuperar uma posição de alteridade no social e no tratamento, pontos-alicerce desta clínica. E, na dimensão clínico-política que nos concerne desvelar o que este sintoma denuncia, e não criminalizar, excluir e julgar. sinaliza Mendes Ribeiro (REVISTA DA APPOA, 2004).

Para lidar com o tema da adição às drogas, precisamos nos desembaraçar da sedução e do entorpecimento decorrente deste imperativo de consumo e reconhecer que há uma exclusão social em relação aos toxicômanos pela criminalização do consumo de drogas, e pela forma de gozo que escolhem, pontos difíceis de serem tolerados porque tocam a moral vigente e a cada um de nós. Cabe lembrar que o grande esquecido nesta ênfase dos objetos a serem glorificados e consumidos: é o próprio sujeito consumidor, verdadeiro eixo da engrenagem social. E é este que colocaremos em foco neste artigo.

A entrada da psicanálise nas práticas de saúde mental, além de provocar uma crítica aos efeitos na produção de subjetividades decorrentes dos ideais da nossa sociedade contemporânea, colaborou também com o aprofundamento do mapeamento diagnóstico e diferentes manejos clínicos, com a escuta da dimensão subjetiva e da implicação desejante e com as possibilidades transferenciais e de direção da cura em geral, e nas toxicomanias, em especial. 

Uma forte influência da psicanálise neste campo auxiliou a problematizar práticas de anulamento subjetivo, questionar os ideais de abstinência e as formas de abordagem que agravam o sofrimento psíquico e aumentam a vulnerabilidade frente ao gozo do Outro que aprisiona. Ao falar-se de abstinência na perspectiva psicanalítica, para a clínica das toxicomanias, trata-se de remeter à posição que o próprio analista ocupa e que coloca em jogo na direção do tratamento (CONTE, 2004, p.26). O que está em questão é a abstinência em relação aos próprios ideais e o que seria o bem para o paciente.

Por outro lado, desde as primeiras experiências de Redução de Danos no Brasil, um corpo de conhecimentos se construiu a partir das práticas de campo dos redutores de danos, dos profissionais e dos movimentos sociais. As legislações em RD foram respaldando a constituição de Projetos e Ações em inúmeros municípios do país2. E as políticas de Aids e Saúde Mental (BRASIL, 2003) mantiveram vivas as propostas de RD indicando sua implantação em toda a rede e realizando capacitações, cursos e fóruns. Mas os investimentos e a manutenção dessa diretriz de trabalho em projetos e ações sempre dependeram da vontade política, não sendo suficiente a correlação de forças entre os ativistas da RD e os defensores da Psiquiatria aliada às Comunidades Terapêuticas no exercício em Conselhos Municipais, Estaduais e Nacionais de Política sobre Drogas para garantir a sustentabilidade destas iniciativas.

Colocamos em um artigo (RAUPP & CONTE, 2020) que o envolvimento de pessoas que usam drogas em processos de discussão, em programas comunitários e em instâncias de controle social, pensando, criando e produzindo intervenções para suas questões, também precisa ser incrementado e tem se mostrado fundamental para a produção de pesquisas e intervenções que não falem sobre as pessoas sem a sua participação.

Aprendemos com a redução de danos que é uma ética de cuidado, estratégia clínico-política e diretriz de trabalho. Reduz preconceitos sociais e oportuniza a construção conjunta de conhecimentos no ato de corresponsabilização do cuidado com o usuário, sua família, rede intersetorial e rede de apoio, ampliando assim o exercício de cidadania dos usuários e as possibilidades terapêuticas em suas abordagens.

Esses aspectos ainda estão em debate nos dias atuais e é necessário nosso  engajamento para trazê-los para a proposição de uma nova Política Nacional sobre Drogas que seja anti proibicionista, antirracista, antimanicomial e pelos direitos humanos dos usuários de drogas, conforme se vem discutindo em fóruns organizados pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (REDUC), Associação Brasileira de Redutores de Danos (ABORDA), e pela Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (ABRAMD), entre outros.

Como desdobramento do avanço deste debate que inseriu as demandas dos usuários de drogas no campo da saúde mental, se fez necessário a sensibilização dos profissionais de toda a rede intersetorial com as ferramentas da RD para um acolhimento ético, sem preconceito, com Plano Terapêutico Singular discutido de forma intersetorial e com atenção às urgências. Esta proposta se realizou com a criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS, 2011) consolidada pela Portaria 3088 de 2011 que previu a criação, ampliação e articulação de 17 pontos de atenção à saúde na rede no âmbito do SUS, bem como os diálogos com as instâncias da Justiça, para discussão e acompanhamento de casos de forma intersetorial. Nesta linha, a metodologia desenvolvida por Figueiredo (2004) denominada de Construção do Caso foi um ponto central da contribuição da psicanálise tanto para a psicopatologia, por meio da construção diagnóstica e dos indicadores para o tratamento quanto para a saúde mental, por meio da aplicação dos diferentes dispositivos de atenção psicossocial, permitindo qualificar as discussões de caso e seus encaminhamentos com participação de toda a equipe interdisciplinar e outros atores da rede formal e informal.

