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Flores, dores, e cores - cenas de um acompanhamento terapêutico

Atualizado: há 1 dia

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Por Diego Deneno Perez e Philip Alexander Galvão McCormack

 

[chega o café na mesa, dois homens sentados de frente um para o outro conversando]


Cosme - Mas me conta aí a cena que você tá lembrando!


Floriano - Lembrei de quando namorava Jacinto em 2017, que Elza já tava nos últimos álbuns mas não parava de fazer show, e esgotava em segundos. Lembro que eu ficava na frente do computador pra comprar, na noia, na fila de espera. Consegui 2 ingressos e Jacinto conseguiu 2 também. Chamamos minha irmã, galera, ninguém podia. Aí falei “vamo vender na porta pelo mesmo preço né?” E aí eu vi que tinha que ser, porque na hora apareceu uma mãe e uma filha de 16 ou 17 anos - a mãe com a cara fechada por não ter ingresso, a filha gritando desesperada pra ver se alguém tinha.


Perguntaram por quanto a gente vendia, oferecemos o mesmo preço; a filha quis, mas a mãe perguntou se era música apropriada, “porque canta de Exu, canta umas coisa aí, será que é apropriado pra menina?” E aí a gente falou que é, mas também pensamos que era necessário pra mãe. E foi um show do caralho, que ela militou pra caralho, botou instrumentos e dançarinos em referência a Orixás, foi muito bom... E eu ficava imaginando só a cara dessa mãe.


Cosme - Eu vi um show dela no palco externo do Auditório do Ibirapuera, bem foda mesmo. Mas então vamo lá, recuperar essa caminhada que a gente tem feito. Capuccininho e suquinho de laranja na mão, lembrando de experiências de Elza Soares…


Floriano - E depressão.


Cosme - Depressão profunda. Mas então, a ideia é a gente poder recuperar nossa trajetória compartilhada: eu como Acompanhante Terapêutico (AT) e você como acompanhado.


Floriano - “Doidjo”.


Cosme - “Doidjo”… E aí eu peguei uns momentos cronológicos pra poder organizar um pouquinho o papo, começando pelas primeiras impressões que a gente teve um do outro. [risada nervosa de Floriano]  É, bastante coisa. E eu acho que primeiras impressões dizem de muitas coisas, né? Seu AT anterior encaminhou seu caso pra mim, e aí a gente começou a conversar por mensagem pra marcar um primeiro encontro.


Demorou pra acontecer, mas a gente se conheceu no Parque da Água Branca. E aí a gente ficou uns meses sem se ver. Depois você lembrou de mim e me chamou. Você consegue me contar um pouco desse primeiro momento?


Floriano - Olha… do primeiro momento só tenho fragmentos, porque eu tava virado e cheirado há uns 2 dias. Te pedi pra ser num lugar mais perto de casa, mas você falou pra gente manter no parque, aí pensei “eu vou lá, vou atrás dessa bicha, preciso parar de usar droga, preciso aceitar ajuda de todo que é lugar, eu vou.”


Peguei um Uber, eu tava muito louco, muito louco... E a gente ficou conversando, eu não lembro muita coisa, mas lembro principalmente do sentimento de acolhimento. Eu acho que eu tava bebendo, e em algum momento você fez uma intervenção… Eu quis cheirar na sua frente, e você falou pra eu não fazer isso, pra eu ir no banheiro, algo assim.


Cosme - Você pediu pra eu ir no banheiro com você pra você usar, e aí eu falei “ó, você usar é uma escolha tua, mas eu não vou te acompanhar.”


Floriano - Minha memória, que fique claro, ela é meio bagunçada. Eu não lembro muito, lembro de estar muito louco e falando um monte de bosta, mas de sentir acolhimento no olhar, no sorriso, além de pensar “porra se esse cara não desistir hoje, ele não desiste mais.” Aí quando você foi embora eu pensei “acho que nunca mais ele vai aparecer…” Vai dizer “desculpa, a agenda lotou agora do nada…”


Cosme - Nem sei se você lembra, mas nesse dia você perguntou no meio da conversa “já tá procurando a saída de emergência?”


Floriano - Não lembro de quase nada que eu falei nesse dia, só que eu falei bastante, típico de quando tô cheirado… Lembro que tava muito calor e eu tava tomando uma cerveja ou caipirinha. Aí depois de um tempo você precisava ir embora, e eu não conseguia voltar pra casa, porque eu tava sem crédito no celular, sem dinheiro no cartão, sem dinheiro em espécie, e eu pensei “PQP vou ter que voltar a pé até minha casa nesse estado, sol rachando na cabeça, eu no limite das minhas forças.”


Sentei na calçada e fiquei pedindo carona. Eu tava viradasso não sei há quanto tempo… Tava com a cara mais podre possível, fedendo, obviamente ninguém ia parar pra me dar carona - uma menina do Oxxo que tinha lá do lado me salvou, me emprestou a internet do celular dela pra chamar um Uber. Agradeço essa menina até hoje mentalmente, nunca mais vi ela. Aí eu consegui chegar em casa, e foi o limite mesmo, esgotei naquela sessão de usos intermináveis; aquele foi o fim, eu tava exausto, calor da porra…


Eu lembro de ter falado “puta que pariu mais uma pessoa super gente boa que tem um papo mó legal, tem um olhar e voz de acolhimento, de não-julgamento, é mais uma pessoa que vai virar pra mim e falar que teve um imprevisto familiar, que vai indicar alguém, que a agenda lotou do nada… mais um que eu não deixo entrar na minha vida, antes mesmo que dê ruim organicamente eu já não deixo entrar.” Fui dormir depois de fumar um K9 pra desligar o cérebro, e isso é o registro que eu tenho do nosso primeiro encontro.


Cosme - E aí rolou a overdose na mesma semana, 1 ou 2 dias depois. Você tinha ido pro aniversário da sua mãe no interior.


Floriano - Eu consegui a proeza de ter uma overdose no aniversário da minha mãe. Depois fui passar 3 meses no Instituto de Psiquiatria da USP (IPq).


Cosme - E como foi lá?


Floriano - Ah, foi um tampa buraco. Foi combinado que eu ia ficar 3 meses lá, e eu fui enganando do jeito que eu sempre faço… “Ai que legal, esse grupo me abriu tanto a mente, me esclareceram tanta coisa, nunca mais vou usar nada na vida, agora o céu se iluminou pra mim, nossa eu tô evoluindo tanto, porque agora eu me arrependo, eu choro de arrependimento, e eu vou pedir perdão para cada um, porque vocês fizeram eu perceber o quão errado eu estava…” E eles acreditando.


Lembro que não sabiam em qual enfermaria me enfiar, circulava em várias. Ficava essa discussão entre a galera, “de quem que é o caso, o que a gente faz com esse moleque?” Ninguém sabia onde me por, e ninguém queria assumir o BO, porque cada ala tem suas restrições e responsabilidades, necessidades… E misturou tudo, ninguém queria assumir o BO de pensar “se fizer tal conduta aqui, vai ser o oposto da conduta de lá”. Foi uma bagunça, 3 meses de bagunça. Mas aí eu fiz meu fake e saí. E no mesmo dia já liguei pro dealer.


