Mulheres em grupo: um modelo de tratamento para a toxicomania
- Livia Maria Amaral Brito
- há 3 dias
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Atualizado: há 15 horas

Este texto pretende apresentar uma modalidade de tratamento para mulheres usuárias de drogas, que utiliza a abordagem psicanalítica na prática clínica grupal. Essa prática compõe o serviço do ambulatório PROMUD – Programa da Mulher Dependente Química, sediado no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP. A população atendida é encaminhada pelos equipamentos da rede SUS.
Contamos com uma equipe interdisciplinar que procura fazer um trabalho de forma integrada e colaborativa, trocando saberes e construindo um plano conjunto de cuidado e intervenção singular para cada paciente. Além dos grupos de psicoterapia de orientação psicanalítica, compõem o funcionamento do serviço: atendimento psiquiátrico, atendimento nutricional, grupos prevenção de recaída, grupos que atendem os familiares das usuárias, atendimento de enfermagem, aconselhamento jurídico e aplicação de escalas de seguimento para acompanhamento da evolução do tratamento e para a produção de pesquisas.
ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O APORTE DA TEORIA PSICANALÍTICA NESSE TRABALHO
Após décadas da prática psicanalítica sendo aplicada ao campo da toxicomania em contextos institucionais, podemos dizer que a crítica de algumas instituições psicanalíticas que se autointitulam “oficiais” a respeito da eficácia de um tratamento para toxicômanos perderam sua força diante dos resultados práticos que vem sendo apresentados nos diversos espaços de tratamento. A clínica com toxicômanos nos coloca uma série de impasses, inclusive aos próprios limites da analisabilidade. Mas a prática tem nos comprovado que a possibilidade de suplantar esses impasses está vinculada à construção de dispositivos analíticos flexíveis. De fato, é uma característica marcante da clínica da toxicomania nos interrogar sobre as estratégias de trabalho, os limites do nosso trabalho analítico e, a partir disso, lançar mão de práticas criativas, desbravar fronteiras e aperfeiçoar nossa formação para fazer frente às incidências dessa problemática que diz respeito à subjetividade do nosso tempo.
Esses desafios nos demandam uma disponibilidade para estarmos abertos a uma construção dinâmica e flexível sem perder o rigor dos princípios psicanalíticos fundamentais. Utilizamos um dispositivo que leva em conta o processo analítico do sujeito, mas que abre possibilidades para reformular o manejo do analista nesse contexto grupal. A utilização de novos recursos técnicos deve estar sempre em congruência com o lugar analítico definido pelo campo transferencial, configurado em cada momento. Não devemos, por exemplo, nos apoiar apenas no uso da técnica da interpretação clássica que, além de ser insuficiente, pode provocar o surgimento de sentimentos persecutórios.
É preciso criar condições para a expressão em palavras para o que elas tentam falar somente através de atuações intensas e muitas vezes desesperadas. Acting-outs e passagens ao ato, por exemplo, são expressões sintomáticas presentes nessa clínica. Não se trata de meros movimentos, mas têm significações e são interpretáveis. Essa descarga do agir e essas atuações prevalecem ali onde a linguagem falhou e precisamos estar advertidos dessa lógica, pois nessas situações o sujeito tenta deslocar o analista da sua posição. Freud, no famoso texto “Recordar, Repetir e Perlaborar” (1914/2018) menciona casos de pacientes que, ao serem convidados a associar livremente, nada tinham a dizer, ou seja, apresentavam uma resistência contra o recordar. Ao não recordar, o paciente de Freud expressava o conteúdo esquecido e recalcado por meio de atuações. Freud diz: "Ele o reproduz não como lembrança, mas ação, repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo" (p. 165). Mais recentemente essas estruturas clínicas tem sido referidas como “Sujeito em estado limite” Rassial (2010). O autor argumenta que são estruturas complexas que desafiam as fronteiras das classificações tradicionais da psicopatologia (neurose, psicose, perversão) e que se trata de manifestações ligadas às mudanças nas estruturas sociais e familiares contemporâneas. Testemunhamos na nossa clínica essas manifestações. Elas parecem viver em um acting-out contínuo, tentando desesperadamente afirmar a verdade do seu desejo, mas com uma dificuldade crônica de produzir narrativas e contar sua história.
No caso de manifestações de Passagens ao ato – que são menos frequentes e opostas aos Acting-outs – elas não pedem uma interpretação e nem são endereçadas ao analista. Pelo contrário, existe um desejo de sair de cena, pular fora, assim como quando os atores descem do palco para interagir com a platéia. Ou quando a emoção domina e provoca um distúrbio do movimento, por exemplo, nos casos de tentativa de suicídio. Infelizmente já testemunhamos situações dessa ordem na nossa prática com essas mulheres, revelando um desespero insuportável e impossível de elaborar em palavras.
Nestes casos, a tática a ser adotada pelo analista deve ser manter na esfera psíquica todos os impulsos que o paciente gostaria de dirigir para a esfera motora, ou seja, que algo que o paciente deseja descarregar seja utilizado no trabalho de recordar. Tal empreendimento só se torna possível se a transferência for bem utilizada, ou seja, é o manejo da transferência que serve de principal instrumento para tratar a compulsão à repetição e transformá-la num motivo para que o paciente recorde. Isso Freud nomeia de uma substituição da neurose comum por uma neurose de transferência, na qual o trabalho terapêutico pode então acontecer.
Articular um sentido ali onde foi perdido e até suportar o flerte com a morte são elementos primordiais, que convocam nossa capacidade de suportar toda essa intensidade subjetiva
Articular um sentido ali onde foi perdido e até suportar o flerte com a morte são elementos primordiais, que convocam nossa capacidade de suportar toda essa intensidade subjetiva (Brasiliano, 1997). Outro requisito fundamental e que também se apresenta como um desafio à nossa prática é, a partir do confronto com as nossas limitações, nos disponibilizarmos a trocar com outros campos do saber (dentro e fora do contexto institucional), para aperfeiçoar nosso trabalho que se baseia na escuta do funcionamento psíquico desses sujeitos.
Precisamos lembrar que a drogadição é um funcionamento sintomático do sujeito, que tem um sentido particular na sua existência e que, por si só não pode nem qualificar, nem definir esse sujeito (Brasiliano, 2008). Para conseguir alcançar uma mudança significativa no quadro, é importante primeiro levar o sujeito a compreender o sentido que o uso da droga tem na sua vida e convocá-lo a se questionar sobre ele. Não basta somente trabalhar para que ele se livre desse uso, ou mesmo somente do mal-estar e do prejuízo que esse uso provoca. As causas e o comportamento são sempre únicos para cada sujeito, embora existam algumas semelhanças que costumamos usar como referência ou sinalizadores dessa dinâmica psíquica. Nosso foco é provocar um aprofundamento reflexivo, provocar a produção de novas significações para essas vivências sem restringir a temática a momentos de abstinência ou situações de recaída.
Assim como ocorre em outros funcionamentos psíquicos, a supressão de um sintoma pode gerar o deslocamento para outras saídas sintomáticas. Após um período de abstinência da droga de escolha não é incomum testemunharmos uma paciente começar a se automutilar, fazer compras excessivas, jogar compulsivamente, desenvolver um transtorno alimentar, entre outras possibilidades. Com esses deslocamentos buscam extravasar suas ansiedades, frustrações e outras questões que não são mais sanadas com a sua droga de preferência. A nossa escuta precisa acompanhar essas mudanças, pois novas associações podem surgir e com elas novos sentidos para aquela substância podem aparecer.
Precisamos também ter paciência para acompanhar esses movimentos, tomando cuidado com os diagnósticos precipitados. Essa é uma questão frequente e que impacta nossa atuação principalmente quando trabalhamos em um ambiente interdisciplinar com predomínio de uma lógica médica. Não tratamos doenças, mas sim processos psíquicos. Estamos diante de um sujeito afetado singularmente, o que nos impossibilita de estabelecer categorias apriorísticas para as quais sua abordagem é mais ou menos indicada (Brasiliano, 2008). Nossos operadores clínicos são diferentes daqueles aplicados na clínica médica. Não podemos cair na armadilha de tentar encaixar essas subjetividades em categorias nosográficas, modelos pré-concebidos ou explicações reducionistas que visam aplacar a angústia do não saber. Lembremos que a psicanálise, trabalha com o sujeito do inconsciente, que é dividido, faltante e desejante e a partir dessa lógica deve sustentar e mobilizar sua prática.