Retomar a clínica, mas que clínica?

Através da clínica ampliada (FIGUEIREDO, 2012) se pode pensar a ampliação das concepções de clínica da dependência química, para fazer-nos caminhar, avançar na construção de um novo saber, que responda as demandas de tratamento dos toxicômanos e com possibilidades de interrogação daquilo que está instituído e que, muitas vezes, fracassa.

Buscamos pela clínica ampliada estabelecer um diálogo que aproxime a Psicanálise e a Redução de Danos, para forjar um caminho de construção de cidadania e, assim, facilitar ao sujeito imerso na toxicomania reinserir-se no laço social.

Estas trocas permitiram, muitas vezes, a entrada de um terceiro, alteridade, para romper com a relação dual, intensa, exclusiva e mortífera com as drogas, interpondo-se algo que permite restabelecer um circuito libidinal/pulsional

Ao articular Psicanálise e Redução de Danos constata-se que a redução de danos nos levou mais próximos da voz dos usuários em condições de exclusão, problematizando fatores de risco, como: os imperativos sociais de consumo, a influência da publicidade, que referenda identidades estandartizadas, de parecer ser, o rompimento de laços, o moralismo, o preconceito e a criminalização. A redução de danos entre profissionais de saúde tenta marcar uma diferença com a posição médica, acompanhando os toxicômanos, menos pelo ideal de saúde e mais por aquilo que é viável para cada paciente. Propõem-se esquemas de proteção, sem necessariamente exigir abstinência, a não ser que o uso intenso apresente situações de risco de vida. Uma constatação bastante produtiva na perspectiva da redução de danos e da psicanálise foi analisar a extensão do que ocorria nas trocas entre redutores de danos e usuários. O que iniciou pela troca de seringas tomou significações de laço. Junto com a troca de seringas, os usuários, ao sentirem-se investidos, passaram a trocar olhares, cuidados, investimentos e pedidos de orientação. Estas trocas permitiram, muitas vezes, a entrada de um terceiro, alteridade, para romper com a relação dual, intensa, exclusiva e mortífera com as drogas, interpondo-se algo que permite restabelecer um circuito libidinal/pulsional (CONTE, 2003a, p.29).

Interessa-me a partir da articulação da clínica ampliada, da psicanálise e da redução de danos sinalizar a importância de se fazer a escuta para além e para aquém da droga, e com isto ampliar a possibilidade de fala e de deslocamento sintomático, bem como de enunciação e engajamento de um sujeito em análise. Umas das situações que mais se repete no início de um processo de tratamento é a pessoa reduzir suas manifestações aos detalhes em torno do consumo e da droga, necessidade, inevitabilidade, forma de aquisição, e todos os problemas pessoais e relacionais decorrentes desta decisão. Parece uma fala que se fecha em si mesma.  Por isto é tão importante compreender a dinâmica da Toxicomanias para sustentar uma escuta que promova o estabelecimento da transferência, não competindo com a droga e que provoque o sujeito a enxergar-se, servindo de espelho e a falar e associar livremente.

E aqui nos interessa escutar o sujeito que some e é esquecido, sempre que se evidencia a química. Podemos nos perguntar sobre o que se pode fazer com o sujeito toxicômano que tenta substituir suas palavras por um ato de entorpecimento que tem como centro da cena seu corpo? Como escutar esse “maquinista” de seu corpo que tenta se preencher e se esvaziar através de substâncias químicas? De que forma fazer falar um sujeito emudecido pelo gozo do uso e abuso de um objeto? E como escutar o sujeito dominado pela necessidade (da droga) para daí cavar uma demanda e ir recuperando o acesso ao desejo?

A ética do cuidado na clínica das toxicomanias: da necessidade ao desejo

Pretendo apontar algumas direções possíveis para essas e outras questões que os pacientes chamados de “psicanaliticamente incorretos ou lixo clínico” (WAKS, 1998) nos colocam. É frequente que a demanda de parar o uso de drogas esteja deslocada para a família e, também, apresentarem uma certa rigidez identitária que localiza tanto o problema como sua solução na droga (ALENCAR, 2018). Estas peculiaridades fazem com que, até hoje, o acolhimento e escuta de toxicômanos continuem restritos a um segmento relativamente pequeno de psicanalistas. Cabe-nos reconhecer que para um sujeito advir e engajar-se em análise o trabalho com sua rede familiar e de apoio é um desafio que se deve assumir. A orientação de uma ética do cuidado (LOPARIC, 2013), que envolve relações não violentas e responsabilidades compartilhadas pode colaborar nesta abordagem. Trata-se de uma clínica instigante e difícil e por isto que precisamos dividir com outros profissionais para ampliar esse trabalho clínico-político-artesanal com toxicômanos.

