On the Road – Jack Kerouac

Eliana Oliveira

Lançado em 1957, o livro On the Road, de Jack Kerouac, retrata uma filosofia e um modo de vida original. Mais do que um romance, o livro é a expressão de um movimento literário, artístico, social e cultural, tendo se tornando a obra de referência de uma geração – a Geração Beat. O termo “Beat”, utilizado pela primeira vez pelo próprio Kerouac para descrever seu círculo de amigos, é associado ao jazz, cujo ritmo é referência para o movimento Beat, e é também uma maneira de dizer “beatitude” e de exprimir a devoção pela vida.

De maneira quase autobiográfica, Kerouac conta a história da amizade entre o personagem Sal Paradise, e de seu companheiro de estrada, Dean Moriarty. Sal é o narrador da história, um jovem escritor que decide viajar através dos Estados Unidos juntamente com Dean. Apesar de possuírem vidas muito diferentes, os dois personagens selam um forte companheirismo – Sal é universitário, mora com uma tia, frequenta seus familiares, planeja casar-se e ter uma vida convencional. Dean conheceu pouco sua mãe e passou uma parte de sua vida sobrevivendo pelas ruas das cidades junto com o pai. Sal é intelectual, um pouco melancólico, Dean possui um apetite voraz, uma ânsia de viver e ignora as convenções sociais.

Nos rumos da estrada

O livro se divide em cinco partes que correspondem à momentos diferentes da vida de Sal nas estradas, uma espécie de santuário em sua vida, e na noite underground americana. Ainda que a narrativa seja sempre feita na primeira pessoa, ela não procura aprofundar detalhes dos pensamentos e sentimentos de Sal, mas se interessa principalmente pelos personagens que ele encontra, pelas situações inusitadas, pelos rumos da estrada. Estes rumos são, aliás, uma constante na narrativa de On the Road: a imensidão da América, o movimento incessante de seus cidadãos e de seus imigrantes procurando uma direção e um lugar.

Para Sal esta direção é, inicialmente, o Oeste – “ir para o Oeste para ver o país”. Projeto alimentado por sua imaginação, o Oeste significa a busca de um passado glorioso, de uma identidade, de um espaço livre, de uma energia não domesticada. A realidade com a qual Sal se depara é, no entanto, diferente: os cowboys encontrados ao longo do caminho são burgueses e patéticos, muito longe da representação que ele tem dos pioneiros americanos. Os encontros negativos com as pessoas são apenas amenizados pela beleza dos cenários da América: as planícies são majestosas e guardam o poder de seus ventos e a beleza de suas plantações.

Ainda que os pontos cardeais sejam repetidamente citados ao longo da história, não são apresentadas delimitações entre eles. Esta ausência de fronteiras possibilita ao leitor sentir toda a grandeza da América e de seus ideais de liberdade. Ponto geográfico oposto ao Oeste, o Leste significa para Sal o “estar em casa”, o repouso, a vida na universidade, o trabalho solitário de escritor, o encontro com a casa e a tia, sempre maternal e acolhedora. Do início ao fim do livro percebe-se que Sal é continuamente impelido pela “louca estrada”, pelos rumos desconhecidos, mas seu ponto de ancoragem nunca deixa de ser o Leste.

O Sul, último ponto cardinal explorado por Sal e seus amigos, surge como a busca de um lugar idílico e ganha contornos mágicos na viagem para o México. A estrada torna-se infinita e leva ao paraíso. O sabor das paisagens americanas é indescritível, a transposição da fronteira mexicana, um ato de desbravamento e gozo. Ir para o Sul significa deixar tudo para trás e inaugurar uma fase nova e desconhecida da vida. Tudo o que foi vivido até aquele momento pode ser esquecido. Penetrar em terras mexicanas leva os personagens a deixarem de lado os dramas e volúpias de suas vidas e terem uma experiência autêntica da realidade.

Atrás de nós estava a América e tudo o que Dean e eu tínhamos aprendido da vida, e da vida nas estradas. Nós tínhamos finalmente encontrado a terra mágica no fim da estrada e nunca havíamos imaginado o poder dessa magia.

(Kerouac, 1997, p. 323)

Eu sabia que, em algum lugar, encontraria a pérola rara”

A primeira viagem de Sal para “dar a volta ao mundo” acontece sem a companhia de Dean Moriarty. O espírito da América, os encontros, as amizades, vão surgindo ao longo da história, assim como os ensejos cada vez mais urgentes e prementes de se sentir livre. Com uma narrativa que evoca continuamente o plano sensorial dos sentidos, a América surge, ao longo de toda a trama, de forma sincrônica sob o plano social, cultural e ético. Os fazendeiros, ricos e violentos, aparecem como exploradores e insensíveis à dureza da vida daqueles que cruzam seus territórios. Ainda que em alguns momentos da história os donos das fazendas sejam valorizados por lembrar a saga dos pioneiros, na maior parte do tempo, suas vidas são vistas como sem graça e alegria, e suas roupas burguesas são descritas como ridículas. O aspecto negativo do conformismo de seus espíritos é apenas ultrapassado pelo conformismo radical dos trabalhadores agrícolas do Sul, os “Okies” – homens brancos, racistas e xenófobos, que podem também se mostrar fechados e extremamente violentos. Tal violência só encontra equivalência nas ações da polícia americana. Sal descreve a polícia sem nenhuma concessão ou compaixão, e se serve de um humor pesado e de uma sátira aguçada para ridicularizá-los.