DESAFIOS INSTITUCIONAIS
Além dos desafios decorrentes da complexidade do tema em si, envolvendo aspectos multifatoriais na sua gênese, diferentes concepções ideológicas sobre o fenômeno - que por sua vez vão determinar a escolha da direção do tratamento - encontramos desafios decorrentes também do lugar (físico e político) em que o ambulatório está inserido. A composição de uma equipe interdisciplinar, além de refletir a pluralidade de interfaces que caracteriza o tema das toxicomanias (Conte, 1995), tem a pretensão de transpor a prevalência da concepção e prática de um tratamento médico-orientado, principalmente por se tratar de um hospital-escola, atravessado por regras e dispositivos burocráticos que desafiam constantemente a nossa prática clínica.
Procuramos nos colocar, na medida do possível, como uma espécie de força de resistência dentro dessa lógica institucional, tentando amenizar e manejar seus impactos no âmbito dos grupos, uma vez que as pacientes também são atingidas por todo esse contexto. Todo acontecimento que chega no grupo pode ser aproveitado como conteúdo a ser analisado. Sabemos que todos os equipamentos públicos sofrem de problemas complexos e cada um a sua maneira. No entanto, a despeito dos percalços, temos testemunhado ao longo desses 28 anos impactos significativos no tocante aos aspectos subjetivos e sociais dessas mulheres.
Um aspecto inicial importante a ser mencionado trata-se do recorte do público que atendemos. Alguns teóricos da psicanálise de orientação lacaniana, por exemplo, questionam a existência de um tratamento que atenda exclusivamente mulheres usuárias de drogas como um subgrupo específico, argumentando entre outros fatores, de que se trata de uma escolha sintomática do sujeito e que não haveria necessidade de uma escuta específica ou segmentada por “gênero”. Por se tratar de um constructo, não caberia à psicanálise utilizar (Pacheco, 2007). Todavia, foge ao escopo deste texto adentrarmos em explanações e aprofundamentos teóricos articulados a essa problemática, mas consideramos um questionamento pertinente que não deve ser ignorado. É um debate que nos convoca a produzir construções teóricas que, ao mesmo tempo que decorrem da prática clínica, nos servem de base para a nossa atuação.
No entanto a existência desse questionamento não nos impede de abordar as demandas inconscientes, as expressões do desejo, as fantasias, as saídas sintomáticas e todos os outros aspectos inconscientes presentes nas dinâmicas psíquicas de cada sujeito que nos dispomos a escutar. Faz parte da estrutura desse tratamento inclusive contribuir para questionamentos como esse, o que procuramos realizar através das aulas oferecidas para toda a equipe como parte da nossa formação.
Uma questão estrutural que impacta o trabalho dos grupos é a rotatividade na equipe dos residentes psiquiatras. O restante da equipe acompanha as pacientes ao longo de todo o tratamento, salvo exceções de profissionais que se desligam do serviço. Essa presença constante e regular dos profissionais é fundamental para garantir a aderência ao tratamento, o vínculo terapêutico e a evolução do quadro. Estamos lidando com um perfil de mulheres cuja vida é marcada por uma grande instabilidade e desorganização em diversos aspectos, desde os cuidados com alimentação, sono, higiene pessoal, até a vida funcional, seja profissional ou social. Um espaço estruturado e organizado é um benefício inicial e mínimo que devemos oferecer como parte do acolhimento dessas mulheres que chegam com questões tão complexas.
Essa dinâmica é um tema sempre presente nos grupos. Elas se queixam sobre a mudança dos psiquiatras desde o momento em que eles anunciam o fim do seu período no ambulatório até os primeiros atendimentos com o novo médico. Mesmo estando advertidas dessa dinâmica quando iniciam o tratamento, o impacto para elas é relevante, pois trata-se de mais uma perda que precisam enfrentar (dentre tantas outras). Depois de meses de consultas semanais, com o avanço da transferência, com um vínculo construído, o trabalho é interrompido por um critério inegociável.
Esses movimentos de ataque permitem a elaboração das ambivalências, antes encenadas na relação de altos e baixos somente com as substâncias. Essas fissuras do lugar idealizado que a instituição costuma ocupar, abre caminho para uma posição de mais autonomia (Brasiliano, et al., 2021). Trata-se de uma oportunidade de manejar esse conteúdo, articulando-o com situações de abandono e rejeição que sofreram ao longo da vida. Quando elas se queixam de “ter que relatar tudo novamente” ao novo médico, aproveitamos para pontuar que ao recontar uma estória, podem revisitá-la a partir de um outro lugar subjetivo, conquistado por elas. Mas elas se queixam mesmo assim.
A interação com as diversas abordagens dentro do tratamento pode ser um desafio, mas nos cabe transmutá-lo em vantagem, uma vez que beber de outros saberes pode e deve servir para enriquecer e aprimorar a nossa prática. É inevitável a diversidade de concepções sobre o que se trata afinal essa problemática das drogas, a começar pela diversidade de nomenclaturas e linguagens para se referir ao esse fenômeno e que presenciamos em cada reunião de equipe: dependência química, drogadição, toxicomania, abuso de substâncias psicoativas, pacientes, usuárias etc. Cada um desses termos envolve uma visão de sujeito e de mundo e, se não forem bem elaboradas e conduzidas, podem interferir nas hipóteses diagnósticas, na direção e, consequentemente, no resultado do tratamento.
Internar ou não uma usuária que esteja em um momento crítico do seu quadro, que foge ao alcance de um atendimento semanal é, por exemplo, uma decisão que costuma gerar divergência entre a equipe. A pluralidade dos aspectos transferenciais com cada membro da equipe também contribui para essas diferentes visões sobre a conduta do tratamento. Já ocorreu de uma paciente chegar na consulta psiquiátrica mostrando uma gravidade, com uma demanda tão intensa que o médico se sentiu convocado a tomar uma medida de caráter urgente e indicar uma internação imediata. No mesmo dia, depois dessa consulta, essa mesma paciente chega ao grupo com um discurso um pouco diferente, menos agitada e desorganizada mentalmente. Talvez o acolhimento oferecido pelo psiquiatra era o que ela desejava, sentir que alguém iria cuidar dela caso ela não conseguisse se cuidar sozinha. Precisava de uma continência acolhedora e protetora de uma figura de autoridade médica, com quem ela havia estabelecido uma transferência de trabalho produtiva. No grupo, conseguiu se expressar com mais clareza e com um discurso mais estruturado. Ela foi também acolhida pelo grupo e escutada pela diversidade própria à dinâmica grupal. Ouvindo outras opiniões e pontos de vista com as quais se identificou, se dispôs a suportar sua angústia até a sessão seguinte. Esse é um exemplo da potência terapêutica do grupo, mas que também revela os benefícios dessa multiplicidade de abordagem profissional de um trabalho em rede, que valoriza uma coerência no que se refere aos objetivos do tratamento.
Outro desafio que enfrentamos, inerente ao formato de uma equipe interdisciplinar é a questão das diversas estratégias e concepções sobre o tratamento na toxicomania. Alguns membros da equipe médica costumam chegar no ambulatório com uma formação pautada em uma lógica predominantemente focada na atenção ao quadro sintomático, procurando através de instrumentos como o DSM, cuja visão nosográfica procura classificar e descrever enfermidades, chegar rapidamente ao diagnóstico e à escolha medicamentosa.
Entendemos que esse debate é muito delicado, principalmente dentro de uma instituição médica por excelência. Alguns autores da psicanálise defendem a impossibilidade de se estabelecer uma determinação causal entre a droga e a toxicomania, nem tampouco entre o efeito químico explicitado pela ciência e a fala sobre o objeto. Mesmo porque existem muitos dizeres sobre a droga, que são particulares e aparecem de forma única em cada sujeito (Gianesi, 2005). Concordamos com a concepção de que a droga desempenha uma função de suplência estabilizadora ou de moderação do gozo do Outro para aquilo que é não simbolizado, ou simbolizável (Santiago, 2001).