Cosme - Lembro bem. E quando você tava pra sair de lá, falaram que você precisava de um AT, e você lembrou de mim. Aí a gente se viu alguns dias antes da alta, que você foi pintar o cabelo.


Floriano - Foi muito interessante… Primeiro conheci a psiquiatra, Rosa, gostei dela de primeira, meu pai também gostou dela; minha irmã até zoou, “pera, os dois entraram num consenso? Ninguém se mexe!” Ficou ela de psiquiatra, que me indicou um psicólogo comportamental, que desde o início tava claro que nenhum de nós dois se suportava. Eu odiava ele, ele me odiava - e a gente admitiu isso no final, foi legal. Claramente não tava rolando, só insisti porque confiava na indicação da Rosa, mas depois de um tempo…


E onde que você entra nisso? A necessidade de um AT veio, e a primeira coisa que a gente fez foi pedir indicação desse psicólogo. Fiz um primeiro encontro com essa indicação, a gente foi fumar um cigarro e dar uma volta na quadra, e ele era chato pra caralho, que nem o psicólogo, bem engomadinho… chato chato chato. Eu perguntei pra ele como seria o trabalho, porque era muito novo pra mim - e de fato era, nunca tinha tido AT por um tempo, o que tentou antes de você pulou fora rápido. E ele falou, seguindo a linha comportamental, “você tem transtorno alimentar, você tem adicção em drogas, tem depressão e ansiedade, tem tendências suicidas, e a cada semana a gente vai trabalhar uma dessas coisas até tirar todas.”


Respondi “legal… Como?” E ele respondeu que iria criar metas a cada semana. Eu pedi exemplos, e ele falou coisas bizarras do tipo “quando der vontade de vomitar, vai pra lugar que não tenha privada, vai pra rua ou algo assim”. Era umas metas muito idiotas… Como se vontade de sentar se resolvesse atirando as cadeiras pela janela.

Cosme - Ah, mas você não tem transtorno de sentar?


Floriano - Não… depende. Depende do que estamos falando [risos]. Mas foi isso, achei as metas idiotas, sem sentido pra mim, e eu sabia que ia sacanear com ele e comigo e recusei. E aí lembrei dessa figura que me suportou louco… E eu pensei “pô, ele já viu o pior de mim, por que a gente não tenta?” E aí eu fui pintar o cabelo, porque me deu um surto borderline de autoestima, acompanhado de um AT do IPq… São péssimos os ATs de lá.


Cosme - Ele era um fofo!


Floriano - É relativo, né [risos]. Mas zero preparo, enfim… Você falou que ia junto, eu disse que já tinha acompanhante, você disse que ia mesmo assim pra gente se ver. E o que me marcou muito desse dia foi que na hora de descolorir o cabelo, o pano apertado demais no pescoço pra não manchar a roupa, eu tendo uma crise de falta de ar e um ataque de pânico violento demais… O outro AT com o meu Rivotril, eu falando pra ele me dar muitas gotas, ele todo assustado com a minha reação… Você com calma falou pra gente fumar um cigarro lá fora. Eu tava tão fora de mim que topei, e quando vi passou 10min e a gente tava lá fora conversando e fumando, eu tinha esquecido da crise de pânico e nem tomei o Rivotril… Isso me marcou muito.


Cosme - Eu lembro dessa cena, não sabia que tinha te marcado tanto.


Floriano - Daí eu fui vendo que você aguentava o tranco, não sei se isso é bom pra você… Espero que você tenha uma analista que te aguente bem, porque não deve ser fácil suportar os doidos como eu. Eu tava há anos tomando doses cavalares de Rivotril, e quando você me fez esquecer da ansiedade simplesmente conversando e fumando um cigarro, eu pensei “tá escolhido”. Você me conquistou naquele dia, e aqui estamos nós… Mas ó, uma dúvida, vai ser só o meu lado ou você vai entrar no papo? Porque tá virando um monólogo!


Cosme - Eu ia falar disso agora, tava deixando correr, mas eu já ia falar as minhas impressões, e até meio que inverter os papéis, que se você tiver complementos, perguntas, vai fazendo! Pegando essas partes que você já falou, eu vou contar do meu lado como foram as minhas sensações.


Floriano - Adoro.


A gente tava há algumas semanas tentando marcar, você se esquivando direto, e eu resolvi ser mais insistente, mais chato… Foi muito louco, porque minha primeira sensação foi “nem conheço o cara pra me permitir ser chato e insistente”. Eu tive que pensar um tanto antes de falar “vou meter esse louco”.

Cosme - Começando pelo primeiro encontro, lá no parque… A gente tava há algumas semanas tentando marcar, você se esquivando direto, e eu resolvi ser mais insistente, mais chato… Foi muito louco, porque minha primeira sensação foi “nem conheço o cara pra me permitir ser chato e insistente”. Eu tive que pensar um tanto antes de falar “vou meter esse louco”. Você tinha dito que tava ansioso, pra deixar pra outro dia, e eu disse que eu já tava a caminho e não rolava você me deixar no vácuo. Você ofereceu pagar Uber pra eu ir até sua casa, eu falei que tava indo pro parque e que você ia me encontrar lá e não ia furar de novo; você aceitou.


Eu fiquei bem preocupado, porque você chegou muito louco, horário do almoço, e já pediu um copasso de caipirinha. [risos, chega um espresso para Floriano]


Floriano - E olha só, trocamos por um copasso de café! [mais risos]


Cosme - E também como foi a primeira vez que eu te vi, me chamou a atenção o quão magro você tava.


Floriano - Você acha que eu tava mais que agora?


Cosme - Sim… pelo menos na minha memória, foi uma coisa bem marcante, mas sem julgamento de valor. Foi numa pegada mais de querer entender se nutricionalmente você tava saudável, se você era naturalmente um cara muito magro.


Floriano - E agora você falando, me veio um pensamento do tipo “será que eu tô gordo agora, e preciso emagrecer urgente e ninguém me fala?” Mas prossiga.


Cosme - Acho que esse é um papo importante da gente voltar depois. Mas então, aí a gente entrou no parque, você tinha levado uns pinos e queria cheirar no meio do parque, me perguntou se ia dar ruim e se iam reparar. Falei que iam reparar com certeza, então você falou que queria ir no banheiro usar e pediu pra eu ir junto. Eu disse que não, que esperaria no banco onde tava sentado. Você insistiu porque não queria ir sozinho, mas foi, e voltou um pouco menos ansioso. A gente deu uma caminhada, sentou e conversou. Lembro de você falando sobre ser um alienígena. E foi muito legal, porque você falava de um jeito que não deixava claro se era metáfora, tava falando de uma forma muito literal.


Floriano - Nunca foi metáfora.


Cosme - Mas você sabe que nasceu da sua mãe e seu pai.


Floriano - Tá, mas… Bom, continua.