O tom mordaz utilizado para descrever certos grupos sociais remete a uma característica forte de On the Road: a afetividade, presente ao longo de toda a narrativa. Mesmo nos momentos de reflexão, a modalização intensa das frases, a presença constante de emoções, confere ao romance tons de sensibilidade. Os afetos, a ausência de neutralidade, podem ser especialmente percebidos quando Sal descreve seu encontro com os negros pobres americanos e os imigrantes mexicanos. Os negros suscitam em Sal sentimentos de admiração e de fascinação, pois a pobreza lhes confere força e autenticidade. Este mesmo olhar gentil e acolhedor pode ser percebido no encontro de Sal com Terry e sua família mexicana. A pobreza sórdida, mas também o acolhimento e a generosidade das refeições oferecidas, as canções alegres, a espontaneidade, a gentileza, os laços familiares, deixam marcas indeléveis em Sal.

Havia um casal de negros idosos conosco nos campos. Eles colhiam o algodão com a mesma paciência de seus ancestrais antes da Guerra de Secessão; eles avançavam ao longo da fila, curvados a azulados sob o sol, e seus sacos iam ficando volumosos .

(Kerouac, 1997, p. 189)

Mas, é no encontro com os índios mexicanos, que Sal mostra sua imagem mais valorizada e idealizada e, ao mesmo tempo, sua crítica mais contundente da América civilizada, com seus estereótipos e preconceitos raciais. Telúricos, os índios mexicanos possuem um laço profundo com a terra, com as origens de todos os povos. “Quando chegar o grande fim, o grande apocalipse no mundo, apenas o olhar deles – e o olhar de todos os povos originários, conseguirá sobreviver e dar continuidade a vida do homem sobre a terra” (Kerouac, 1997, p. 281).

A noite, o jazz, a loucura

As demais viagens são realizadas por Sal em companhia de seus amigos. As narrativas delas nos mergulham no coração do espírito Beat. O personagem mágico de Dean Moriarty entra em cena ao lado de Sal na noite nova iorquina e nas estradas do país. Temos aqui a busca pela liberdade e a escolha de uma vida sem amarras. A existência se torna em parte errante, sem rumos e é aberta ao encontro com desconhecidos. A precariedade material e a falta de dinheiro não têm importância, as normas sociais têm menos peso. À falta de dinheiro se contrapõe à a generosidade do donativo, o roubo faz o deus dólar cair de seu pedestal. O que importa é viver o presente, viver o dia-adia. À noite, as festas e o jazz trazem amigos, muitos amigos. Nas noites nova-iorquinas Sal se descobre como uma estrela cadente, quebrando a cara e de novo quebrando a cara. Ele se percebe como não tendo nada a oferecer ao mundo, a não ser sua própria confusão. Nas noites no México, o sexo, as bebidas e as drogas – a marijuana – fazem parte dos momentos mais intensos, prazerosos e agradáveis de suas vidas.

Em meio a descrição de situações anti-conformistas e anti-puritanas, o leitor se depara com uma outra figura importante de On the Road – o mendigo. Pobre e vagabundo, ele é percebido como um mito de liberdade, cuja vida miserável e marginal é também original e poética, sendo a antítese dos fazendeiros burgueses, inseparáveis de seus ranchos e de seus bens materiais, triunfando na sociedade com o seu gado, seus trabalhadores agrícolas, seus milhões guardados nos bancos. “Se eu morasse nesses lugares, eu acabaria me tornando o idiota do lugarejo”, diz Moriarty, manifestando o seu desprezo pelo apego à terra e às riquezas.

Mas, será possível viver tamanha liberdade sem que a morte seja evocada e sem que a loucura esteja à espreita da alma? Sal e Moriarty se lançam nas estradas em uma busca existencial, mística e poética, mas permanecem diferentes. Enquanto Moriarty encarna o espírito anti-conformista, espontâneo e despojado das imposições da sociedade americana, Sal sonha com a felicidade. Melancólico e desencantado com o mundo, ele não abandona jamais completamente suas concepções morais e permanece ligado a suas crenças cristãs sobre a transcendência da morte. Ao contrário de Moriarty que valoriza o momento presente e encara a morte como o fim da existência, Sal considera que a morte é o verdadeiro ponto de encontro da vida. Ele viaja sem rumo pelas estradas, mas retorna sempre a casa de sua família.

A morte nos alcançará antes do paraíso. A única coisa que nós lamentamos em nossa existência e que nos faz suspirar, gemer e sofrer … é a lembrança de alguma felicidade perdida, que com certeza sentimos junto ao seio materno, e que se reproduzirá (mas que nós recusamos a admitir) na morte.