A práxis da psicanálise condena qualquer tipo de exercício que possa soar como um poder sobre o paciente. Seguindo com Lacan, o analista funciona como um suporte para os fenômenos que ocorrem sob transferência e seu manejo é o segredo da análise
A partir do lugar que nos cabe, procuramos não nos apressar em fechar um diagnóstico. Escutamos a repetição no discurso, até conseguirmos chegar em alguma(s) hipótese(s) diagnóstica(s) que podem e devem servir para direcionar o tratamento. Como nos adverte Lacan no texto “A direção do tratamento e os princípios do seu poder” (1958), cabe ao analista dirigir o tratamento e não o paciente: não se trata de reeducação emocionalmente, muito menos de doutrinar e servir de modelo de identificação. A práxis da psicanálise condena qualquer tipo de exercício que possa soar como um poder sobre o paciente. Seguindo com Lacan, o analista funciona como um suporte para os fenômenos que ocorrem sob transferência e seu manejo é o segredo da análise. E como nos ensinou Freud: o amor de transferência é o motor do tratamento.
Lidamos nesse trabalho com um tempo de tratamento limitado, embora saibamos que o tempo de concluir é imprevisível. Seguindo os critérios institucionais a paciente precisa ter alta no máximo com cinco anos de tratamento. Parte da equipe entende que esse é um período “suficiente” para que as questões relacionadas ao uso de substâncias já tenham sido minimizadas e que ela passa a ter condições de melhor desempenhar seu papel familiar, social e profissional. Trata-se de um recorte arbitrário, mas que pode ser aproveitado como um impulso provocador de mudanças significativas necessárias no modo como ela se percebe e atua no mundo.
Sabemos que é parte da função do analista contribuir para esse momento e em certa medida, com a proximidade dessa finalização, questões novas e proveitosas surgem e devem ser trabalhadas nos grupos. A proximidade do momento de concluir impulsiona o sujeito a ter que retificar sua posição diante de seus sintomas, entre outros ganhos. O prolongamento de um tratamento voltado exclusivamente para tratar a questão do abuso de substâncias, pode ser deletério ao reforçar esse aspecto da sua subjetividade, que não deve se resumir nem se definir por isso. Pretendemos justamente o contrário: um descolamento desse significante que funciona como um “enunciado cristalizado” embutido na fórmula “eu sou um toxicômano”. Como toda explicação fechada em si, é pobre e se autoalimenta, com risco de fixar o sujeito nessa condição (Nogueira Filho, 1999). Muitas delas chegam se definindo dessa forma e vão modificando essa condição, adquirindo uma potência e se percebendo sujeitos de sua própria história e não mais sujeitadas a uma identidade congelada a partir de um único significante.
QUEM SÃO ESSAS MULHERES?
As pacientes que procuram nosso tratamento, na maioria dos casos são trazidas por familiares ou por indicação de um médico, geralmente um psiquiatra. Inicialmente já temos uma importante questão a ser considerada: existe o desejo de se tratar? O resgate do desejo em meio a essa subjetividade “apagada” é uma das primeiras tarefas que aponta no horizonte da direção do tratamento. Nos deparamos com uma desordem subjetiva naquele encaixe sintomático da relação estabelecida com a droga, mas sem motivação para questionar sobre si mesmas e suas vidas. Na maioria dos casos a crise instalada não se apresenta como uma angústia, mas através de doenças físicas, psíquicas (solidão e abandono) ou problemas de ordem social, entre elas, situações de risco, violência doméstica, desemprego ou disputa judicial pela guarda dos filhos (Brasiliano, Nascimento, Brito & Ely, 2023). Entretanto, esses sofrimentos podem significar um motivo para o engajamento no tratamento e uma aposta da nossa parte na transformação dessas questões que desencadearam esse uso problemático de drogas (Brito, 2023).
Nesse inicio do tratamento elas costumam se apresentar com uma vida vazia de sentido, solitária, com laços sociais prejudicados ou rompidos, com uma situação familiar conflituosa e opressiva, com problemas de saúde importantes e insatisfeitas com sua imagem corporal. Não enchergam saída ou qualquer mudança possível. Por outro lado, chegam com uma idealização de cura imediata, muitas com a convicção que vão conseguir trocar o uso problemático por um uso “social”, somente aos finais de semana, como muitas pessoas que elas conhecem. Algumas já se apresentam revelando algum diagnóstico médico, seja um transtorno afetivo bipolar, borderline, transtorno alimentar, ansiedade ou depressão. Algumas inclusive chegam usado essa identificação ao diagnóstico como uma justificativa para a sua dependência, já que se nomeiam como mais suscetíveis e vulneráveis a se tornarem dependentes de uma droga. Nesse início do trabalho o que podemos fazer é oferecer nosso testemunho acolhedor, através de uma escuta atenta e introduzindo aos poucos um espaço para reflexões e questionamentos iniciais, ou seja, procuraar aumentar o arco simbólico, enxertando elaborações entre o impulso e o ato. Elas se dispõem a falar de seus problemas, mas o fazem através de um discurso concreto, pobre em articulações, muitas vezes vazio, narrando situações do cotidiano. É nosso papel também investir na produção de uma linguagem que consiga traduzir esses conteúdos subjacentes.
Nesse início do trabalho o que podemos fazer é oferecer nosso testemunho acolhedor, através de uma escuta atenta e introduzindo aos poucos um espaço para reflexões e questionamentos iniciais, ou seja, procuraar aumentar o arco simbólico, enxertando elaborações entre o impulso e o ato.
Com pouca margem de liberdade em vários aspectos da vida, acabam encontrando no uso da droga um respiro para apaziguar essa sua condição. Essas mulheres estão submetidas aos imperativos culturais que inclui um ideal imaginário do papel social a elas determinado: uma mãe exemplar, uma companheira dedicada, uma cuidadora sempre presente, uma profissional competente, além de estar sempre cuidando de sua aparência física. Serem usuárias de drogas mancha esses atributos e ganham etiquetas com estereótipos sempre negativos. Sua imagem é logo associada a uma tendência à promiscuidade sexual, agressividade, incapacidade profissional, uma descredibilidade generalizada no laço social, com destaque para o exercício da maternidade. “Andamos com um X nas costas; todos olham nos condenando”, diz uma paciente. “Uma vez alcoólatra, sempre alcoólatra”, relata outra paciente que se diz marcada com uma mancha impossível de apagar.
Trata-se aqui do estigma social, vinculado à violência e ao uso problemático de substâncias, que submete essas mulheres a preconceitos e que, por sua vez, dificultam a busca por tratamento (Santos & Guimarães, 2023). Esse é um tema preponderante ao contexto dessas mulheres e deve ser tratado com sua devida importância. Além de desencadear um sentimento de culpa e enfraquecimento da autoestima, ainda é uma forte barreira para a procura de um tratamento, principalmente nos centros de tratamento que atendem homens e mulheres ao mesmo tempo. São muitos os relatos de situações traumáticas e experiências desagradáveis em que foram tratadas com desrespeito. Não são raros os relatos de situações de assédio moral e sexual nesses espaços de tratamento mistos. Afinal, espera-se de uma mulher que “nasceu para ser mãe” renúncias de toda ordem, dedicação intensa e amor incondicional aos filhos, o que uma mulher toxicômana fracassa em cumprir de acordo com o julgamento social. Como afima Gomes (2010): “Beber para sentir prazer ainda é concebido pelo imaginário social como uma prerrogativa masculina”.
Ao escutá-las testemunhamos o impacto na sua subjetividade desses julgamentos e estereótipos. Salta aos nossos ouvidos o discurso marcado pela vergonha decorrente do sofrimento vivido por esse estigma. Condenadas por esse imaginário social, trazem o peso da culpa, do arrependimento e de punições sofridas em várias situações do passado, além do medo de serem desmascaradas pela falta de controle sobre o uso da droga. A ausência de infraestrutura disponível (creches públicas) para que elas sigam um tratamento regular, a falta de recursos financeiros e a vulnerabilidade social são também fatores que acabam contribuindo para a demora em procurar ajuda e, por consequência, para o agravamento do seu quadro (Brasiliano & Hochgraf, 2006).
Outra situação que escutamos com frequência e é semelhante entre elas diz resepeito a sua aproximação inicial com as drogas. A maioria delas relata que iniciou o uso de substâncias a partir da influência do companheiro. Varias delas revelam também ter sofrido abuso sexual na infância por homens do núcleo familiar próximo. Relatam também ainda serem vítimas de violência física e psicológica no seio familiar e que, apesar da constante sobrecarga e preocupação com os relacionamentos interpessoais, ainda sofrem de um descrético e invalidação generalizada em tudo que dizem e fazem, seja na família, entre amigos ou no trabalho.