Cosme - Naquele papo, era um relato autobiográfico de alguém que foi depositado no planeta Terra de outro lugar, não sabe onde, e foi muito real, muito vivo. Eu pude de imediato entender um pouquinho de como você se sentia, e a gente ficou falando de ser alienígena, as várias formas de ser. Eu te contei sobre como também me sinto alienígena também de muitas formas, diferentes das sua… Desse se sentir à margem, os desencaixes. Eu lembro que você ficou bem surpreso de escutar eu falando isso. E depois desse primeiro dia, você contou que ia ver sua mãe, e eu tava botando fé que a gente ia se falar de novo quando você voltasse do interior.


Floriano - Aconteceu! [risos] Não do jeito que a gente esperava, mas aconteceu.


Cosme - E foi doido, porque era você internado, sem ter firmado nada com você… Mas eu abracei uma função de pensar “esse cara não tá bem, e eu preciso fazer alguma coisa, mesmo que eu não esteja formalmente vinculado, preciso fazer alguma coisa pra me certificar de que ela tá sendo cuidado.” Tive umas conversas com sua mãe, sua irmã e sua analista, pra tentar organizar minimamente teu acompanhamento - falei pra elas que eu não tava pensando em ser escolhido pra assumir o caso ou não, só queria ajudar a coordenar esse primeiro momento e a pensar o que daria pra fazer. E elas também tavam super recolhidas, claro, estranhando um cara querendo ajudar assim do nada - e sua família não tinha contato com sua analista, não sabiam da minha indicação através dela. Me fiz disponível, vi que você já tava protegido e assistido num serviço de saúde e me retirei.


Pra minha surpresa, você entrou em contato. Eu fiquei bem feliz, porque foi um primeiro encontro muito marcante, acho que dos 2 lados né? Talvez eu lembre um pouco mais, mas marcante dos 2 lados. Pensei “poxa, esse é um cara que rola de desenvolver uma profundidade e complexidade nas conversas - não vai ser frio, protocolar ou difícil de conviver, a conversa fluiu fácil.” Quando você veio falar comigo fiquei até lisonjeado de ter passado 3 meses e você me buscar pra te acompanhar.


Minha primeira impressão de como as coisas tavam estruturadas no momento que você sai do IPq era que as coisas tavam organizadas pra acontecer de um jeito muito protocolar, na pegada de metas, quase de esconder privada pra não ter onde vomitar, sabe? E isso me preocupou. Na época eu puxei esse papo com Rosa e com Yuri (o psicólogo que te acompanhou logo depois da alta), de dizer “gente, eu entendo a importância da gente ter uma proteção à vida dele, só que…”


Floriano - “... ele precisa ter uma privada”. [risos]


Cosme - Isso! Eu falei “cara, é uma pessoa que tem uma vida que quer ser vivida! Como é que a gente vai mediar isso?” Então foi uma mistura, uma identificação legal com você de imediato, uma preocupação grande, uma vontade de trabalhar junto, mas também um desconforto de dizer “pera aí, como isso pode acontecer de um jeito responsável e humano? De misturar esses dois polos, que não deveriam ser polos.” E cara, você ter saído do IPq e no mesmo dia ter entupido a cara de droga não foi uma surpresa pra mim, nem me preocupou tanto, acredite ou não.


Floriano - Acho que não foi surpresa pra ninguém, né?


Cosme - Mas não me preocupou. O que tava me preocupando mais naquele momento era justamente o discurso, sempre te falo que odeio essa palavra “recaída”, o discurso da recaída… “recaiu, voltou pra estaca zero”. Vai tomar no cu, sabe? É parte de um processo, saca? Tá bom, você usou, beleza, vida segue. Desse primeiro momento da relação, acho que é isso.


Floriano - Só me preocupo se engordei muito de lá pra cá.


Cosme - Não. Naquele dia que eu te conheci, a minha percepção era “o corpo dele aguenta ficar de pé sozinho?” E agora você continua bastante magro, só que agora eu não me pergunto mais se você consegue ficar de pé sozinho. Mas é isso, uma angústia que eu sei que te pega bastante e que a gente continua olhando pra ela.


Floriano - Sim…


Cosme - Mas então, aí a gente entra num momento intermediário do nosso processo, que abarca algumas coisas… O tempo que você ficou em casa, a primeira estadia no Residencial Terapêutico, e sua volta de novo pra casa.


Floriano - Você tem a cronologia da minha vida melhor que eu! [risos]


Cosme - Falei pra você que eu anoto as coisas! Foi muito legal recuperar as anotações desse último ano… Mas então, como que é tua percepção desse período que você ficou em casa depois da internação no IPq, e esse primeiro mês no Residencial?


Floriano - Naquela época eu não queria parar de jeito nenhum, não via sentido em parar, tava muito envolvido, muito entregue… não tinha porque parar. Pensei “bom, já fiz meu teatro, tá ótimo, agora bora.” Aí a Rosa vai plantando a sementinha do Residencial na minha cabeça, e eu vou negando, até o ponto que eu penso que não aguento viver com, mas também não aguento viver sem a droga. Era desesperador nas duas situações. Entrei em surto, falei que precisava de ajuda. Veio um lapso de consciência depois de dias virado, drogado, sem comer, enchendo a cara, então liguei pro Residencial.


O cara que atendeu ficou 3h comigo no telefone, aguentando este ser, porque eu tava loucasso e falei um monte de coisa. Ele falou do espaço do Residencial, ficou me influenciando a ir, ajudando a criar coragem, aí eu falei “quer saber, eu vou nessa merda”, porque eu tava em desespero. Não tinha outra opção, eu não queria morrer, não queria me matar, porque seria muito fácil… Décimo terceiro andar, eu podia ter pulado, mas eu não queria morrer. Eu podia ter exagerado mais na droga e tido uma overdose proposital? Podia, mas eu não queria morrer, eu queria viver. Mas eu não queria mais viver com a droga, e eu não sabia viver sem ela.


Catei minhas coisas, cheguei no Residencial tomando uma garrafa de vinho, com uma camiseta toda rasgada, um chinelo velho quebrado. Era final de semana e tinha pouca gente, me acolheram lá mesmo eu estando muito louco. Falaram pra eu ficar num quarto pra desintoxicar, e quando tivesse melhor me apresentariam as pessoas e o lugar. Quando ele fechou a porta do quarto e saiu, me deu um surto, um desespero de dizer “eu não posso ficar aqui, eu preciso da minha cocaína, preciso da droga, preciso da bebida, tiraram minha garrafa de vinho, não podiam ter tirado ela, vou fazer um BO contra ele, e vou na delegacia”, louco né?


Saí do quarto, comecei a chutar o portão, vou pra outro lado, pulo janela, não sei o que. Aí minha mãe chega lá, e o Tulio coordenador do espaço fala “esse menino tá precisando ir pro hospital agora.” Minha mãe não sabia o que fazer, né, mas me levou… Chegamos lá, eu desmaio na recepção, depois eu tive uma convulsão também. Se eu tivesse ficado trancado naquele quarto do Residencial, provavelmente eu teria… teria dado ruim, um pouco de ruim. Daí eu fico no Samaritano… Não sei, é muito confusa essa época pra mim.