Seguindo nesta linha de pensamento, situei (REVISTA DA APPOA, 2003) que “do sujeito toxicômano muito se fala, mas pouco se escuta. Muito frequentemente não se escuta o toxicômano, porque há consensos em nossa sociedade. Em geral, as diferentes instâncias que abordam a questão (escola, serviços de saúde e a justiça) não se dispõem a questionar esses consensos, resultando no ensurdecimento e no engessamento das possibilidades de um acolhimento ético. Não há muita disponibilidade para ouvir sobre suas histórias, pois os toxicômanos estão investidos de um imaginário que remete suas práticas ao gozo, à irresponsabilidade, à delinquência e à afronta aos hábitos e costumes. O sujeito, o sofrimento, seus prazeres e o mal-estar que vive ficam invisíveis, o que aparece é a dimensão do gozo com a droga.  O mais difícil frente a este poderio investido nas drogas é seguir apostando nos sujeitos com os quais trabalhamos” (p. 24).

Na dinâmica da Toxicomania podemos situar algo da ordem da privação, em que a pessoa, mesmo que forçada, submete-se a uma renúncia a usufruir tudo o que teria podido fazer, se não tivesse se amarrado na droga (PETIT, in OLIEVENSTEIN, 1990).

E é nessa amarração na droga que encontraremos as “chaves” que destravam os processos. Para dar um passo a mais, exponho a seguir um dispositivo clínico, formulado no trabalho de tese (CONTE, 2003b) citado anteriormente e que favorece a compreensão da dinâmica das toxicomanias. Esse dispositivo desenvolvi num artigo (REVISTA DA APPOA, 2003) no qual define o eixo necessidade-demanda-desejo como forma de embasar a transferência nesta clínica. Articulados a esses termos ressaltamos três aspectos que caracterizam o tempo lógico (LACAN, 1945/1998): instante de ver, tempo de compreender e momento de concluir. A intersecção destes dois eixos delineia uma escuta e uma aproximação com a realidade psíquica do paciente, sem necessariamente, precisar fixar-se em diagnósticos estruturais. Esse dispositivo oferece uma leitura considerando os diferentes momentos do processo terapêutico e a direção da cura, para criar condições de saída de uma posição de extrema alienação na relação que o sujeito toxicômano estabelece com a droga.

O momento de chegada ao tratamento atesta um desfalecimento da montagem na qual o toxicômano se perdia para conservar-se. Aí é fundamental favorecer este encontro entre a montagem toxicomaníaca e o dispositivo de cura, criando um campo – o da clínica psicanalítica das toxicomanias. Este dispositivo se vê forçado a inventar seu próprio lugar.

Numa primeira etapa, o da “necessidade”, é também o instante de olhar. Nesse instante a direção do tratamento salienta uma escuta analítica, que permita a função de metáfora, na qual se arranca da “necessidade” algo simbólico que poderá ser traduzido em demanda. Neste contexto, a reorganização psíquica do tempo e do espaço é propiciada pelo acolhimento, acordos, combinações, limites, horários e espaços de fala. Outro aspecto beneficiado por esta operação é o reconhecimento de uma imagem, de um eu e de um tempo lógico e singular. O que caracteriza, então, este primeiro momento, denominado de o instante de olhar, para o toxicômano que, literalmente, não se vê? Ele perdeu o brilho do olhar do Outro e se perdeu como imagem própria, porque passou a identificar-se somente com o “tóxico”, e este está no lugar de seu ideal, resta-lhe a posição de lixo, refugo, objeto caído, objeto perdido. A direção do tratamento será o de resgatar o ideal que foi depositado no “tóxico”, restituindo ao sujeito suas próprias condições subjetivas.

Ele perdeu o brilho do olhar do Outro e se perdeu como imagem própria, porque passou a identificar-se somente com o “tóxico”.

No tempo de compreender, através do incentivo à fala e à associação livre, o paciente passa a verbalizar suas fissuras, seus medos, fragilidades, necessidades e sonhos, abrindo para a reflexão entre o pensamento e a ação. Sua palavra passa a ter valor, pois será retomada assim como o que aparece de desejo será reafirmado pelo analista.  Privilegia-se a palavra, pontuam-se atos falhos, recoloca-se o que o paciente diz desejar, auxilia-se no estabelecimento de limites e na sustentação dos projetos pessoais, sem descuidar os actings outs que, às vezes, insurgem-se como puro ato de violência. É o momento de perguntar-lhe qual a sua participação na desordem da qual se queixa e estimular a historizarão que delineará um lugar na filiação e a ressignificação do lugar no laço familiar.

O essencial no momento de concluir é o trabalho de conclusão do luto do “tóxico” que se desloca da posição de objeto ideal na relação com o sujeito. Este trabalho consistirá em fazer vir para o lugar do buraco escavado no real, o conjunto do sistema significante. Seria, então, uma introjeção do objeto perdido, enquanto impossível. O toxicômano torna sua experiência com a droga algo verdadeiramente inesquecível porque o desejo recalcado (droga) será lembrado como necessidade, trazendo consigo o traço de ter cumprido uma interdição, e isto fica incorporado em sua vida (PETIT, 1990).

