Drogas Be-a-Ba: Cetamina
- Fabio Carezzato
- 1 de nov.
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Atualizado: há 1 dia

Por Fabio Carezzato
A cetamina (ou ketamina) foi sintetizada pela primeira vez em 1962 por Calvin Stevens, como parte de um esforço para desenvolver um anestésico dissociativo com menos efeitos colaterais do que a fenciclidina (PCP), seu precursor. O primeiro teste em humanos ocorreu em 1964, e em 1970 a cetamina foi aprovada pela FDA nos Estados Unidos como anestésico geral. Desde então, tornou-se amplamente utilizada em medicina e veterinária devido a sua segurança relativa.
A cetamina é utilizada clinicamente principalmente como anestésico dissociativo. Suas principais indicações são procedimentos cirúrgicos de curta duração em ambiente hospitalar e ambulatorial, indução anestésica em pacientes politraumatizados ou com risco de instabilidade cardiovascular, anestesia em contextos de campo ou guerra, sedação em pacientes pediátricos, uso em obstetrícia por não comprometer o fluxo sanguíneo uterino, e suporte em tratamentos de queimaduras e intervenções dolorosas em pacientes com dificuldade de acesso a outros agentes anestésicos. Por não causar depressão respiratória significativa como outros anestésico, é especialmente utilizada em ambientes de emergência e em pacientes com problemas pulmonares crônicos como asma.
A principal ação da cetamina ocorre como antagonista não competitivo dos receptores NMDA (N-metil-D-aspartato), que são um subtipo de receptores de glutamato envolvidos na transmissão excitatória do sistema nervoso central. Ao bloquear esses receptores, a cetamina reduz a excitabilidade neuronal e interrompe a transmissão sináptica glutamatérgica, causando o efeito dissociativo e anestésico característico.Além do antagonismo NMDA, a cetamina também interage com outros sistemas neurotransmissores, como receptores muscarínicos e GABAergicos (Morgan & Curran, 2012).
A cetamina pode ser administrada por diversas vias: intravenosa, intramuscular, oral, intranasal e retal. Após administração intravenosa, apresenta rápida distribuição com pico plasmático em minutos, e meia-vida terminal de aproximadamente 2 a 3 horas. É metabolizada principalmente no fígado via enzimas do citocromo P450.
A cetamina existe em duas formas: S-(+)-cetamina e R-(–)-cetamina. A S-cetamina apresenta maior afinidade pelo receptor NMDA e tem cerca de duas vezes mais potência anestésica e analgésica que a forma R. Essa diferença motivou o desenvolvimento da S-cetamina (escetamina), aprovada para uso intranasal no tratamento da depressão resistente.
O conjunto dessas ações farmacológicas explica a ampla gama de efeitos da cetamina, desde a anestesia dissociativa até os efeitos psicodélicos e antidepressivos. Nas últimas décadas, o uso dessa substância para outras patologias tem sido estudado. Testaram, também, para tratamento de síndrome de abstinência de opioide, sem resultados significativos (Jovaisa et al., 2006).
Posteriormente descobriu-se que sua capacidade de modular a neurotransmissão glutamatérgica também está relacionada à plasticidade sináptica e à rápida reversão de sintomas depressivos, aspectos que estão sendo intensamente pesquisados. Há evidências de que a cetamina, em doses subanestésicas (geralmente 0,5 mg/kg por via intravenosa), produz efeitos antidepressivos rápidos e significativos. Esses efeitos costumam ocorrer dentro de horas após a administração e podem durar dias a semanas. O mecanismo exato ainda está sendo investigado, mas acredita-se que a cetamina atua como antagonista do receptor NMDA, modulando o glutamato e promovendo a plasticidade sináptica por meio da ativação do receptor AMPA e aumento da BDNF. Formas intranasais como o escetamina foram aprovadas para uso clínico em diversos países, incluindo os EUA, como adjuvante no tratamento da depressão resistente (Zarate et al., 2006; Daly et al., 2018).