Muitas passaram vários anos “escondendo o vício” de todos a sua volta, inclusive do núcleo familiar. Mas com o passar do tempo e o aumento desse uso, a prática mais comum torna-se o uso solitário e escondido. Como são elas que dominam o território doméstico, conseguem usar sem levantar suspeitas no convívio familiar. Seus esconderijos costumam ser na dispensa da área de serviço, na gaveta de fraldas, atrás do bidê, no vidro de álcool de limpeza, dentro das malas de viagem, no fundo do cesto de roupa suja e até dentro da máquina de lavar. Uma paciente relata que bebia enquanto cozinhava, longe dos olhos do marido, que naquele momento estava sempre voltado para o jornal ou para a TV, enquanto aguardava a comida chegar à mesa. São situações do cotidiano com as quais muitas se identificam.
Como decorrência de um uso prejudicial e prolongado de drogas, notamos um empobrecimento psíquico, marcado por uma subjetividade objetalizada, perceptível nas formas de se expressarem no grupo: na velocidade das falas, no exagero dos detalhes das situações que relatam, na descrição das vivências de forma concreta, sem censura, questionamento ou crítica. É uma falação muitas vezes ansiosa e acelerada, de uma grande intensidade emocional, acompanhada também de uma agitação motora. Funciona como uma cortina de fumaça, que pretende esconder o que não pode ser escutado. Elas têm muita dificuldade de identificar, discriminar e nomear suas emoções. A opressão que elas sentem também afeta essa capacidade elaborativa.
As defesas psíquicas que acionam diante disso tudo surgem de várias maneiras: quando por exemplo, querem estabelecer uma relação “utilitarista” em relação ao tratamento, aproveitando os benefícios como remédios, exames e laudos, sem querer se implicar no processo do trabalho subjetivo. Algumas chegam ao tratamento “agarradas” a um diagnóstico psiquiátrico prévio, justificando seu quadro de dependência. Mas quando elas são medicadas no próprio serviço como recurso para lidar com a dependência, essa conduta pode contribuir para a manutenção dessa condição de passividade, uma vez que “dependem de uma droga para ficarem bem”, ou seja, “combatem” a dependência de drogas ilícitas com outras drogas lícitas. “Se preciso tomar remédio por toda vida, fica difícil imaginar que vou conseguir deixar de cheirar também”, diz uma paciente que foi diagnosticada como Borderline e recorre à cocaína “para se equilibrar”. Trata-se de uma questão delicada e que exige um manejo específico. Precisamos estar atentos para escutar os usos e os efeitos dessa prática medicamentosa e como ela pode interferir no nosso trabalho. Como se livrar do abuso de um medicamento (geralmente benzodiazepínicos, indutores do sono, as drogas Z, e analgésicos) que serve para “anestesiar” os impactos dos problemas insuportáveis da vida e junto com isso anestesia também a sua subjetividade, apagando seu desejo de viver?
Esse nível de fragilidade psíquica comparece na dificuldade e até incapacidade de se proteger das imposições externas. Apresentam-se de forma passiva e quase sem reação frente à ordem familiar e social. Sua falta de autonomia em vários aspectos da vida lhes tira a potência de se expressar. Como consequência, a droga acaba se tornando o único objeto de satisfação possível, um refúgio viável e reconfortante. O resultado mais comum dessa fuga é a perda de confiança em si mesmas e das pessoas de seu convívio próximo. Por outro lado, escutamos relatos de pacientes que recorrem às drogas para reverter esse jogo e se sentir no poder, obter um ótimo desempenho sexual, elevar sua autoestima e ter sucesso na conquista de parceiros. Nesses casos, a droga proporciona a ilusão de uma potência fálica que sutura a vulnerabilidade e a fragilidade que elas relatam vivenciar quando estão fora do uso.
A conflitiva da maternidade e sua relação com a toxicomania também comparece em quase todas as sessões. O exercício da maternidade ainda é muito submetido ao discurso social e aprisiona muitas mulheres em situações desfavoráveis, repetindo papéis transgeracionais, sem possibilidade de uma escolha própria. São várias as histórias de violência, falta de autonomia financeira, traição, entre outras, levando ao abuso de substâncias como meio para enfrentar e “tratar” suas angústias. A maternidade poder representar um fator de risco, mas também de proteção para o uso problemático de drogas. Sabemos que ainda existe muita controvérsia sobre o tema e na nossa prática constatamos os dois cenários. Funciona como um fator de proteção quando cuidar do bem-estar dos filhos e da relação afetiva com eles pode aumentar a motivação para o tratamento; mas em outros casos pode ser um fator de risco, já que aumenta a sobrecarga de obrigações levando a conflitos de ordem pessoal e social.
E como se não bastassem todas essas dificuldades, elas ainda costumam ser vítimas do preconceito e da falta de acolhimento de profissionais de saúde. São em muitos casos vistas como resistentes ao tratamento, tratadas como pacientes difíceis, problemáticas e acabam recebendo menos investimento por parte dos profissionais. Como resultado, muitas vezes, optam por silenciar-se e ocultar, dos outros e de si mesmas, toda angústia represada ao longo dos anos. Uma alternativa que costumam utilizar é continuar por longos períodos abusando de substâncias legalizadas, como anestésicos e benzodiazepínicos, por exemplo, para seguir tentando abolir seu mal-estar (Brito, 2023).
A PRÁXIS GRUPAL
O questionamento sobre a escolha do formato grupal ao invés do individual como se fosse o recurso necessário em uma realidade institucional (para atender um número maior de pacientes) não se sustenta mais atualmente. Infelizmente esses impasses teóricos e técnicos podem enfraquecer e até mesmo inviabilizar a sua aplicação a depender do contexto em que essa prática está inserida. No entanto, alguns psicoterapeutas com formação psicanalítica que se dispõem a trabalhar com o dispositivo grupal ainda apresentam um certo grau de resistência a esse formato. Em muitos casos, como as formações acadêmicas focam seu ensino no modelo individual de tratamento, alguns profissionais se deixam levar pelo desconhecimento, preconceito e ainda a uma desvalorização da potência desse trabalho, classificando-o como “adaptativo” e de pouca eficácia.
A teoria psicanalítica está aí para nos ensinar, desde Freud que somos indivíduos constituídos e modificados pelas relações com o grupo, por meio de processos inconscientes de identificação e idealização, que moldam nosso caráter e nossos desejos. Ou seja, somos efeitos de tudo que aconteceu antes de nós e nos foi transmitido transgeracionalmente a partir do contato com nossos primeiros cuidadores (Freud, 1921). Lacan, por sua vez, apresenta o sujeito como sendo constituído a partir de sua inserção no universo humano, a partir da entrada da linguagem, ou seja, no universo do simbólico. Assim como a linguagem é o que há de mais coletivo, o sujeito, que é efeito do significante é, por sua vez, sempre coletivo (Prata; Rosa, 2011). Em nosso trabalho lançamos mão desses aportes teóricos, além de outros desenvolvidos por autores que também estão apoiados sobre os ombros desses gigantes, justamente por nos depararmos com uma problemática complexa e multideterminada que nos obriga a reinventar nosso “fazer” em função dos vários desafios que se apresentam a cada dia.
Um aspecto inicial de ordem prática do tratamento que vale mencionar diz respeito ao dia do funcionamento do ambulatório, de segunda-feira. É uma escolha intencional e que tem uma importante função terapêutica. Elas costumam trazer com muita vivacidade e afetação os eventos ocorridos nos encontros familiares, que geralmente acontecem no final de semana, assim como a falta deles. São conteúdos ainda “frescos” na memória e, portanto, são relatados com uma riqueza de detalhes e podem servir de material para muitas elaborações no grupo. Outros momentos também intensos e ricos de conteúdos a serem explorados são aqueles que precedem e sucedem as principais festas do ano: dia das mães, páscoa, natal e passagem do ano, quando muitas angústias surgem e são compartilhadas por todas.