Cosme - Tudo bem, não precisa se preocupar em falar na ordem. Eu vou voltar atrás um pouquinho numa parte que me interessa saber, que é esse período em que você estava em casa antes do Residencial. Nesse período, eu vou pra sua casa durante a semana, algumas vezes;


teve um tanto de eu tentar negociar com você pra ir presencialmente pra consultas com Rosa e com Yuri, e a gente conseguiu fazer isso vez ou outra, mas a maioria foi online. E nessa época a gente aprendeu a passar tempo juntos; eu pensava “tá bom, a gente tá se conhecendo, como que a gente faz pra passar tempo juntos?”


Tem uma lembrança muito forte pra mim, do dia que você não atendia celular pra ninguém, e aí Rosa pede pra sua mãe ir pra sua casa ver se você tá bem, porque ela tem a chave. E calhou de ser no dia e horário que eu ia te encontrar, então quando sua mãe me manda mensagem pedindo pra encontrar ela lá, porque ela tava com medo de encontrar ele muito ruim e não saber lidar, eu falo que tô a caminho já e encontro você e sua mãe na sua casa - você putasso porque sua mãe entrou na sua casa, dizendo “foda-se, eu não quero saber se é pra me proteger, se é pela minha segurança, minha saúde. Essa é minha casa, é uma merda você entrar assim, sem minha autorização.”


Quando eu chego você fica puto comigo também, “não quero saber de porra de AT, deixa eu usar minha droga, deixa eu morrer, deixa eu me fuder sozinho, me deixa, me deixa afundar aqui nas minhas próprias mágoas.” Você falou praticamente com essas palavras. Aí eu comecei com uma postura apaziguadora, mas eu percebi que você tava tão puto e indisponível pra isso que pensei “quer saber, ele quer tretar, ele quer discutir relação, então vamos ter uma DR.”


A gente ainda há pouquíssimo tempo se conhecendo, e eu falei “porra, eu não quero saber se você quer morrer ou não. Foda-se o que você quer fazer, que você quer se afundar. A sua mãe, eu e algumas outras pessoas estão interessadas em ajudar você a entender a vida como uma coisa possível. Você querendo ou não, tem gente que acredita em você. Então engole essa porra.” E aí você ainda tava meio puto, mas você ficou meio confuso também, falou “Como assim tem gente que acredita, tem gente que quer estar junto?”


E eu acho que foi um momento que você deu uma respirada. Pra mim aquele dia ficou marcado como o dia que a gente pensou “ah, talvez a gente consiga se entender aqui, do nosso jeitinho.” Tanto é que de lá pra cá, nossas DRs são intensas e maravilhosas.


Floriano - Adoro, adoro…


Cosme - Ali foi o momento onde eu pude te dizer que não queria saber o que você tava usando ou deixando de usar, o que me interessava era saber o que você tem tido vontade e conseguido fazer em paralelo a isso. Também foi muito marcante porque eu gritei e xinguei e apontei o dedo na sua cara, na frente da tua mãe. E pra minha sorte ela conseguiu entender que a intervenção pra aquele momento era essa…


Acho que aquele mês e pouco de te acompanhar em casa foi muito virado pra ideia de “o que dá pra fazer agora? Pode ser muito pouco ou quase nada, mas o que tá dando pra fazer? Sentar e conversar? Dar uma volta com os cachorros? Tomar um café na padaria? Ficar sentado no chão montando quebra-cabeça? Suportar a presença um do outro… Com você com uma cerveja na mão? Com droga escondida na caixa de quebra-cabeça?” E a gente teve algumas dessas experiências.


Pra mim foi muito marcante, foi o momento onde eu tive a oportunidade de te mostrar o quanto eu tava disposto a estar ali com você, da forma que fosse. Como foi pra você essa época?


Floriano - Confusa, muito confusa. Tanto que essa primeira DR que você relatou, que parece que foi feia mesmo e a gente tretou feio, eu tenho zero lembranças, de verdade. Não é que eu tô fugindo pra não assumir a culpa… Eu devo ter te xingado, falado baixaria, sido escroto pra caralho. Mas não lembro disso, não lembro da minha mãe… Não vou me querer justificar, mas é que já teve situações de eu estar transando com alguém, tô num momento íntimo, e ela entra do nada… Tem uma questão da invasão aí, que deve ter também esbarrado com a loucura que eu tava, e explodi.


Eu não lembro de brigar com ela, nem do que eu tava fazendo sozinho antes dela chegar. Não lembro de você chegando, da gente brigando. E do resto também, é muito louco explicar - eu não sabia se tinham passado dez dias ou uma noite, porque a noite virava dia, que virava noite, que virava dia… E droga, droga, droga, e cocaína, e depois entra o K9, e aí o crack, e aí eu vou experimentando cada vez mais coisas, aí eu não sei mais se passou três dias… Daí a gente marca numa quarta, e eu jurando que hoje é domingo ainda, e aí de repente “o que o Cosme tá fazendo aqui batendo na porta, hoje é domingo, a gente marcou quarta.”


Foi um período que eu tava muito desorganizado, muito confuso… Mas muito! E foi um momento que eu falei “gente, chega.” Porque tava horrível sóbrio, mas tava horrível antes também. Eu queria ter lembrança dessa nossa DR inicial. Os poucos momentos onde eu conseguia dormir depois de fumar K9 e acordava sóbrio, era quando eu me entupia de comer e vomitava. Às vezes eram umas sessões de dez vômitos de uma vez, depois ia pras drogas, pra variar. “Redução de danos”, né? A gente cheira aqui, vomita ali… Então eu tava completamente refém desses dois orgasmos: da droga e da comida - a bulimia, a anorexia. E isso me dominou de uma forma que eu me tornei isso, esse conglomerado.


E eu não era mais uma pessoa. Eu não consigo não me enxergar naquela época como uma pessoa. Então pensando agora pela primeira vez: você ter enxergado e falado “foda-se o que você quer, tem alguém que se importa, tem gente que quer que você saiba que dia é hoje, se é dia ou noite, quer que você pare de vomitar” - porque eu fazia questão de não conseguir esconder nada de ninguém, tudo espalhado pela casa - pensando agora, talvez isso tenha mexido comigo.


Tipo “ué, mas eu já desisti de mim, quem que é esse louco que acabou de chegar na minha vida e tá acreditando em mim? Quem ele acha que é pra se meter? Eu já decidi que eu vou me matar, ele tá achando que eu mereço viver? Vai se fuder! Mano, eu já escolhi morrer, que que esse louco aí vai interferir, nem conheço.”

Tipo “ué, mas eu já desisti de mim, quem que é esse louco que acabou de chegar na minha vida e tá acreditando em mim? Quem ele acha que é pra se meter? Eu já decidi que eu vou me matar, ele tá achando que eu mereço viver? Vai se fuder! Mano, eu já escolhi morrer, que que esse louco aí vai interferir, nem conheço.”