O momento de concluir, em um tratamento, ocorrerá quando a lei simbólica se tornar efetiva, não só no aspecto da interdição dos objetos (entre eles, a droga), mas também de acesso ao reconhecimento do desejo. Podemos acompanhar o que ocorreu desde aquele pedido inicial de livrar-se de um sintoma (uso de drogas) se transforma em sintoma propriamente analítico e daí se desdobram questões sobre o sujeito, sua história, posição familiar, na medida que a droga se inscreve em um estatuto de significante (CONTE, 2003a).

Essa perspectiva tira de foco o grande ideal de muitas abordagens terapêuticas que colocam a cura em uma equivalência com o objetivo de abstinência total das drogas.

Em toda a minha produção sobre o tema desde anos 90, entre elas a tese de doutorado (CONTE, 2003a) conceituo as toxicomanias de acordo com Le Poulichet (1990), como um tipo de relação intensa e exclusiva com as drogas, denominada de operação de farmakon. Esta expressão remete à droga tanto como remédio quanto veneno, dependendo da dose. Essa operação define as toxicomanias e as diferenciam do simples uso de droga.

Na operação de farmakon a droga se transforma em algo “tóxico”, com certa função na vida psíquica.  E há uma exclusão do Outro e a interrupção dos recortes pulsionais. Ela engendra a constituição de um “novo corpo” como “máquina”, frente o qual seu maquinista é o toxicômano que detém um saber real sobre como abastecê-lo para que esta operação cumpra a função de interpor algo entre ele e o Outro.

É na operação de farmakon que podemos identificar o “toxico” a partir de diferentes funções na vida psíquica: de suplência e de suplemento.

As toxicomanias de suplência respondem a uma radical suplência narcisista, dando testemunho do desfalecimento do Outro enquanto terceiro. A operação de farmakon, nestes casos, é uma forma de resistir a uma invasão de um fluxo de tipo materno, na tentativa de produzir uma borda que possa fechar algo do corpo e “tapar os orifícios” contra essa invasão. A finalidade dessa operação nas toxicomanias de suplência é colocar um limite no gozo do Outro e conservar a subjetividade do toxicômano.

Há um real presente, e o Outro não garante que a palavra defenda o sujeito, necessitando que o corpo se transforme em “máquina”. Trata-se de um corpo que não foi suficientemente velado e assumido por um Nome que o representa. No mesmo momento em que o toxicômano começa a tratar seus órgãos, diz Le Poulichet (1990), eles deixam de ser silenciosos, saem da sombra, e ele fica impedido de dormir e de sonhar, e também, fica exilado de seu desejo.

A finalidade dessa operação nas toxicomanias de suplência é colocar um limite no gozo do Outro e conservar a subjetividade do toxicômano.

As toxicomanias de suplemento, por sua vez, referem-se a próteses narcisistas, que são buscadas para sustentar uma imagem narcísica. Estas próteses são suplementos que auxiliam a enfrentar as discordâncias entre imagem real e imagem ideal e a determinar um ajuste na imagem narcísica. É uma forma de driblar a castração e interpor algo para amenizá-la e conservar-se em um lugar fálico, mantendo uma imagem de perfeição em um ajuste no qual o real se aproxima do ideal.

O sujeito toxicomano sente-se desprovido:

O que pode legitimar esse recurso é a busca de ‘algo’ que não teria sido dado a pessoa e o qual considera que os outros dispõe: um suplemento fálico imaginário. A busca de uma insígnia fálica e de um reconhecimento, que precisamente fracassa. A operação de farmakon sustenta então, esta dimensão do suplemento, uma verdadeira ‘interrupção’ dos conflitos psíquicos.

Le Poulichet, 1990, p. 136

Aqui há a suspensão do desejo na narcose; o indizível serve para que não haja palavras, e assim o sofrimento é anestesiado e não falado. Já a angústia tem diferentes modulações nessa operação. Quando orientada pela suplência, a angústia indica um desamparo subjetivo frente a perda de objeto. Quando orientada pelo suplemento, a angústia é sinal da posição objetal do sujeito.

A pergunta que marcará a direção do tratamento é: o que o toxicômano tenta conservar com o “tóxico”? Qual será o destino do “tóxico” ao longo do tratamento?

Quando há uma indiferenciação sobre a função da conservação do “tóxico”, encaminham-se tratamentos nos quais as direções são padronizadas, despersonalizadas e a cura igual para todos. Por isto é tão importante compreender a serviço do que está a droga na vida psíquica do toxicômano.

Cabe ressaltar que, nesta clínica, desde os primeiros contatos com o paciente, o engajamento da família quando existe, é extremamente necessário. E na sequência quando a transferência está estabelecida pode-se propor um diálogo interdisciplinar com psiquiatra, terapeuta ocupacional, educador físico, entre outros, inseridos na rede de cuidados.

No processo de tratamento das toxicomanias, frequentemente ocorre um momento inicial em que o toxicômano evidencia a “necessidade” da droga, sem poder associá-la com sua história, passando por uma transformação da exigência de gozo no uso de drogas para uma demanda de tratamento, até uma reorganização psíquica, na qual seja possível falar em nome próprio, acedendo ao próprio desejo.

O toxicômano se vê fragmentado, sem palavra própria, justamente porque é o “tóxico” que cumpre a vez de assegurar um enlaçamento entre o Real, o Imaginário e o Simbólico.