Em relação à composição dos grupos, com limite de 10 participantes, procuramos sempre levar em conta algumas semelhanças que se tornam vantagens para o trabalho clínico. Tentamos utilizar critérios como idade, droga de uso, e características de funcionamento mental para contribuir para a formação de identificações e vínculos. Percebemos que logo no início, ao se reconhecerem como semelhantes, se aproximam com mais rapidez, interagem mais livremente e logo revelam estar se sentindo finalmente pertencendo a um espaço onde seus sofrimentos são finalmente legitimados. Esse vínculo é favorecido pela troca das questões relacionadas ao “universo do feminino”, como o tema da maternidade, sexualidade, imagem corporal, seu papel na família, entre outros. Essa dinâmica também contribui sobremaneira para o aumento da aderência ao tratamento.
No início do trabalho em grupo elas chegam com muitas idealizações atravessadas por fantasias de uma mudança radical e rápida. Relatam uma esperança de conseguir eliminar todos os problemas que a droga lhes causa, mas continuar usando pelo menos um pouco ou de vez em quando. Relatam não suportar mais os efeitos colaterais da droga, que lhes traz prejuízos importantes em todos os aspectos da vida, mas continuam alienadas na relação com a droga em si, que permanece como a única fonte possível de prazer e apaziguamento da angústia. Apesar de serem convidadas a falar livremente e compartilhar com o grupo as suas experiências e sentimentos, relacionadas ou não ao uso de substâncias, percebemos uma dificuldade inicial de algumas mulheres em participar do grupo. Como elas têm dificuldades em estabelecer vínculos, colocam-se inicialmente ambivalentes, resistindo a interagir. Ao longo das sessões, essas barreiras vão sendo superadas e elas passam a se sentir acolhidas e à vontade para compartilhar suas vivências.
A maioria procura o tratamento para receber atendimentos individuais e não em grupo. Um dos motivos que contribui para essa resistência pode ser o fato de que elas vivem à base de relações duais, simbióticas e fusionais com a droga, daí a dificuldade de estar em grupo. É comum se sentirem intimidadas e com vergonha de falar de si para estranhos. É quando a droga entra para aplacar o sofrimento gerado no grupo familiar. Ou seja, estar em grupo pode remeter aos conflitos e angústias dessa experiência. O que, por outro lado, na medida em que esses conteúdos vão surgindo, podem ser de bom proveito para o trabalho terapêutico de elaboração.
Um sintoma pressupõe minimante a formulação de uma questão, nem que seja incipiente, por parte do sujeito em relação ao seu sofrimento. Sabemos que o sintoma é uma defesa e um arranjo em forma de uma organização montada para combater a angústia de castração. Entendemos o adoecimento também como algo que afeta a capacidade do sujeito de uma inserção no laço social no que diz respeito a sua realização pessoal.
O que elas apresentam inicialmente no grupo são predominantemente queixas ao redor do seu sofrimento e não um sintoma como define a teoria psicanalítica. Um sintoma pressupõe minimante a formulação de uma questão, nem que seja incipiente, por parte do sujeito em relação ao seu sofrimento. Sabemos que o sintoma é uma defesa e um arranjo em forma de uma organização montada para combater a angústia de castração. Entendemos o adoecimento também como algo que afeta a capacidade do sujeito de uma inserção no laço social no que diz respeito a sua realização pessoal. Ou seja, como diz Freud, conseguir “simplesmente” amar e trabalhar.
Nosso trabalho de escuta nos grupos também apresenta algumas especificidades. É um pouco diferente daquela escuta do modelo da atenção flutuante a tudo que surge no discurso do paciente, em que o analista passa boa parte do tempo em silêncio, apontando, escandindo para que a paciente associe, elabore e desvele seu conteúdo inconsciente. Estamos sempre atentos para as motivações inconscientes que levaram à escolha desse recurso da droga. Também não se indicam interrupções abruptas via cortes no discurso para a elaboração e associação a partir de uma fala relevante que surge na cadeia significante. No caso dessas pacientes, uma atitude de escuta silenciosa geralmente é vivida com a carga de um saber culpabilizante (Oliveinstein, 1990).
É indicado oferecer uma escuta atenta, com intervenções firmes, para acolher esse discurso fragmentado, confuso e intenso, principalmente nas sessões em que elas chegam intoxicadas, com dificuldade em articular pensamentos em palavras. Dessa forma é possível fazer com que elas se escutem, apenas apontando a importância do conteúdo que elas estão trazendo. Esse tipo de intervenção já é um avanço, mas sempre precisamos calcular nossas ações com cautela (Brito, 2023).
Não buscamos nesse trabalho anular a “doença toxicomania”, enquanto um elemento mórbido. Entendemos a cura não como uma supressão do sintoma, já que não existe desvencilhamento total da angústia de ser, apenas reposicionamento. Entendemos que o processo de cura se assemelha ao processo de curar o queijo: espremer e apurar para eliminar os excessos. Freud, em seu texto “Sobre psicoterapia” (1905), faz uma bela analogia para discorrer sobre a técnica psicanalítica, diferenciando-a da técnica sugestiva. Ele se inspirou em Leonardo da Vinci, que apresenta as técnicas usadas na pintura e na escultura. Enquanto na pintura o trabalho se dá per via di porre, na escultura é per via di levare. Na pintura acrescenta-se tinta a uma tela em branco - o que Freud associa à técnica da sugestão - e na escultura retira-se da pedra o necessário para revelar o que nela já está contido. Assim como o escultor retira o excesso de material, nós trabalhamos com a nossa ferramenta da escuta analítica para remover as camadas conscientes e revelar o desejo inconsciente. Ou seja, desvelar o que já está presente, mas oculto no inconsciente. Procuramos, dessa forma, eliminar os efeitos danosos do excesso de significantes que, ao longo da história do sujeito vieram “de fora”, determinando sua constituição, seu funcionamento e seus sintomas.
No que diz respeito à dinâmica da transferência com essas pacientes algumas especificidades podem ser destacadas. Alguns aspectos dessa subjetividade costumam interferir nessa relação transferencial, com o analista e com o grupo. Elas costumam apresentar um empobrecimento de repertório de vida e na sua capacidade elaborativa, com muitas defesas acionadas e uma grande fragilidade psíquica. No grupo elas tentam no início formar um vínculo dual com o terapeuta e não se dirigem às outras pacientes porque querem atenção exclusiva do profissional. Elas se vinculam ao analista como em relação à droga, pela via da necessidade e não do desejo. Necessitam sempre verificar a sua presença, não apenas consumi-la, mas saber que ela está ali, ao alcance da mão. Elas clamam por um contato que proporcione segurança e estabilidade. Cuidar desse aspecto é fundamental.
Esse enlaçamento transferencial que vincula a paciente com o tratamento já começa na entrevista de triagem. Muitas chegam a dizer: “o Promud vai me salvar” e, quando chegam ao grupo, também depositam na figura do terapeuta essa fantasia. Elas chegam com seu imaginário repleto de fantasias, expectativas e idealizações de cura a curto prazo. Mas ao longo do percurso do tratamento esses ideais caem por terra e a transferência amorosa pode se transformar em ódio com força e rapidez. Mas é justamente a partir desses movimentos, nesse vai e vem das sessões, na alternância da conquista da abstinência com os momentos de recaída, que aproveitamos para trabalhar os sintomas, a relação com a falta e a fuga da angústia. É importante lembrar que estamos competindo com um objeto muito poderoso, que promete uma felicidade que nunca vamos proporcionar.
Os tratamentos bem-sucedidos dependem muito da força do amor de transferência, que é a potência transformadora por excelência, como nos ensina Freud. Através da transferência, é possível resgatar o movimento do desejo que se deteve na cadeia significante. Trata-se de provocar intervenções visando um espaçamento progressivo, criando um espaço para o pensamento, elaboração e nomeação das emoções. Tentar tirar o sujeito da anomia e introduzir o espaço para a palavra. A palavra permite dialetizar, sair da posição do tudo ou nada (lógica da necessidade da relação com a droga) para a posição de uma realização possível (lógica do desejo e da falta). O objetivo é que com o passar do tempo, a droga vá deixando de ser o único objeto que tampona imaginariamente todas as faltas. O trabalho de transformação que buscamos é em última instância o do deslocamento subjetivo: que elas possam sair da posição de queixa, deparar-se com seus sintomas e passar a produzir questões sobre tudo isso.