Mas foi um período que pra mim é um lapso, é como se fosse uma coisa só. Não tem como discernir entre os dias, foi uma coisa contínua. Se eu não tava comendo e vomitando, eu tava cheirando e bebendo e fumando. E foi um looping. Mas mexeu sim isso de ver você como alguém que acreditou, foi lá e falou “não, eu não vou desistir, pode me xingar, pode fazer o que você quiser, eu não vou desistir.” Acho que eu devo ter pensado “esse louco achando que vai me salvar, filha da puta arrogante.”


Cosme - E realmente, do meu lado foi muito essa sensação de ser um período prolongado de bancar, de sustentar… “Sigo aqui, sigo aqui.” Mesmo às vezes sem saber exatamente de forma muito explícita ou concreta do que fazer naquele momento, o estar ali.


Floriano - Eu acho que fui me apegando muito a você naqueles momentos, nessa fase. Mas eu não tenho muita lembrança concreta. Foi um momento que eu já não tinha amizades - todo mundo já tinha, com toda a razão do mundo, parado de me chamar pra sair ou ir atrás de mim. Eu só tinha amizades de rolê, de droga, mas eu estava tão fraco e tão sem grana, usando tudo pra comida, pra vomitar, pra droga e álcool, que eu não tinha dinheiro pra sair. Então eu usava em casa, e tinha sempre um grupinho dos amigos que usava também, que cada um levava o seu e a gente ficava lá curtindo um som e se matando de droga.


Foi um período muito confuso, porque eu fui percebendo que não era amizade aquilo, era um culto satânico… Sei lá, era uma roleta russa. E os meus outros amigos já tinham parado de falar comigo, com razão, e você lá insistindo. Mas isso tudo eu tô pensando agora, não tinha pensado antes.


Acho que de uma forma meio sem querer, eu tenha te provocado muito nesse ponto, pra ver se você bancava mesmo. Deixar você ver a droga na caixa do quebra-cabeça, entrar na minha casa cheio de garrafa por aí, vômito na privada… “Vamo ver até onde esse filho da puta aguenta. Certeza que daqui a pouco ele vai…” Sei lá, tô pensando agora, pode não ter nada a ver. Realmente é uma época que é um lapso. Mas que eu daria tudo pra ver a nossa briga, daria!


Cosme - É, a gente se xingou… Eu falei “você vai ser um babaca filho da puta que vai ficar entupindo o cu de droga?” E até debochei, “olha eu aqui, usando a minha droga, eu quero morrer, olha só! Vai se foder, caralho! Olha o meu complexo de coitado, que ninguém se importa comigo… Mentira caralho, aqui tem gente que se importa.”


Floriano - Foi nesse nível? Que loucura…


Cosme - Mas agora pensando na transição pros tempos de Residencial - já tem uns bons meses no total, mas pensando naquele primeiro mês, as sensações que te atravessaram ali. E no meio teve um período muito curto que você voltou pra casa, pra depois voltar pro Residencial.


Floriano - Que foi quando eu tive a overdose…


Cosme - … o infarto, e internação no São Camilo. E aí a gente entra na fase mais prolongada de Residencial: festa de final de ano, internação na Clínica Tempus, e depois internação na Clínica Mansão.


Mas começando assim: você foi pra um residencial terapêutico… Como que foi a sensação desse primeiro mês, da volta pra casa, da UTI no São Camilo, e aí a volta pro Residencial? Um parênteses: eu lembro de você, nesse primeiro mês de Residencial, tratando o espaço como as internações anteriores: “eu vou fazer o teatro, passar um mês, e voltar pra casa”.


Floriano - Por um lado, eu já queria encerrar tudo. Eu queria, sem querer, um dia não acordar - sem querer, querendo. Na overdose eu tava com o João, meu ex, eu senti os mesmos sintomas das outras overdoses, então eu sabia o que era. Foi um momento que pensei “continuo a usar a droga e vamos ver até onde vai, ou eu paro?” Eu ainda dei mais uns tiros, bebi mais, aí peguei o oxímetro que eu sempre carrego pras crises de pânico. Minha oxigenação tava uns 60, algo assim muito baixo, e eu tava muito pleno, muito de boa. Eu pensei “caramba, morrer é tão tranquilo… Que paz eu tô sentindo em morrer”.


Quando eu comecei a ter espasmo e visão turva, e meu corpo começou a dar um tremelique, eu comecei a realmente perceber o que tava acontecendo, meu corpo tava por um triz. Eu saí da brisa da delícia da overdose de pensar “é por aqui que eu fico… Não quero mais, gente, é mais tranquilo morrer.” Quando começou a ficar forte, e faltando muito pouco pra eu morrer, o instinto de sobrevivência falou com tudo. E aí eu falei “vamos pro hospital.”


João não queria que eu fosse, porque ele sabia que eu ia ser internado de novo. Ele falou pra gente tentar cuidar ali mesmo, e eu falei que ia pro hospital com ou sem ele. Tentei chamar um Uber mas não conseguia porque meu corpo tremia, a minha visão tava turva… E milagrosamente o universo colocou um carro parado ali na frente, nem perguntei nada, entrei no carro com João protestando e falei “moço, me leva pro hospital”, e ele me levou.


Os médicos fizeram lá o que tinha que fazer, e eu lembro de acordar depois e ver a Rosa, e eu com essa coisa de internação na cabeça. Então perguntei pra ela “o que a gente tá pensando pros próximos dias, quando eu tiver alta?” E ela já respondeu “ah meu querido, você acha que você vai pra casa? Você não vai não!” Aí o João ficou puto comigo porque eu fui internado de novo, mas eu falei “mano, era isso ou então eu tava morto”. Eu tava aceitando muito bem morrer, mas quando começou a dar sinais mesmo, o instinto de sobrevivência falou muito alto.


Aí eu fui pro Residencial, com esse intuito de fingir, fazer um fake, pra voltar pra casa e usar mais. Eu tava nesse período ainda de pensar “não quero parar mas a psiquiatra me mandou, minha família internou, então não tenho escolha… Vamos fingir que tá tudo bonitinho.”


E você me acompanhando em tudo, né? Sempre, coitado do menino. No começo eu fiquei no Residencial sem pretensão nenhuma, e depois teve a confraternização de Natal, que eu sabia que ia dar ruim - e eu não queria que desse ruim, justamente pra não postergar minha alta, não era por preocupação com meu tratamento. Eu queria estar fora no dia da festa, falei “vou pra casa da minha mãe, vou no cinema, faço qualquer coisa… Gente, não vai dar certo, eu não trabalho bem com muvuca, com pizza à vontade, pizza é meu ponto fraco…” E eles dizendo “não, relaxa, vai ser só os familiares, a gente vai comer uma pizza.”


Eu fui imaginando a mesa grande, cada um sentado ali comendo sua pizza, tomando um refri de boa. Aí você viu né, a festa que tava… Parecendo uma micareta da Ivete Sangalo, e pizza à vontade. Daí primeiro eu saciei a minha fome bulímica, comi e vomitei acho que

mais de 100 pedaços, sei lá. Depois, não o suficiente, peguei uma garrafa de vodka que tinha comprado e escondido, e falei “é agora”. Tava o pessoal que servia a pizza num entra e sai na porta da frente, caminhonete na frente, e numa dessas meu filho… Só fui.