Para entender o que ocorre no período da abstinência da droga, do ponto de vista psíquico, quando não é mais a droga que organiza, na falta dela, o toxicômano entra em caos psíquico, no qual os significantes correm para todas as direções sem fazer conexões significantes. Isso se assemelha ao caos psíquico que ocorre em muitos momentos da adolescência, no percurso da construção de identidade.

A partir de cada usuário de drogas em particular, o analista precisará, a todo o momento, não se conjugar com o fechamento do desejo, nem de seus questionamentos, nem competir com a droga exigindo abstinência, pois, apenas deste modo, a dor de existir – seus espinhos – virão a ser falados, ao invés de encenados/manipulados” (REVISTA DA APPOA, 2003, p. 7-8).

O que dificulta muitas vezes que se amplie a análise da situação para localizar qual a função da droga na vida psíquica e daí construir outras possibilidades de fala é a potência investida na droga, como o encontro com um objeto de satisfação total. O trabalho a ser feito vai na direção do paciente admitir a castração na medida que o objeto (droga) falha na sua promessa de gozo, pois está desde sempre interditado, e com a intervenção de parcialização o toxicômano passa a distribuir seus investimentos não colocando mais tudo em um único objeto. A partir da diretriz de trabalho da RD a parcialização é praticada na medida que valoriza pequenas conquistas em todo processo de tratamento, e tem em vista que os objetivos terapêuticos são construídos com o sujeito, passo a passo, com o mínimo de exigência e muita flexibilidade para não criar injunções frente a qual o sujeito se subtrai, anestesia a angústia e a dor e somente encontra arrimo através do consumo de drogas. Esses princípios da RD também influenciam os primeiros contatos para ensaiar o tipo de transferência que pode ser favorecida desde o acolhimento. 

O essencial, para facilitar a transferência, é traduzir o uso compulsivo de drogas, que se encontra no registro de uma resposta necessária, em sintoma – como fonte enigmática de um sofrimento – permitindo que o paciente dirija suas queixas ao analista. Este giro coloca o paciente em uma nova posição em relação à sua palavra. A transferência é preferencialmente simbólica, contudo há uma especificidade que se constata e que precisa ser considerada nesta abordagem. O paciente convoca o analista para que saia de sua posição, na esperança de que se abstenha, ou para criticá-lo, caso responda ao convite. Como se trata de uma problemática edípica, todo o cuidado deve ser tomado para não reanimar um pai interditor, centrando a intervenção no reconhecimento de uma função paterna. Para isso, será necessário debruçar-se sobre as possibilidades de resolução do Édipo, criando as condições para que o paciente venha a admitir a castração, abandonando na medida do possível a posição objetal para transformá-la em identificação.

O paciente convoca o analista para que saia de sua posição, na esperança de que se abstenha, ou para criticá-lo, caso responda ao convite.

Desacordo entre eu ideal e ideal de eu

Trago recortes clínicos que a partir de Freud (1914) em Sobre o Narcisismo: uma introdução nos auxilia a entender o desacordo entre eu ideal e ideal de eu e função da droga na sua vida psíquica na dinâmica de uma toxicomania de suplemento. Muitos outros pacientes estão representados na fala, nos silêncios e na angústia de A.

O Eu ideal é uma instancia imaginária do narcisismo que remete ao que gostaríamos que ter sido a partir do que os outros esperam, qual teria sido o nosso lugar na expectativa dos nossos pais e da sociedade. Somos, então, objeto para o outro e recorre-se a isto para cessar a angústia e o desamparo. Já o Ideal do eu, é uma instância secundária, formada a partir do Complexo de Édipo, faz uma substituição simbólica do narcisismo primário, ela nos diz o que se deve ser, tomando como ideal algo, alguém, ideia ou valor para autorizar nosso próprio desejo. A tendência neurótica em momentos de crise é fazer com que o ideal de eu se acasale com o eu ideal. Vamos encontrar isto nas montagens narcísicas, nos movimentos de massa, nos apaixonamentos, nas formas rebaixadas de se humilhar e servir ao outro para que estas instâncias sejam suspensas (DUNKER, 2016) e nas toxicomanias.

A. no seu percurso de vida está há muitos anos na universidade, ao menos inscrito, mas não consegue finalizar o curso, e diz: “fui a primeira pessoa da família a entrar numa universidade pública e não consigo sair”. Justifica esse impasse porque não vê sentido em se formar “para os outros”, fazendo uma importante crítica ao sistema capitalista, no entanto, todo ano renova a matrícula para não perder o vínculo.

Nesta relação está “todo” na Universidade e não consegue concluir ou estaria “todo” fora e à mercê dos interesses mercantilistas do MERCADO, por isto não vai se formar para “trabalhar para os outros”. Durante a faculdade fez militância no DCE e neste longo percurso ser militante se configurou como uma moratória, auxiliando em um trabalho que visa manter vivo o ideal paterno.

Não se formar se sustenta na contrariedade que provoca quando supõe em sua fantasia que o desejo dos outros é que realize o sonho da família (ser o primeiro a formar-se em uma universidade pública).