Ao proporcionar um espaço continente com um enquadre organizador elas consiguem ir articulando gradativamente um reposicionamento diante das situações que as levaram a esse recurso à droga. Através das falas sucessivas e compartilhadas escutamos o surgimento de novos significantes e novas posições diante dos desafios, como a compreensão de suas limitações e a responsabilidade de suas escolhas. Mas não se trata de um trabalho fácil, uma vez que o uso da linguagem está prejudicado para quem está submetido a essa dinâmica da toxicomania. Cavar palavras e fazer remendos nas falhas discursivas é parte do manejo do terapeuta.
O manejo da transferência nesse trabalho grupal inclui, como um dos requisitos básicos, a oferta de uma presença minimamente estável por parte do terapeuta. Como elas vivem uma relação voraz com a droga, sem uma presença firme, ativa e ao mesmo tempo acolhedora, dificilmente conseguimos provocar um vínculo terapêutico diferente daquele simbiótico que elas têm com o objeto droga. O terapeuta corre o risco de ser tomado nesse lugar, entrando no circuito de uma troca de dependência, já que ele é parte do tratamento no qual elas depositam seus ideais de uma cura. Nesse caso não se trata somente de supor um saber no analista, aspecto esperado em uma dinâmica transferencial de um tratamento analítico clássico. Vai além disso, uma vez que elas chegam com uma certeza de que vão ser curadas por ele.
Por esse motivo também é que não podemos voltar a nossa escuta somente na “pessoa” que está ali na nossa frente. Devemos sempre nos atentar para os conteúdos inconscientes do seu discurso, mas também focar nos movimentos que vão surgindo no grupo a partir das falas individuais. Como se alternassemos nossa escuta em uma frequência de rádio do AM para o FM o tempo todo, nos conteúdos latentes e manifestos individuais e grupais. A partir das falas individuais, algumas interrompem, seja pela ansiedade (“comigo também é assim!”), seja por se incomodarem com o que escutam. Outras acolhem o relato, oferecendo palavras de incentivo e exemplos pessoais de superação, principalmente daquelas que estão há mais tempo no grupo e já atravessaram os diversos desafios ao longo do processo. O grupo é afinal formado pela possibilidade do terapeuta conter a diversidade e a dissonância e devolver um sentido consciente, coerente e produtivo.
Como elas têm muita dificuldade em confiar e estabelecer vínculos, oferecer uma verdadeira experiência de ligação é fundamental para conseguir bons resultados e mudanças que sejam significativas. Aquela postura distante, silenciosa, fazendo apenas alguns apontamentos pode ser vivida de forma persecutória pelas pacientes. Trata-se de um postura corporificada e não apenas intelectual. São atributos essenciais para o terapeuta uma boa capacidade de comunicação, permitir-se ao exercício da espontaneidade e também uma certa dose de senso de humor.
O outro na vida dessas mulheres não costuma ser confiável, mas sim hostil e invasivo. Essas pacientes vivem dinâmicas familiares conflituosas e seus companheiros geralmente não apoiam o tratamento, pelo contrário, como a maioria deles também são usuários, muitos se incomodam com a melhora das parceiras, induzindo-as muitas vezes a recair. Nos momentos de enfrentamento, esse outro vem à tona na transferência com o terapeuta. Precisamos nos preparar para essa tensão, para uma relação forte, direta, marcada por uma violência emocional. Algo lhes falta e se trata de algo da ordem do primitivo, dos alimentos básicos da alma, das necessidades primeiras e vitais, como amor, carinho, aconchego, respeito. Buracos como esses explicam suas atuações, sua busca desesperada por reconhecimento.
Por outro lado, quando nos deparamos com pacientes muito fragilizadas, com vidas precárias, parcos recursos materiais e relacionais, devemos nos atentar ao nosso impulso de maternagem. Precisamos sempre ajustar a dose de uma transferência amorosa que seja produtiva para o fortalecimento subjetivo da paciente e não procurar repor uma ausência, correndo o risco de querer encobrir uma falta, assim como já faz a droga na vida delas. Nosso papel é reconhecer e trazer à tona o que está escondido.
É importante sempre lembrar que sinais “clínicos” de melhora, obtidos pelo uso de medicamentos ou mesmo a partir da abstinência, não correspondem necessariamente a uma mudança subjetiva. A abstinência pode ser muito útil para destampar as defesas e emergir as angústias subjacentes. Esse momento exige cautela e muito cuidado do terapeuta, que pode ser atravessado por essa intensidade e acionar suas próprias defesas, uma vez que essas angústias costumam surgir de forma abrupta e intensa. Uma postura diretiva ou impositiva pode aparecer na fala do terapeuta, que é pego de surpresa nesses momentos. No entanto, como elas já são um instrumento de manipulação de um objeto, precisamos nos vigiar para não repetir essa relação de poder, como se tivéssemos em posse de um saber sobre o que seria melhor para elas. Trata-se da questão primordial e constante da ética do cuidado. Como diz Alencar (2018, pg.144.), “Sustentar um ideal pode retornar como um dito superegoico para a paciente, que ao tentar corresponder à expectativa do analista, grandes são as chances de se deparar com o fracasso”.
Em relação à participação no grupo quando estão intoxicadas, esse assunto geralmente costuma gerar uma certa polêmica entre a equipe. Costumamos orientar para que elas se abstenham de usar no dia da sessão. É uma das regras anunciadas na entrada do tratamento. No entanto, sabemos que isso nem sempre vai ocorrer. Pedimos para que a paciente revele o fato de ter usado e o terapeuta juntamente com o grupo decidem sobre a sua participação naquele dia a depender do seu estado físico e mental. Na nossa experiência, quando elas comparecem sob uso de substâncias, costuma provocar nas demais pacientes um incômodo que permanece silencioso, mas visível. Como se elas esperassem que o terapeuta, sobre quem elas depositam uma autoridade, tome alguma atitude para conter e organizar a situação.
Faz parte do nosso papel nesses casos levantar as questões que estão incomodando o grupo e ouvir as colocações que costumam gerar associações bastante produtivas. Quando intoxicadas, justamente por estarem sob menos efeito da censura do supereu, revelam conteúdos importantes, e por isso mesmo bem guardados, que nas outras sessões não conseguem. Em uma sessão recente, uma paciente colocou vodca em uma latinha de coca-cola e ficou tomando durante a sessão com um canudo transparente. Uma das pacientes deu risada e disse: “eu nunca tinha visto uma coca transparente!”. As demais riram e isso fez a paciente, que até então estava silenciosa e cabisbaixa, contar sobre o que tinha acontecido no final de semana no encontro difícil com a família.
Mulheres em grupo também se divertem, interagem com vivacidade, intensidade, constroem laços para além do espaço do grupo. Trazem lanchinhos em algumas sessões, se presenteiam nos aniversários, trocam dicas diversas, receitas de comida. Algumas oferecem espontaneamente um “amadrinhamento” para serem acionadas quando a colega do grupo estiver em sofrimento agudo, prestes a recair. Em uma sessão, quando uma paciente, que tem dificuldade em pedira ajuda, se queixou que não conseguia arrumar seus armários e isso estava causando muito sofrimento para ela, uma participante, que diz ter “TOC com limpeza”, se prontificou a ajudar e esse evento gerou efeitos muito interessantes. Presenciamos ai uma saída sublimatória para o sintoma de ambas. Além disso é um exemplo de como elas passam a cuidar umas das outras e, a partir de dinâmicas como esta, vamos testemunhando a formação de uma rede de apoio se tecendo entre elas, uma dinâmica de grande potência curativa.
ETAPAS DO MANEJO GRUPAL AO LONGO DO PROCESSO
Apesar de sabermos que o caminho de um tratamento dessa ordem não tem um percurso linear e crescente, e mesmo testemunhando avanços nos diversos aspectos da vida subjetiva e prática, elas estão sempre se deparando com situações que disparam sofrimentos e dificuldades em lidar com o vazio existencial e, podem recorrer a dispositivos anteriores de idealização e fusão. Presenciamos esses mecanismos sendo com frequencia projetados no grupo sob forma de ataques ao vínculo grupal e com o terapeuta. Optamos por apresentar esse processo, entre outras dinâmicas já mencionadas, em três etapas. Mas trata-se apenas de um recurso de escrita,para tentar facillitar a visão geral do processo, uma vez que observamos mudanças significativas e conquistas em cada etapa do trabalho grupal.