USO RECREATIVO
O uso recreativo da cetamina tem sido documentado desde os anos 1980, principalmente em contextos de festas de música eletrônica. Em 1999, foi considerada ilegal nos Estados Unidos para uso não médico, sendo incluída na lista 3 junto com anabolizantes e opioides fracos. De acordo com o National Survey on Drug Use and Health (NSDUH) de 2022, realizado pela SAMHSA, cerca de 0,7% dos adultos americanos relataram ter usado cetamina em algum momento da vida, e 0,2% relataram uso no último ano. A prevalência é maior entre jovens adultos de 18 a 25 anos, com estimativas chegando a 0,6% de uso no último ano nesse grupo etário (SAMHSA, 2023). Estudos mostram que o uso recreativo é mais prevalente em países como Reino Unido onde um estudo observou que 3,2% dos jovens entre 16 e 24 anos fez uso no período entre 2019 e 2020 (Beynon, 2009).
Não foram encontrados dados epidemiológicos brasileiros que distinguissem a cetamina especificamente como droga de abuso.
A cetamina consumida de forma recreativa pode ser obtida ilegalmente em forma líquida ou já em pó. É conhecida como Key, Keta, Keyla ou Special K. O líquido é geralmente colocado em um recipiente dentro do micro-ondas, onde pode ser evaporado e quebrado, resultando em um pó branco ou cristalino. A via de uso é geralmente intranasal, de forma semelhante a cocaína. Alternativamente, algumas pessoas aplicam a forma líquida por via intramuscular ou intravenosa. Em geral essa via é preferida por profissionais de saúde e há relatos de pacientes que tiveram a cetamina prescrita para depressão desenvolverem problemas associados a essa substância posteriormente.
Usuários relatam efeitos como dissociação, sensação de flutuação, distorção do tempo e espaço, além de euforia. Doses mais altas podem induzir experiências conhecidas como "K-hole", um estado intenso de dissociação com perda da sensação corporal e experiências de quase morte ou transcendência.
O uso recreativo geralmente ocorre em ambientes de festa, clubes noturnos, festivais e em contextos privados. Usuários relatam efeitos como dissociação, sensação de flutuação, distorção do tempo e espaço, além de euforia. Doses mais altas podem induzir experiências conhecidas como "K-hole", um estado intenso de dissociação com perda da sensação corporal e experiências de quase morte ou transcendência.
O uso inalado geralmente é feito com doses entre 15 e 200 mg, em carreiras mais finas que as geralmente utilizadas para cocaína. Como as duas substâncias são semelhantes, o cuidado para não as confundir deve ser redobrado, pois a dose de K é consideravelmente menor e a troca pode levar a situações de risco. Muitas vezes, há uso concomitante de cetamina e cocaína, por elas terem efeitos opostos e se “equilibrarem”, maqueando o efeito uma da outra, aumentando a dose consumida e, consequentemente, os riscos. Essa combinação é popularmente chamada de Calvin Klein, referencia a inicial das drogas.
Os efeitos se distribuem da seguinte maneira: nos primeiros 0 a 5 minutos ocorre leve anestesia local e início dos efeitos; entre 5 e 15 minutos há sensação de flutuação, alterações perceptivas e euforia ou ansiedade, sensação de maior extroversão; entre 15 e 45 minutos verifica-se o pico da experiência dissociativa, com perda parcial da noção corporal e espaço-temporal. Isso pode incluir a perda da capacidade de se mexer e falar. Após 45 ocorre um declínio gradual dos efeitos e em geral depois de 90 minutos, só é possível notar sedação residual e desorientação leve.
Já no uso injetável intramuscular com doses de 25 a 100 mg, os efeitos se iniciam entre 0 e 2 minutos com rápida dissociação e anestesia; entre 2 e 10 minutos acontece o pico da dissociação; entre 10 e 30 minutos há manutenção de efeitos com forte dissociação e alucinações; de 30 a 60 minutos ocorre o declínio gradual com possível sedação profunda; e após 60 minutos permanecem efeitos residuais como confusão ou fadiga. Há uso oral, mas esse é raro pois necessita de doses maiores e o efeito é mais sutil e prolongado.
Nessas modalidades de uso não há registro de morte por overdose de cetamina, sendo os principais riscos da intoxicação as quedas, acidentes e crises de saúde mental, como ansiedade e badtrip. É comum relatos de experiências ruins com a cetamina quando se chega no “k-hole”.