E eu lembro que o Camilo, minha referência no Residencial, foi atrás de mim. Eu falei “Camilo, confia em mim, eu vou fazer merda pra caralho mas eu volto amanhã.” E ele não conseguiu me acompanhar. Fui, fiquei a noite inteira fora, fiz merda pra caralho, você já sabe… Muita merda, me droguei muito. Mas fiz o que eu tinha prometido, voltei no outro dia, e ainda com dois sacos de um quilo de bombom, e umas plantas pra dar de presente pra eles. E um suco de uva e vários molhos de salada. Tipo, por quê? O Tulio que me lembrou isso depois. [risos]


E obviamente a remoção me levou, eu já sabia, né? Nem questionei, fui bonzinho.


Cosme - E aí na Clínica Tempus, você vai poder falar mais se quiser, mas do meu ponto de vista foi só um período bem merda de reclusão em que a preocupação era desintoxicar, mesmo sendo em um lugar horrível. E que pra além disso, não tem muita explicação terapêutica daquele espaço existir. Mas o que eu ia perguntar pra você sobre esse período da volta pro Residencial, aí a festa e a Tempus… Qual você acha que foi a relevância do meu papel de acompanhante terapêutico?


Floriano - Muito grande. Porque tem essa coisa do AT estar meio que entre o psicólogo, entre a força amiga, tem essa coisa toda. A equipe sabe que tem coisas que eu consigo confidenciar mais com você, e ao mesmo tempo me perguntando se eu tô passando os limites ou não - e mesmo às vezes sabendo que eu vou me foder porque eu tô te contando algo que você vai ter que eticamente contar pro resto da equipe.


O teu papel, a importância durante esse processo, foi de não me sentir abandonado. Quando eu acordei na Tempus - porque me doparam quando eu cheguei lá -, tinha uma série de protocolos, e dentro disso eu não podia receber visita por cinco dias, não podia receber ligação por cinco dias. Na minha cabeça eu pensava “certeza que agora fodeu, fugi no Natal, minha família não vai mais falar comigo, já não tenho amigos, Rosa vai desistir do meu caso, Tulio e Camilo nunca vão me aceitar de volta.” Eu já tava engolindo o luto de que eu queria voltar pro Residencial mas imaginar que não voltaria, porque Tulio e Camilo não iam me aceitar. Até escrevi uma cartinha de agradecimento e tal. Mas o que me manteve muito forte foi ter a certeza de que você ia aparecer em algum momento.


Não sei porquê, de algum modo eu sabia que você ia aparecer. E você apareceu. Não sei, eu acho que a gente construiu nesse tempo um vínculo, que até é meio perigoso, de confiança. Porque eu nunca confio em ninguém, até gente da minha família. Eu sempre acho que sou um saco, a minha autoestima é uma bosta… E sei lá, as pessoas vão cansar, não vão me aguentar. E até pensando, fazendo o link com o que eu falei antes de ir testando seus limites, eu acho que eu faço muito isso. E as pessoas não aguentam, obviamente. Ninguém precisa aguentar um idiota, filha da puta, drogado - e você aguentou.


Então no meio desse campo devastado, de certeza de que todo mundo tinha desistido do meu caso, eu tinha certeza que uma pessoa não tinha, que ia aparecer você lá, e sem julgamentos morais. Isso me deu força, porque foram cinco dias sem comunicação, mas foram cinco dias que passaram como cinco anos… Porque eu pensava “perdi minha família, perdi minha grana, perdi os amigos, perdi a psiquiatra, perdi o melhor lugar do mundo que estava me acolhendo super bem que era o Residencial, mas tem o Cosme, eu sei que ele não vai largar a minha mão.”


A gente passou por tanta coisa… Então eu acho que você ocupa um papel meio de trazer esperança - de criar esperança, não é nem “trazer”. Durante esses meses em que a gente foi trabalhando juntos, até nas DRs, a “construção” de uma esperança que até então eu não conhecia. E foi através dessa esperança que a gente construiu junto, que você construiu, que eu consegui me manter minimamente são naqueles 5 dias na Tempus sem comunicação. Porque eu sabia que você me ensinou a ter esperança, e eu sabia que você ia estar lá em algum momento.


Cosme - Uau… Caralho. Que bom escutar isso. Eu fico muito feliz, e me emociona pensar que eu pude te oferecer um pouco disso.


Floriano - Muito, você não sabe o conforto que era. Foi terrível, eu tinha certeza que minha mãe não ia mais falar comigo, nem minha irmã (como de fato ficou um tempo sem falar). Eu nunca tive esperança, então não foi nem a esperança conhecida, foi uma esperança construída no nosso trabalho, que se manifestou muito forte naquele momento. Acho que isso me deu força para aguentar esses 5 dias. Senão eu não teria aguentado.


Cosme - Que bom você aguentou, e que tamo aqui. E aí teve o retorno pro Residencial, e teve aquele fatídico dia que o João brigou com você, você ficou malzão, você desabafou com a equipe e foi parar na Clínica Mansão. E eu lembro de você ter ficado bem puto com todos nós da equipe, e que te dei razão em ficar puto. Teve esse tempo na Mansão, aí o retorno pro Residencial, e pro lugar onde a gente se encontra agora do processo todo.


Queria saber se você quer e consegue falar sobre essa transição, esse sentimento de frustração, revolta, e angústia do tempo na Mansão, e como você foi encarando isso no retorno pro Residencial - porque foi um momento bem delicado.


Floriano - Eu me senti traído, porque Camilo e Tulio sempre batem na tecla: “você tem que confiar pra pedir ajuda, antes que aconteça alguma coisa. Pede ajuda quando você não estiver bem.” E eu cheguei, eu estava muito mal, cheguei chorando. Queria uma ajuda, um consolo, uma palavra, uma conversa do tipo “calma, mas como é que foi essa conversa com João?” Qualquer coisa… “Para de sofrer por esse bosta, vai se foder.”


O que eu recebi foi “vai pegar um copo de água que eu vou te dar Rivotril.” Tá, eu ia pedir Rivotril de qualquer forma… “Então agora vai esfriar a cabeça, toma um banho.” E eu imaginei “ok, uma medida terapêutica, quando eu sair do banho a gente continua conversando.” Quando saí do banho de toalha, tinha três enfermeiros me esperando… Eu juro que eu não acreditei, fiquei passado. Quando eu entendi que realmente eu ia ser removido, eu falei “deixa eu pelo menos pegar meus livros e alguns maços de cigarro.” E o Camilo falou que no dia seguinte a Rosa ia lá, ela vendo que eu tava bem já assinava minha alta, no máximo depois de amanhã. Eu confiei nisso, e fiquei 23 dias lá esperando a tal da alta.