Quanto mais nega o que não gosta nele mesmo, mais escapa para a droga. A solidão é o momento de confrontar-se com o que se é. Quais aspectos de si mesmo estão sendo negligenciados? Deixa de priorizar a possibilidade de ter vida própria, sem depender exclusivamente do trabalho familiar, com maior independência familiar e poderia formar-se para ter mais uma alternativa de vínculo de trabalho.

Fica amarrado no que desejam dele e não consegue vislumbrar algo genuíno de seu como horizonte. Está sempre em desacordo entre eu ideal e Ideal do eu, por isto a droga tem uma função de ajuste, de retificação de seu eu real.

A parcialização como intervenção tem sido útil porque propõe que algo disto que está totalmente localizado nos outros, na família, no Mercado, no Sistema Capitalista, retorne para si, diminuindo assim a entrega sacrificial ao gozo do Outro, para daí tirar algo em benefício próprio.

Por outro lado, trabalha numa empresa familiar e não se permite grandes investimentos em algum nicho de interesse próprio, por estar acomodado na função de “auxiliar” do pai, como eu ideal.  Para que haja parcialização o trabalho deveria estar remetido à alguma dimensão de alteridade, o que não acontece pela dependência que tem do pai nessa empresa. Neste sentido, A. trabalha para manter uma potência paterna não ousa usurpá-la com algum projeto singular, como se imaginariamente só tivesse lugar para UM. Quando não trabalha por causa do consumo exacerbado de drogas, tem que prestar contas ao pai em uma posição de eterna submissão. Na dinâmica das toxicomanias e, neste caso se repete, há uma lógica paradoxal que é depender da droga para ilusoriamente não precisar depender do pai, dos cuidados da mãe, e da namorada.

Manter o espaço de análise tem sido difícil e sempre inconstante, e reconhece que falar ajuda a se organizar mentalmente para tentar entender como isto (a droga) entrou na sua vida. Ele diz: “não sei como cheguei nesta armadilha”. O uso de drogas foi se instalando em sua vida, depois que passou por problemas de saúde, durante a pandemia desacreditou que seu ativismo político pudesse servir para alguma mudança, perdeu figuras de referência na família e, em meio a tudo isto, coincide com o momento de assumir-se adulto e independente. O tema do luto toma um espaço velado e resolvido pela droga ao anestesiar a dor, em momentos de extrema angústia.

E quando angustia? Quando emerge o buraco do vazio, constitutivo do humano, esse é o ponto de insuportabilidade de seu desejo pelo medo de não suportar e sucumbir. A angústia é o único afeto que não mente, na angústia tem uma verdade investida de seu desejo mais genuíno, há um medo radical de desaparecer enquanto ser ao enfrentar-se com o vazio, a solidão. Mas é fundamental bancar, atravessar esse momento, reconhecer esse momento para não se perder de si mesmo. É nesta ultrapassagem que talvez possa surgir algo radicalmente novo (Homem, 2023).  

Somente depois de muito tempo de tratamento e já podendo associar livremente A. refere como funciona a droga na sua vida psíquica. Relata várias situações de conflito familiar frente as quais após “cumprir seu papel” de forma acolhedora e colaborativa, busca a oportunidade de estar só e planeja a compensação/gratificação com o uso de drogas, imaginando um prazer intenso que o afastaria da dor, do sofrimento e do conflito, mas cujo prazer não se realiza mais da mesma forma que outrora. Sinalizo que escolhe de um lado cumprir seu papel porque faz sentido para ele ocupar-se da família e, por outro lado, busca a compensação desde o papel de usuário. Ele diz que ainda não consegue se livrar do papel de usuário, mas que esse lugar o coloca cada vez mais distante de tudo e de todos. E se estas duas dimensões fazem parte da sua subjetividade, mesmo que tenha que vivê-las separadamente, como integrá-las (interrogação). Ao colocar esta interpretação alguma implicação foi provocada, pois passa a apresentar uma posição diferente da que costumava usar com o argumento da inevitabilidade do uso.

Por estar acomodado em um lugar familiar à sombra do pai, o consumo de drogas reforça essa posição de não se mexer e não se arriscar para não “cortá-lo” e, assim, permanece sintomaticamente trabalhando em nome do pai.

Está abastecido economicamente e sem grandes desafios ou projetos de maior autonomia, e isto o leva ao incremento do uso de drogas. Seu relacionamento conjugal anterior e organização de vida sofreram interferências da família, em nome da proximidade e dependência.  Fala que os familiares “batem de frente e brigam por ele”, e ele fica sempre de fora, numa posição alienada. Todo dentro ou todo fora, por isto a intervenção da parcialização é tão importante e muito utilizada para que se desvele que a droga é um objeto interditado, parcial, diferente da idealização que o toxicômano faz em relação a ela. Evidencia-se neste caso, o que se repete em muitos outros, a pulsão que está com sua satisfação cooptada pela droga impede realizações com o relançamento do desejo para além do drama familiar no qual o toxicômano se faz refém, como “drogado da família”.  Constatamos, frequentemente, nesta clínica, que a passagem do familiar ao social seguidamente está interrompida pelo consumo intenso da droga, produzindo uma moratória forçada.