As principais estratégias de redução de danos incluem evitar o uso frequente (limitando-o a no máximo uma vez por semana), não misturar com outros depressores do sistema nervoso central como álcool e benzodiazepínicos, utilizar a substância em ambientes seguros e atentar para o risco de queda e acidentes por conta da alteração da coordenação motora.
É importante manter hidratação adequada para proteção do trato urinário, evitar a via intramuscular sem conhecimento técnico e nunca compartilhar seringas e agulhas. A via venosa não deve ser utilizada por ser de grande risco por conta dos efeitos anestésicos da cetamina.
Também vale monitorar sinais de urgência urinária
Se possível, testar a pureza da substância com reagentes apropriados ou em locais de testagem. No Brasil, a compra de reagentes pode ser feita com a empresa Reaja (Instagram reaja.br)
No uso inalado, deve se utilizar canudo próprio e evitar notas de dinheiro, para evitar infecções. Intercalar narinas e lavar sempre com água e soro fisiológico diminui machucados no septo nasal.
EFEITOS CRÔNICOS
O cuidado maior com o trato urinário se deve porque o uso prolongado ou frequente da cetamina pode levar a cistite, ou seja, a uma inflamação da bexiga, que pode ter como sintomas urgência para urinar, incontinência e dor pélvica. O exame de urina nesse caso apresenta aumento de leucócitos e células sanguíneas, mas não há presença de bactérias. (Beerten et al., 2023).
Acredita-se que os metabólitos da cetamina sejam excretados na urina e causem toxicidade direta, levando à inflamação crônica da bexiga. O processo envolve necrose epitelial, infiltração de células inflamatórias e, em casos severos, fibrose do tecido vesical e redução da capacidade da bexiga.
Acredita-se que os metabólitos da cetamina sejam excretados na urina e causem toxicidade direta, levando à inflamação crônica da bexiga. O processo envolve necrose epitelial, infiltração de células inflamatórias e, em casos severos, fibrose do tecido vesical e redução da capacidade da bexiga. Estudos demonstram também alterações nos receptores NMDA da bexiga e dano aos nervos periféricos locais, o que agrava os sintomas urinários. Casos avançados são raros, mas podem requerer intervenção cirúrgica, como ampliação vesical ou derivação urinária, se não houver remissão após cessação do uso da substância (Chu et al., 2008). Outro problema clínico que pode se apresentar é a colíca biliar, mesmo sem a presença de cálculo.
Como o efeito de uma dose pequena de cetamina é pouco perceptível, algumas pessoas acabam por consumir ao longo do dia em sua rotina. Porém esse uso pode levar a crescentes problemas de atenção e de memória, principalmente com o desenvolvimento de tolerância e uso de doses maiores.
O uso frequente pode levar ao desenvolvimento de sintomas psicóticos, como delírios, paranoia, alucinações auditivas e desorganização do pensamento. Há sintomas de abstinência moderados, manifestando-se principalmente como fissura e crises de ansiedade. É comum o relato de acordar com crise de ansiedade e usar a cetamina para alívio, o que pode ser identificado como uma síndrome de abstinência.
A cetamina é uma droga com potencial moderado de causar um transtorno por uso de substâncias, com casos inclusive de pessoas que iniciaram tratamento prescrito de cetamina para depressão e posteriormente desenvolveram dependência. Antes da prescrição de cetamina é indicado avaliar a vulnerabilidade do paciente para desenvolver adicção, o que inclui triar para transtornos de personalidade e histórico de problemas com outras substâncias, jogos e compulsões. Dados de Hong Kong apontam que aproximadamente 30% dos usuários frequentes desenvolvem sintomas compatíveis com transtorno por uso, com quadros de dependência psicológica grave, isolamento social e dano vesical severo (Lai et al., 2016).
TRATAMENTO DO TRANSTORNO PARA USO DE CETAMINA
Como todo tratamento de pessoas com problemas relacionados ao uso de alguma substância, a abordagem deve ser multidisciplinar focando vários aspectos da vida e não somente o consumo da substância.