Mas foi um processo muito bom, muito diferente da remoção da Tempus, porque pra Tempus realmente eu fiz merda. Nessa eu tava de cabeça erguida, com a certeza de que eu não tinha feito merda nenhuma, e que eu não confiava em como a equipe conduziu. Hoje em dia eu consigo flexibilizar, no sentido de pensar que eu tinha histórico de fuga recente, cheguei muito abalado, deixei entrar o psicólogo que eu não tinha contato nenhum na minha caverna, ele se assustou e acionou a remoção - até passo esse pano. Mas não pro outro cara que fingiu que eu tentei subir com a sacola cheia de vidro; uma peça de vidro que quebrou quando a gente tava na rua, que eu avisei e tentei entregar pra eles quando cheguei no Residencial, mas falaram que depois resolveriam isso. Esse outro cara depois falou que eu tentei subir com a sacola dos cacos quebrados para me cortar, e que ele que teve que ir atrás de mim pra fazer revista… Isso eu nunca engoli até hoje. O Tulio e o Camilo prometeram que teria uma conversa, nunca teve até hoje. Também já perdeu o timing, já não faz sentido.


Então acho que foi mal conduzido, porque apesar de ter sido um momento que vocês perceberam que precisavam se organizar enquanto equipe, por isso levou 23 dias… Ok, repensar combinados e contrato terapêutico. Mas e os dois dias que o Camilo prometeu? Euestava sem cigarro, sem livro, sem roupa. Mas olha, foi um período bom, porque eu estava sem culpa nenhuma. Não fiz nada, eu sabia que não tinha feito nada de errado, e que eu poderia contar com o seu apoio de alguma forma. Porque eu falei “gente, é tão injusto isso que está acontecendo, que eu pago para ver o Cosme concordar com isso.” O cara que mentiu sobre os cacos na bolsa, e o Camilo falando que eu só ia ficar dois dias no máximo e me deixando sem cigarro, sem roupa, sem livro… Acho que foi conduzido de uma forma bem equivocada, a promessa de que ia ter a reunião que nunca rolou até hoje.


Mas no que te envolve, eu fiquei muito com uma frase que acho que foi a Rosa que falou. Se referindo a ela, o Camilo e o Tulio, falou que eles são mais durões em questões de combinados, de regras e tal, e que você tem um outro olhar que complementa, mais humano, onde você fala “vocês estão olhando pro fenômeno da droga, mas pera aí, tem um Floriano aqui, gente! Vamos colocar o Floriano um pouquinho na plataforma, no protagonismo?” Porque você fazia muito isso, desviava o holofote que tava em fuga, pizza, bulimia, droga… E você sempre era aquele que dizia “gente, o Floriano está aqui.”


Eu tava com a consciência limpa e tranquila, vivendo dias ótimos lá, porque era um resort de luxo… Trevosinho, do jeito que eu gosto - quando acabava a luz era maravilhoso, amava. Foram dias ótimos. Tinha esteira, tinha tudo pra fazer lá. Mas eu tava bem puto com isso. E eu acho que você entra também como uma pessoa que tava junto no dia do vidro quebrado… Enfim. Eu realmente não sei como foi conduzido entre vocês da equipe. A única coisa que eu sei é que foi se arrastando, e 2 dias se tornaram 23.


Mas eu sinto que eu me apoio muito na sua consciência, na sua visão das coisas. Porque apesar de você passar muito pano pra mim no sentido de coisas leves, quando o bagulho é sério você leva pra equipe. Se eu virar agora e falar “Cosme, fica aí rapidão que eu vou escondido cheirar um pó”, eu sei que você vai levar pra equipe. Mas eu confio também muito no sentido humano da coisa. E acho que talvez a função AT até traga isso, seja diferente.

Com Rosa, a única troca que a gente tem é remédios, como tá a semana, depressão, borderline, não sei o que. Camilo e o Tulio já é mais questões sobre o Residencial, procedimentos, gerenciamentos. E você tá num meio termo que não é 100% bom, ele é bem perigoso… Mas eu sei que você não tá nem pra lá nem pra cá. Eu sei que você tem uma visão diferente, que você consegue enxergar melhor outras coisas, outros aspectos, mas você não rompe com a equipe no sentido ético da coisa. E aí cabe a seja quem for o - é “acompanhado” que fala? - que seja, o fudido da vez que tá sendo atendido por você; cabe a ele saber lidar com isso, porque se mistura. Tanto que recentemente eu falei “porra mano, eu tava apaixonado por você.” A gente trabalhou e beleza, ficou tudo bem. Eu pensei também em outros momentos “pera, o que é isso? É uma amizade? Que porra é essa?”


Você sabe que tem que ter uma delicadeza aí pra mostrar o que é, que ao mesmo tempo não existe por palavras. Vai se transformando através dos encontros, das coisas que vão acontecendo. Tipo quando você tem que dar um “Floriano, pisa no freio”, e eu penso “tá, entendi, aqui já é demais, volta um pouco.” É essa coisa que eu que mais confundo, não falando só por mim, mas todo mundo lá do Residencial sente isso com seus respectivos ATs… A gente se pergunta “o que um AT faz?”


É um amigo, mas ao mesmo tempo paga, mas ao mesmo tempo você fala a sua vida inteira, mas não é um psicólogo… Todo mundo tem essa dúvida. O que é isso? E tem muito caso de mistura, de gente que fala que se apaixonou… Até te contei do caso de um cara que namorou a AT dele, eles encerraram o acompanhamento, ele procurou outro AT pra poder namorar com ela. Então meio que mistura, mas eu acho que hoje em dia tá bem claro… Que nada está claro. [risos]


Cosme - Olha só que chique fechar com essa frase! Dá até vontade de encerrar esse papo com ela.


Mas pra não deixar de falar da minha minha percepção dessa parte, que eu acho que é bem importante também, apesar de ter ficado muito poético o seu final de fala… Eu queria falar um pouco dessa fase na Tempus, na Mansão, e os tempos recentes até agora.


Na Tempus, eu fiquei muito triste de te ver lá. Muito mesmo. E o meu sentimento estando lá com você era: “o que eu consigo propor de forma realista pro Floriano agora, que seja no sentido do esperançar? Sem eu ser hipócrita?” A minha sorte é que a gente já tinha antes falado sobre algumas coisas que a gente queria fazer e que lá dava, tipo ver filme. Pode parecer uma coisa super besta, só que o fato de ter uma TV com Netflix lá e ter filme do Almodóvar na Netflix foi... Uau! Foi alguma coisa, num terreno baldio de pouquíssimas coisas disponíveis.


E foi foda pra mim ver a forma que a equipe da internação conduzia ali. Parece que rola um descompromisso, sabe? Ter que ficar pedindo, reivindicando coisa que é direito básico… Sei lá. E no meio disso a gente achando respiros. Eu dei muita risada naquele dia que você saiu comigo pra sentar no banquinho de frente pra rua, e mandou um áudio no grupo pra celebrar o aniversário do seu sobrinho. Nossa, foi muito bom, você deu um gritão animado que assustou o segurança da clínica, e eu passei mal de rir.