O trabalho de análise deve esvaziar esse Outro fantasmático e seus imperativos, sem favorecer a idealização facilitadora do recalque, para permitir que o sujeito se encontre com seu próprio desejo (COTTET, 1995).

Para A. foi o desejo de ficar com uma namorada que para ele está numa posição de valor, pela maturidade pessoal e profissional, que funcionou como engate, para   produzir alguns movimentos, mas sempre inconstantes.

Algumas estratégias de RD foram se construindo com A em seu Plano Terapêutico Singular (PTS) para criar uma interposição ao uso de drogas. Seu PTS inclui manter o tratamento psicanalítico semanal e psiquiátrico mensal, o uso diário do medicamento psicotrópico e interromper o consumo frequente de cocaína e envolver-se com o que gosta, o esporte e a música. Estas estratégias auxiliam num maior espaçamento em relação ao consumo de drogas. O uso só acontece quando está só, sem o olhar do Outro, seja família ou namorada. Ao analisarmos este aspecto, chegou-se no tema da solidão, vazio e enfrentar-se com seus medos.

O que facilitou um deslocamento em relação a inevitabilidade do consumo foi a intervenção que pedia associação com tudo o que vinha antes de efetivar o planejamento para o uso de drogas para ir lincando associações com os significantes que emergiam nesta narrativa, para ir costurando neste relato repetitivo de compulsão – consumo – perdas, novos significados. Este deslocamento criou alguns intervalos no consumo que ajudaram a esclarecer a dinâmica na qual o sujeito estava preso e assim ir destacando sentidos onde pareceria que a droga é um equivalente de si mesma, impondo perseguir sempre o mesmo atalho.

Este trabalho preliminar é a parte mais importante do tratamento com toxicômanos, momento de ir estabelecendo um tipo de transferência que possa promover demanda de análise e ampliar as associações e as possibilidades de fala.

É na medida que a pessoa vai se apropriando de novos sentidos em torno da droga e da sua função na vida psíquica, que um luto fica evidente, para que a droga seja interditada na possibilidade de acesso ao gozo e lançada numa cadeia de significantes. Assim uma multiplicidade de outros caminhos possíveis se abrem para serem trilhados. No buraco deixado pela droga entra o interesse pelo esporte, pela música, o cuidado com a própria saúde, a manutenção do namoro, passar a pensar em constituir família. Realizações que não estão mais completamente num registro de entrega alienada ao Outro, mas das quais ao sujeito retorna alguma satisfação e realização.

Considerações finais

 O essencial de uma cura para Petit (OLIEVENSTEIN, 1990) consiste em que aquele que “se desamarra” tem um certo trabalho a fazer, comparado ao trabalho de luto. A toxicomania é um ato, um “acting-out”, algo que não tendo sido tomado no simbólico, vai funcionar no real. Já o trabalho de luto, consiste em fazer vir, para o lugar do buraco escavado no real, o conjunto do sistema significantes, nos diz Lacan. Talvez somente quando o toxicômano consegue tornar sua droga inesquecível é que encontrará a chave para se livrar dela. Um sujeito real assumindo que sua “necessidade” (da droga) está inscrita em sua história (e não negada, esquecida, recalcada) (, p. 59).

A toxicomania é um ato, um “acting-out”, algo que não tendo sido tomado no simbólico, vai funcionar no real.

No lugar da falta de objeto, foi colocado o “tóxico”; e será necessário que o luto pelo objeto perdido seja finalizado, para que o sujeito possa ressituar a droga em uma cadeia significante e prescindir do “tóxico”, como defesa secundária. Resgatar o ideal que foi depositado no “tóxico”, permitirá restituir ao sujeito suas próprias condições subjetivas, reabrindo a experiência da falta, na qual a pulsão volta a impulsionar-se em sentido espiral e não mais em um circuito fechado (CONTE, 2001).

Na direção do tratamento, empreender-se-á que um trabalho de luto do “tóxico” estando em um lugar ideal, chegue a termo e, consequentemente, permita a criação de representações diversificadas do objeto para sempre perdido. Tendo em vista que o objeto está constituído, mas denegado pelo paciente, um trabalho maior se centrará no tempo de compreender: isso porque é muito mais cômodo lidar com o “tóxico” que falta, do que lidar com a falta propriamente dita, que remete à angústia. É possível ir rastreando os indícios que delineiam esse objeto, para recolocar o sujeito na trilha do seu desejo.

No artigo sobre o luto do objeto nas toxicomanias (CONTE, 2001) situo que as bordas e as marcas que escrevem uma história singular ficam esquecidas, por isso, será preciso desnudá-las para que o paciente passe a reconhecê-las e a contá-las em sua historização3, passando a contar-se em nome próprio. O ponto de corte e de interpelação nas toxicomanias de suplemento, para que permitam uma mudança subjetiva, não incidem sobre o sintoma, mas sobre uma posição ética frente ao preço pago para escapar da castração.