Primeiras sessões: momento de alienação
O início do trabalho no grupo costuma ser permeado por silêncio, desconfiança e até uma certa tensão. Elas ainda se sentem entre estranhos, expostas e vulneráveis. Nossa atuação precisa ser mais diretiva nesses momentos, para proporcionar uma integração e um ambiente acolhedor. Presenciamos frequentemente experiências de invasão no continente grupal com falas e pensamentos que fragmentam esse começo de um processo de construção de uma unidade grupal. Nesse momento o grupo ainda se caracteriza como um espaço de exclusão, no qual sentem-se ameaçadas pelo novo. Elas ainda mostram um distanciamento defensivo da realidade, que funciona como uma negação parcial do sofrimento que a sua condição de usuárias lhes causa. Elas não sabem o que se perguntar e nem ao menos se é preciso indagar algo sobre si mesmas. Apesar de deixarmos claro que o tema das sessões é livre, na maior parte dessas sessões iniciais elas falam sobre a relação com a droga. O silêncio também é frequente e nos desafia a provocar palavras que possam mediar, através do Simbólico, visando minimamente articular um sentido ali onde ele se perdeu.
Seu universo é muito restrito, seu repertório de vida é estreito, seu vocabulário pobre e as queixas repetitivas. É comum também nesse início, ocorrerem faltas sucessivas no grupo, como forma de testar os limites do grupo, mas também pela dificuldade de se expor. Muitas vezes elas passam em consulta com o médico para garantir a receita das medicações e fogem do grupo com desculpas variadas. Mesmo que deixemos claro que todos os atendimentos são semanais e obrigatórios, elas nem sempre cumprem essa regra.
Elas estão mobilizadas e motivadas para o tratamento não para entender e modificar o sofrimento e as angústias que o uso das drogas traz, mas porque uma crise se instalou no funcionamento equilibrado que elas vinham vivendo com a droga, como já foi mencionado. Ainda prevalecendo uma postura de vítima diante do mundo, não conseguem entender o real sentido dessa vivência com a droga, perceber-se como sujeitos potentes e responsáveis pelos rumos da sua vida. Trata-se de um trabalho bastante complexo nessa fase inicial, uma vez que elas ainda estão aderidas ao prazer e ao êxtase e muito pouco dispostas a se descolar desse uso para pensar sobre ele. É importante a nossa percepção atenta para esses fenômenos e agirmos na direção de uma ação que proporcione uma organização e contenção.
Mudanças no avanço da dinâmica grupal
Com a continuidade das sessões, elas ainda mostram muita ansiedade, impulsividade, inquietação e impaciência. Elas chegam geralmente agitadas, corporalmente até, não conseguem se ouvir e querem despejar os últimos acontecimentos e sofrimentos da semana. Enquanto algumas pacientes silenciam para fugir do contato com o grupo e se defender contra a angústia gerada, outras falam sem parar, para não se escutar, para nada dizer e não ouvir o barulho do vazio interno.
O grupo também precisa funcionar como um espaço de contato com seus limites, uma vez que elas precisam ouvir as demais e esperar sua vez de falar. É importante lembrar que qualquer sinal de um limite castrador da falta é algo perturbador na vida de um dependente, já que a relação dele com a droga é narcísica, de um par complementar que exclui o outro sujeito dessa equação. Como se trata de uma satisfação garantida e imediata, ela e a droga se bastam. Por isso também que o grupo funciona como um limite saudável a esse narcisismo, ao introduzir um outro sujeito que ela precisa escutar e com quem ela pode se relacionar.
Com o desenvolvimento e o progresso do trabalho, um outra dinâmica começa a surgir no grupo. Acontece uma perceptível mudança na qualidade da configuração grupal e a relação transferencial adquire novas características. Os vínculos se fortalecem entre elas e com o psicoterapeuta, proporcionando um ambiente mais estável, seguro e de continência que permite importantes trocas afetivas, que por sua vez, vão facilitar que as angústias e os conflitos possam ser verbalizados e não mais somente atuados. Com esse ambiente conquistado, o terapeuta consegue mais facilmente discriminar, nomear os sentimentos que percebe e apontar correlações, introduzindo a questão latente e inerente da drogadição: o prazer e o êxtase que elas vivem em detrimento do sentido e do pensar sobre isso.
A conquista da abstinência
Lentamente a droga deixa de ser o assunto principal das conversas. A dinâmica grupal fica mais leve, animada e algumas sessões se passam com comunicações de abstinência (sempre comemoradas pelo grupo), que rapidamente passa para outros assuntos. Com o avanço do processo elas passam a revelar um receio frente a possíveis recaídas e se mostram conscientes das limitações frente à droga, do perigo que o contato, mesmo que pontual, pode causar. Passou a tempestade daquele estado de alienação com a droga e o grupo passa a falar das questões da vida como qualquer outro grupo de neuróticos que conseguem suportar – um pouco que seja - as perguntas que não têm resposta.
Mas, por outro lado, precisamos estar muito atentos para outros fenômenos que concorrem a partir dessas conquistas. Elas já sabem que a droga não é mais a solução mágica para todos os problemas, mas depois de uma tempestade, pode vir um terremoto. Estar abstinente significa também entrar em contato com as angústias de base, ligadas aos motivos que as levaram à drogadição. Algumas se reaproximam da família e conseguem falar sobre questões difíceis que permaneceram muito tempo sem serem ditas. E outras se permitem um afastamento, que é vivido como um grande alívio e liberdade.
MOMENTOS DELICADOS DO TRATAMENTO
A questão do sigilo da equipe
O sigilo é um tema importante, principalmente em um espaço institucional com uma equipe interdisciplinar. Mulheres costumam interagir na sala de espera, seja com as outras pacientes ou também com as mães e filhas que estão alí como acompanhantes. Esse contato, seja motivado por curiosidade ou por tentativa de controle, pode gerar situações delicadas, como interferências nas situações relatadas pelas participantes dos grupos, o que leva a conflitos entre elas. A regra do sigilo, se não for bem esclarecida inicialmente e retomada nos momentos necessários, pode também dar margem a muitas atuações. O sigilo do que é falado dentro do grupo é diferente do sigilo dentro da equipe, uma vez que algumas questões levantadas durante as sessões precisam ser retomadas e discutidas nas reuniões dos profissionais. Algumas “esquecem” dessa regra e, através de mecanismos transferenciais pluralizados e cindidos com os membros da equipe, se queixam dos outros profissionais nas sessões de grupo. É comum elas reclamarem do médico ou da nutricionista, buscando nossa cumplicidade, como os filhos de pais separados que tentam manipular as brechas dessa separação e se queixam de um para o outro. Elas negam essa regra, atuando para resistir a uma prescrição difícil de realizar, enquanto nos demandam uma compreensão benevolente. Momento de atenção e cuidado para não cairmos nessa armadilha e fazer conluio com essa conduta sintomática.
Como lidamos com as recaídas
Por se tratar de um tratamento a longo prazo, essas recaídas precisam ser compreendidas em um contexto mais amplo. Todos sabemos que recaídas fazem parte do processo, que não devem ser condenadas, mas sim aproveitadas para produzir questionamentos e elaborações, principalmente das questões que as levaram a recorrer inicialmente às drogas. Esses eventos costumam mobilizar bastante o grupo, podendo servir também para sinalizar algo da dinâmica grupal, não somente da paciente. Nas primeiras sessões, quando elas se apresentam contando sobre os hábitos em torno da droga, falamos sobre a probabilidade de recaídas caso a paciente insista em continuar frequentando os mesmos lugares onde praticava o uso, convivendo com os mesmos amigos “de bar”, como elas costumam dizer, achando que vão conseguir resistir facilmente e não usar. O apoio do uso de medicações prescritas no tratamento também pode contribuir para essa ilusão inicial, como se fossem um “escudo” suficiente. Falas como “o remédio vai me ajudar a tirar a vontade de beber” revelam essa idealização.
Podemos esperar nesse início ausência ao grupo após uma recaída. Quando conseguem retornar relatam que sentiram vergonha e fracasso. É uma ótima oportunidade para enfatizar que não trabalhamos com o julgamento ou condenação desses eventos. Costumam ser sessões ricas em elaborações, com a participação ativa das outras participantes, que se identificam com o relato, acolhem a participante que recaiu e compartilham suas experiências semelhantes.