Acho que no geral, nesse tempo que a gente tá junto, tem vários desses momentozinhos recheando os encontros, de alguma risada aleatória, algum escândalo, etc. Eu acho que é muito legal e faz parte da relação, faz parte do trabalho. É muito foda. E aí, conseguir recuperar mesmo que só um pouquinho disso, dentro daquele contexto da Tempus, acho que foi bem importante. Pelo menos pra mim. No meu sentimento de profissional, de trabalhador, de acompanhante, de falar “eu não posso aceitar que não seja nada, sabe? Aqui não é um espaço pra gente só se render. A gente precisa achar alguma coisa.”


E aí você volta pro Residencial, a gente sustentando muito esse discurso de “Pede ajuda, aciona, desabafa, fala”, e pouco tempo depois acontece a remoção pra Mansão, né? Dá pra entender o raciocínio da equipe do Residencial pra acionar a remoção, mas também dá pra entender as frustrações que ficam pra você. Ali eu pensei “Cacete, a gente tá sustentando esse discurso o tempo todo dele desabafar, e quando ele finalmente desabafa, se torna uma remoção logo de cara.” Ao mesmo tempo, eu tava pensando “puts, mas se a galera na hora avaliou que tinha riscos suficientes, dados os eventos e crises recentes, era o que tinha pra fazer.”


Então essa avaliação inicial aconteceu, mas aí teve o prolongamento do seu tempo na Mansão, que também foi uma coisa que me incomodou. Eu falava pra equipe “qual é o combinado com o Floriano? Sim, tem questões que a gente tá precisando organizar aqui, mas será que a gente consegue fazer isso sem desrespeitar o combinado? Nem que fosse pra ele voltar pro Residencial, e aí no meio dessas grandes mudanças no tratamento que a gente tá propondo, se a gente perceber que ele não tá legal de novo, ele volta para a internação.” Mas aí também teve uma avaliação conjunta, do pessoal falar “cara, eu acho que são mudanças grandes o suficiente que a gente tá com muito medo de como o Floriano vai lidar. Muito medo mesmo, assim, nu e cru. E esse medo é dele se colocar no mesmo risco que ele se colocou recentemente, de quase morrer, então a gente vai preferir estender, desrespeitar o acordo inicial, mas entendendo que existe uma importância muito, muito grande”…


Floriano - … só esqueceram do detalhe de me avisar desse prolongamento, mas tudo bem.


Cosme - É... Foi um período meio caótico, em termos da gente se organizar com você, com seus pais, com os combinados que iam ser construídos. Nem sei explicar muito bem o porquê, mas foi meio caótico. E com um sentimento, um gosto ruim na boca de pensar que você tava lá esperando.


Quando a gente foi te visitar na Mansão pra conversar sobre isso tudo, você me percebeu diferente e perguntou, “Cosme, tá tudo bem? Você tá com uma cara de bravo.” Eu tava preocupado com como você tava se sentindo, com a tua situação toda, e naquele momento também preocupado com o escudo que você colocou ali, de você pensar “pô, os caras vacilaram comigo, agora eu também vou tentar manejar a situação pra não ser atropelado por eles”. Não sei o quanto eles conseguiram perceber isso na hora, mas pra mim tava muito na cara. Eu não falei nada no dia porque eu não tirava a tua razão de estar daquele jeito. Por que eu iria confrontar um funcionamento defensivo num momento onde eu achava que ele era totalmente legítimo, saca?


Então eu acho que em respeito a isso eu fiquei muito em silêncio naquela visita, deixei eles conduzirem. Mas também me permiti falar pra você de canto, “Floriano, tô preocupado, acho que a gente vai precisar conversar um tanto quando você sair daqui.” Que foi o que aconteceu né, depois a gente teve uns papos importantes sobre você poder falar explicitamente pra todos os envolvidos como você se sentiu nessa situação prolongada. Pra alguns você conseguiu falar um pouco mais que outros. E eu sabia que ia ficar essa marca - fiquei triste e preocupado com isso, mas também pensei “bom, agora é fazer o que dá pra fazer pra que isso seja colocado na mesa, tirado a limpo. Pelo menos que não fique debaixo dos panos e fingindo que tá tudo bem.”


Mas me surpreendeu bastante, me deixou bem feliz e esperançoso, quando você por conta própria virou um dia pra mim e disse “quer saber, eu consigo entender que tava foda pra galera na hora, fizeram a avaliação e intervenção que acharam que foi necessária... Não é por isso que eu vou mandar todo mundo à merda.” Acho que naquele momento, eu percebi o quanto você parecia estar a fim de encontrar caminhos, diferente de outras vezes.


Eu já te falei muitas vezes que nos momentos que você fica mal de ter feito alguma merda de fato - que não foi o caso dessa vez - e vai parar em alguma internação, você sempre vira pra mim e fala bem assim: “ah não, dessa vez eu acho que não tô mais me enganando, agora é sincero, eu vou parar.” E eu sempre respondo “boto fé, que importante você poder ter noção da seriedade da situação, mas calma. Não precisamos entrar nesse discurso super rígido, fatalista, de achar que agora precisa dar certo, porque se agora não der, nunca mais dá.” Porque aí é o tropeço, a armadilha. É o discurso da recaída.


E dessa vez não, você não fez merda, você inclusive se sentiu super injustiçado, tinha todo motivo pra falar “foda-se vocês, eu vou voltar a fazer minhas merdas aqui.” Mas não, você virou e falou “ó, não achei nada legal, mas vamos lá, o que a gente pode fazer a partir de agora?” Isso foi… Puta, não tenho nem palavras, foi muito marcante. Então eu acho que esses momentos mais recentes eu tô encarando através desse filtro, pensando “acho que o Floriano tá vivenciando, tá sentindo, tá percebendo algumas coisas um pouquinho diferentes.”


Isso não garante sucesso, mas isso diz de outras possibilidades de vida que voltam a existir, a ser cogitáveis. E não só por insistência nossa, mas porque você falou “olha só, eu acho que tem mais pra fazer”. E isso é bem bom. E se rolar um tropeço de vez em quando…

Floriano - Vai rolar, óbvio que vai, seja com anorexia, bulimia, seja com droga… Eu sei que vai, mas não vai ser igual aos outros.


Cosme - Nunca é. E seguimos juntos.


Floriano - Seguimos.


Cosme - E eu sigo aqui te perturbando, ad infinitum.


Floriano - E eu sigo aqui te infernizando, te dando trabalho.

Diego Deneno Perez, nascido e residente em São Paulo, capital, dedicou-se, por meio da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ao estudo de Sociologia durante dois anos, ao mesmo tempo em que atuava como vendedor em livrarias. Em 2015, formou-se em Gastronomia e, enquanto residiu em Cabo Frio (RJ), exerceu a profissão. Em 2016, voltou para São Paulo, período em que dá início à sua formação em Psicologia, também pela PUC-SP. Atualmente, concentra-se na sua especialização em Psicanálise pelo Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP). Também integra o grupo Rainbow, destinado ao atendimento psicológico voltado à comunidade LGBTQIA+, ao mesmo tempo em que atua com questões de gênero, estudando tal fenômeno em sua complexidade histórica e na forma como se apresenta nas relações familiares, sociais e institucionais.


Philip é psicólogo, Acompanhante Terapêutico, poeta e músico.

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