Cabe ressaltar que o risco maior ocorre quando o paciente é confrontado com um impasse: ou o tratamento ou a droga. Considerando a alienação que o paciente vive em uma operação de farmakon, esse impasse significará uma ameaça frente à qual ele procurará proteger-se com o que já conhece, o “tóxico”. Nas toxicomanias de suplência, esse impasse pode levar a uma passagem ao ato no qual o paciente sai da cena identificado com objeto “a”, pois não há mais um Outro destinatário de seu ato. Nas toxicomanias de suplemento, esse impasse pode levar a um acting out, na tentativa de demonstrar que o analista saiu de sua posição de abstinência ao competir com a droga (CONTE, 2001).

Quando trabalhei o tema em Necessidade Demanda Desejo (REVISTA DA APPOA, 2003), ressaltei que o toxicômano apresenta um empobrecimento do fantasma, da dimensão imaginária, que o impede de estruturar uma defesa eficaz na relação com a demanda do Outro. Por isto, estaria impedido de “jogar” com seu fantasma, e isso só ocorreria se estivesse amparado pelos “nomes-do-pai”4. Portanto, torna-se essencial o mapeamento dos significantes, das marcas identificatórias que podem identificá-lo e do qual possa obter valor próprio. O acesso aos “nomes-do-pai” se expressa por autorizar-se a ampliar o leque de interesses: artísticos, culturais, profissionalizantes, políticos, grupos e/ou associações, entre outros, nesta perspectiva de reconhecimento de traços que possam dizer quem ele é.

Poder simbolizar esta falta, transformando-a em uma instância psíquica, passível de ser feito um trabalho de luto, é o caminho por onde passa sua cura, não no sentido do consumo da droga, mas da travessia do fantasma.

Como nos lembra Rassial (1999), o momento de concluir não obedece a critérios estritamente objetiváveis, referindo ao fim da análise de adolescentes, mas que é bem válido para a clínica com toxicômanos:

o momento de concluir deveria conduzir o paciente a aceitar uma certa solidão,
aquela que no ser humano lhe permite autorizar-se por si
mesmo em suas escolhas de vida e, por outro lado, a manter
com os outros uma relação um pouco menos presa a ideais
imaginários e à busca desvairada de um gozo impossível

(REVISTA DA APPOA, 2003, p.54).

Ao conhecer a dinâmica das toxicomanias estamos mais próximos de estabelecer uma transferência viável, que permita acompanhar o ritmo singular de cada um: da necessidade (instante de ver) – demanda (tempo de compreender) – desejo (momento de concluir) e construir estratégias singulares de redução de danos que sirva para que o sujeito ressurja e acesse suas próprias palavras num horizonte desejante.

Na direção da cura a subjetividade é recolocada no domínio do próprio paciente com o fato de ir recuperando a consistência de sua palavra, pelo relançamento dos dizeres ao autor e reconhecendo-se nesta autoria. As intervenções vão no sentido de viabilizar que o paciente se autorize frente ao que diz, remetendo-o às suas próprias palavras e apontando para o que evidencia indícios de desejo (CONTE, 2003a).

Esse processo de ressignificação subjetiva levará a uma nova posição do sujeito na palavra, concomitantemente à instauração de novos itinerários simbólicos (CONTE, 2001), fundamental na clínica das toxicomanias.


[1] A concepção clínico-política se associa a ideia de que a subjetividade é atravessada pelos acontecimentos contemporâneos e é resultado de um processo de produção que é sempre da ordem do coletivo. Por isto, a subjetividade está atravessada por múltiplos vetores e não dá para separar o individual do coletivo, o pessoal do político e o privado do público (Passos, 2023). Assim, entende-se as toxicomanias como resposta sintomática aos ideais da sociedade contemporânea.
[2] Para aprofundar sobre a Trajetória da RD no RS, a atuação do Fórum Estadual de RD (FERD RS) e nascimento da Abramd RS que, posteriormente, se transformou em Abramd Sul ver o artigo Rodas de Redução de Danos RD: cadê você (interrogação) (RAUPP, CONTE, 2020).
[3] Historicização: através de interrogantes, intervenções e interpretações busca-se formas de abertura necessária para processar de outra maneira suas experiencias e vínculos e assim a pessoa passa a poder contar sua história desde outros pontos de vista (HORNSTEIN, 2007).
[4] Nomes-do-pai: Lacan (1964/2005) usou no plural para se referir as diferentes dimensões do pai: pai real, pai imaginário e pai simbólico para indicar a função paterna, a introdução de um terceiro que desestabiliza a relação dual entre a mãe e a criança, fazendo surgir a falta, o desejo e um sujeito. Essa função através da interdição e da castração faz a inserção da criança no universo das leis e do social.


Referências

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Marta Conte é Psicanalista, Doutora em Psicologia Clinica pela PUC/SP, Pos Doutora pelo Fiocruz/Claves, Pesquisadora no tema Drogas, Suicídio Adolescencia e Plano Terapêutico Institucional, Membro da Reduc, Abramd Sul e do Fórum Estadual de Redução de Danos (FERD RS).

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