Por outro lado, nesse momento em que elas se encontram apoiadas em uma relação transferencial idealizada com o tratamento como um todo, constatamos que cessar o uso de drogas não só não resolve o quadro como pode piorá-lo, uma vez que o que estava no substrato do uso, seus conflitos e angústias, manifestam-se de forma crua e abrupta, quando elas ainda não desenvolveram recursos internos de contenção. Nessa hora elas percebem que “não é só parar de usar que tudo vai ficar bem”. (Brasiliano, et. al, 2021).
Férias e desligamento de profissionais
As férias dos terapeutas podem provocar inseguranças, instabilidades com a sensação de ausência de suporte. A interrupção das sessões pode ser vivida como algo ameaçador, provocando sentimentos de abandono e desamparo. Nesse período de interrupção do grupo, o restante da equipe se reveza para manter os atendimentos médicos e nutricionais. É um momento de estarmos preparados para atuações de ataque ao tratamento e ao profissional, além de possíveis recaídas. No entanto resgatamos no retorno relatos de maior contato entre elas nesse período. Principalmente entre as que estão há mais tempo no tratamento. Algumas oferecem suas casas para “juntar a turma”, vivendo uma experiência de grupo fora do grupo da Instituição. Outras organizam encontros em bares. Essa possibilidade sempre está presente e já testemunhamos algumas pacientes se reunindo em bares próximos à entrada do hospital, à vista da equipe. Também trabalhamos essas atuações no grupo, sem entrar em embates proibicionistas. Sabemos que o controle não está na nossa mão, além de ser ineficaz quando imposto, mesmo que seja pelo terapeuta. O flerte com o descumprimento da lei faz parte do funcionamento dessas pacientes e precisamos manejar muito bem essas diversas situações em que elas burlam as regras do tratamento.
Momento de concluir
É a hora de aprender a enfrentar os problemas “de cara limpa”, sem a proteção de “maquiagem". A alta é necessária e, apesar de ser um momento esperado, exige uma atenção específica da nossa parte. É vivida pelas pacientes com uma certa ambivalência: sentem uma melhora na autoestima, mas podem sentir muita ansiedade e instabilidade. Procuramos cuidar para que a comunicação da alta aconteça com vários meses de antecedência e sempre trabalhada no grupo. Mesmo assim, estamos advertidos para o surgimento de várias formas de atuações, como faltas, recaídas, queixas e ataques ao tratamento. Trata-se de uma vivência de perda, que não deve ser encarada como um retrocesso.
Pensamos que uma alta “ideal” acontece quando a paciente muda sua posição subjetiva diante das suas questões, quando já consegue escolher não usar porque ela sabe que não consegue se controlar. Ao conseguir assumir a responsabilidade para si desse controle, é possível falar em alta do tratamento.
Costuma também ser um momento muito proveitoso para as outras pacientes, que passam a relembrar seu início no grupo, as dificuldades que passaram e as conquistas atingidas. Pensamos que uma alta “ideal” acontece quando a paciente muda sua posição subjetiva diante das suas questões, quando já consegue escolher não usar porque ela sabe que não consegue se controlar. Ao conseguir assumir a responsabilidade para si desse controle, é possível falar em alta do tratamento. Mas para isso acontecer, elas precisam estar minimamente preparadas para os limites da realidade e para o confronto com as angústias que sempre podem ressurgir.
A alta leva em conta também a conquista de uma estabilidade nas principais áreas da vida: trabalho, família, lazer, saúde e relações afetivas. O critério de alta não se baseia na exigência de um estado de abstinência total. Ela é considerada sim como um objetivo fundamental, uma direção, mas não como única possibilidade. Trabalhamos com a perspectiva da redução de danos, uma lógica guiada pela ética do cuidado que parte de um ponto de vista realista, levando em conta as condições sociais de cada sujeito, respeitando sua capacidade de se apropriar de seus desejos e se responsabilizar por suas escolhas.
Aprendemos nesse trabalho o que outros profissionais também relatam: a obrigatoriedade de uma abstinência total pode levar a uma condição passiva, em que o sujeito se abstém de pensar sobre seu uso, encarar a drogadição como uma doença que afeta seu corpo e tornando-o impotente. Ele pode seguir num viver automático, contando os dias e as horas como se sua identidade se resumisse a esse aspecto da sua vida, ao invés de viver com mais plenitude. Saber que elas podem vir a recair sem se sentirem fracassadas é também importante nesse momento de alta.
Elas precisam encarar e se preparar para a finitude, para os limites da realidade e para o corte com o programa. Contamos com uma aposta nossa e delas para uma maior compreensão de que a incompletude (característica básica de todo sujeito desejante) não pode continuar sendo evitada ou contornada somente pelas drogas. Da mesma forma, o grupo também não poderá continuar amparando-a para sempre. Não poderá permanecer grudada, aderida e “dependente” do tratamento. Deve ser um momento de comemorar essa conquista de autonomia. A última sessão da paciente no grupo é geralmente regada a comes e bebes (não alcoólicos) e presentes. É uma alegria compartilhada, um marco importante e um momento de comemoração.
A alta é uma aposta da equipe e da paciente. Nesse momento uma outra relação com a falta se estabelece. É uma mudança subjetiva muito importante. Mesmo sentindo que está perdendo algo - o tratamento e as trocas semanais no grupo, o que elas verbalizam com certo pesar - conseguem elaborar que não se trata de um abandono, mas sim de uma conquista, efeito do trabalho realizado. É um voto de confiança, pois acreditamos que ela consegue seguir sem esse apoio. Ela troca a dependência da droga e do tratamento pela autonomia de fazer novas escolhas e se responsabilizar por elas. Sabemos que não existe garantia, por isso a ideia de aposta.
No entanto, também nos deparamos também com situações difíceis nesse momento. Nem sempre essa alta garante uma mudança positiva e sustentável por muito tempo. Ela pode provocar repercussões inesperadas em decorrência de questões fundamentais e estruturais da vida da paciente, principalmente no que diz respeito às relações no núcleo familiar. Uma melhora pode provocar um desequilíbrio em uma dinâmica familiar com funcionamento patológico, cuja manutenção se equilibra com a presença de um dependente de droga, seja ocupando o lugar de bode expiatório dos problemas do grupo, ou de um depositário das doenças familiares.
Quando a paciente consegue sair dessa posição, o sistema se desequilibra e a família reage, provocando situações que as fragilizam e levam às recaídas. Uma paciente que chegou ao tratamento com sua saúde muito debilitada, que havia abandonado seu trabalho como funcionária pública, dependente de crack, tinha um relacionamento muito conturbado com sua mãe, uma evangélica fervorosa, que condenava fortemente a homossexualidade da filha. Costumava atuar com chantagens emocionais e financeiras (dizia que ia deserdá-la) e até com ameaças de suicídio. Depois de alguns meses no tratamento, ela mudou-se de casa, retomou seu trabalho e foi morar com a companheira. Um mês depois sua mãe caiu da escada da casa onde morava e sofreu fraturas na coluna. Resultado: a filha voltou a morar com ela, rompeu sua relação amorosa e em seguida recaiu no crack. Foi uma situação de forte impacto no grupo, mas também serviu como uma constatação dos limites da nossa atuação frente a questões patológicas subjacentes e constituidores da subjetividade.
E depois da alta, o que vem? Procuramos cuidar também para uma continuidade dos cuidados com essas pacientes para fora do âmbito da Instituição, através de encaminhamentos para outros espaços de cuidados. Algumas começam cursos profissionalizantes, outras iniciam tratamentos psicoterapêuticos individuais ou grupais em espaços que não são direcionados para o tema da toxicomania, outras começam ou retomam trabalhos regulares. Ou seja, são várias as possibilidades quando elas se encontram melhor posicionadas diante das questões existencias, conseguindo resgatar seus desejos escondidos atrás de um excesso toxicomaníaco, conseguindo fazer escolhas melhores para descobrir outras possibilidades de se posicionar no laço social.
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Livia Maria Amaral Brito é Psicóloga do Programa da Mulher Dependente Química (PROMUD)-IPq/HC/FMUSP. Psicanalista e Acompanhante Terapêutico de Pacientes Psicóticos e de Dependentes Quimicos. - Professora convidada no NESME – Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares.







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