Farmacologicamente, estudos experimentais têm sugerido que a lamotrigina, um estabilizador do humor que atua também atua nos receptores NMDA, assim como a cetamina, pode ajudar na redução do uso compulsivo dessa substância. Pequenos ensaios clínicos e relatos de caso mostraram redução no craving e na frequência de uso com doses progressivas de lamotrigina (50-200 mg/dia). No entanto, trata-se ainda de uma abordagem experimental, e o uso da lamotrigina deve sempre ser monitorado por médico especializado, dada a possibilidade de reações adversas graves como a síndrome de Stevens-Johnson (Morgan et al., 2012). Também há evidências que sugerem que os benzodiazepínicos cortam o efeito da cetamina, além de poderem diminuir a ansiedade associada aos sintomas de abstinência (Veraart et al., 2021).
REFERÊNCIAS
Beerten, S. G., Matheï, C., & Aertgeerts, B. (2023). Ketamine misuse: an update for primary care. The British journal of general practice: the journal of the Royal College of General Practitioners, 73(727), 87–89. https://doi.org/10.3399/bjgp23X731997
Beynon CM. Drug use and ageing: older people do take drugs! Age Ageing. 2009;38(1):8–10. doi: 10.1093/ageing/afn251.
Chu, P. S. K., Kwok, S. C., Lam, K. M., Chu, T. Y., Chan, S. W., Man, C. W., ... & Yiu, M. K. (2008). '“Street ketamine”-associated bladder dysfunction: a report of ten cases.' Hong Kong Medical Journal, 13(4), 311-313.
Daly, E. J., Singh, J. B., Fedgchin, M., Cooper, K., Lim, P., Shelton, R. C., ... & Drevets, W. C. (2018). 'Efficacy and safety of intranasal esketamine adjunctive to oral antidepressant therapy in treatment-resistant depression: a randomized clinical trial.' JAMA psychiatry, 75(2), 139-148.
Jovaisa, T., Laurinenas, G., Vosylius, S., Sipylaite, J., Badaras, R., & Ivaskevicius, J. (2006). Effects of ketamine on precipitated opiate withdrawal. Medicina (Kaunas, Lithuania), 42(8), 625–634.
Lai, J., Chu, C. M., Hope, W., & Keene, J. (2016). 'Ketamine-associated urinary tract dysfunction: prevalence, pathology and treatment strategies.' Therapeutic Advances in Urology, 8(5), 287–296.
Morgan, C. J., Curran, H. V., & Independent Scientific Committee on Drugs (2012). Ketamine use: a review. Addiction (Abingdon, England), 107(1), 27–38. https://doi.org/10.1111/j.1360-0443.2011.03576.x
Morgan, C. J. A., Muetzelfeldt, L., & Curran, H. V. (2012). 'Consequences of chronic ketamine self-administration upon neurocognitive function and psychological wellbeing: a 1-year longitudinal study.' Addiction, 105(1), 121-133.
SAMHSA (2023). '2022 National Survey on Drug Use and Health (NSDUH)'. Substance Abuse and Mental Health Services Administration. \[[https://www.samhsa.gov/data/](https://www.samhsa.gov/data/)]
Veraart, J. K. E., Smith-Apeldoorn, S. Y., Bakker, I. M., Visser, B. A. E., Kamphuis, J., Schoevers, R. A., & Touw, D. J. (2021). Pharmacodynamic interactions between ketamine and psychiatric medications used in the treatment of depression: A systematic review. International Journal of Neuropsychopharmacology, 24(10), 808–831. https://doi.org/10.1093/ijnp/pyab039
Zarate, C. A., Singh, J. B., Carlson, P. J., Brutsche, N. E., Ameli, R., Luckenbaugh, D. A., ... & Manji, H. K. (2006). 'A randomized trial of an N-methyl-D-aspartate antagonist in treatment-resistant major depression.' Archives of general psychiatry, 63(8), 856-864.
Fabio Carezzato é médico e psiquiatra pela USP, atual coordenador da ABRAMD Clínica São Paulo, parte do coletivo clínico Drogas: Clínica e Crítica.







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