(Kerouac, 1997, p. 346)

É no personagem de Dean que o leitor encontra alguns dos pontos mais significativos do livro. Moriarty não pensa no passado e não se preocupa com o futuro. Como tantos outros personagens encontrados ao longo da estrada, ele faz uso de seu tempo para realizar – imediatamente – seus desejos pessoais. Tendo vivido nas ruas com o pai, e passado uma parte de sua vida nas casas para menores infratores e nas prisões, Dean expressa abertamente seu ódio pelo sistema capitalista. Espírito absolutamente independente, dono de uma personalidade original e com uma fome insaciável de vida, o personagem parece penetrar progressivamente na loucura. Dominado por um idealismo fatal e pela irresponsabilidade de seus atos e decisões, Dean Moriarty encarna entre os amigos o “mendigo celeste” e a beatitude dos despossuídos, em oposição ao espírito da sociedade americana, cada vez mais prisioneira do tempo – do ‘relógio’, do materialismo e do consumismo. Dean reconhece apenas o momento presente.

Beat

Kerouac oferece ao leitor, através da descrição das estradas, uma percepção de espaços infinitos, através da descrição da velocidade dos carros, uma percepção da morte. O movimento Beat traduz, em sua essência, o não conformismo e uma busca incessante para liberar o espírito. Ele exprime a sensibilidade de uma geração lançada no desconhecido. Do ponto de vista histórico, a geração Beat viveu em um país onde a vida era difícil – a grande depressão que continuou até a Segunda Guerra Mundial e, mais tarde, a tensão social e política do macarthismo. Os anos 50 traduzem o mundo do pós-guerra e o entendimento que a humanidade não se encontrava mais em presença de guerras apenas terríveis e mortíferas, mas em presença de guerras capazes de destruir o planeta e a espécie humana, guerras onde não há sobreviventes. Os jovens da geração Beat têm essa consciência ou, como afirma Margaret Mead, é preferível dizer que os jovens dessa geração “sentem” as coisas, ao invés de dizer que eles “sabem” (Mead, 1971). Dean Moriarty e Sal Paradise estão em uma busca hedonista, cujos contornos são pouco precisos, procuram algo desconhecido que, certamente, não pode ser encontrado em suas famílias, e tão pouco entre todos os jovens da mesma idade. Eles realizam uma busca espiritual, sentem a necessidade de uma outra ordem mundial e tentam concretizá-la.

Os loucos, os marginais, os rebeldes, os anti-conformistas, os dissidentes … todos aqueles que veem as coisas de modo diferente, que não respeitam as regras (…) Eles inventam, eles imaginam, eles exploram. Eles criam, eles inspiram. Eles fazem a humanidade avançar. Aqui, onde alguns veem apenas loucura, nós vemos a genialidade. Pois, apenas aqueles que são loucos o bastante para pensar que podem mudar o mundo, conseguem mudá-lo.

(Kerouac, 1997, p. 245)

Segundo Mead (1971), no pós-guerra houve um “divórcio” entre as gerações de tal modo que elas não conseguem mais se comunicar. Mais do que isso, apenas os jovens são capazes de entender o mundo. A evolução da sociedade e da cultura têm um ritmo tão acelerado que a experiência adquirida pela idade, não apenas é insuficiente para entendê-lo, como torna sua compreensão muitas vezes impossível. No mundo pós-guerra, sob a influência de novas tecnologias, a comunicação, deixa de ser linear, criando o sentimento de pertencimento a uma comunidade mundial. Tal pertencimento faz com que pareçam odiosas e anacrônicas as distinções entre raças e castas. A supressão do inimigo equivale a morte do próprio vizinho; a proteção de seus próprios filhos condena que bombas sejam jogadas e crianças sejam mortas em países estrangeiros. “Nesta nova cultura são os jovens que, livres para agir, conduzem os mais velhos na direção de caminhos desconhecidos” (Mead, 1971, p.54). Com a geração Beat, pela primeira vez, conhecimentos, atitudes, percepções e valores morais não são mais transmitidos entre as gerações, mas passam a ser adquiridos dentro do próprio grupo de jovens. A espiritualidade e a visão mística dos Beats acontecem fora das fronteiras da tradição religiosa.

A contracultura

Os rumos desconhecidos, entrevistos pela Geração Beat, levam ao nascimento de um movimento de contracultura. Roszak (1972) preconiza que a palavra “contra” deve ser entendida em seu sentido mais forte – uma operação de dissidência e de destruição. Os hippies – representantes deste movimento – reivindicam a não violência e o direito de viver livremente a sexualidade e o uso de drogas. Com os cabelos longos, as roupas indianas e a nudez dos corpos, eles se opõem a aparência dos corpos da moda nos anos 60. A arte psicodélica criada pelos hippies reproduz as percepções causadas pelas drogas alucinógenas e busca criar ambientes estranhos, como um modo de reproduzir a “Trip”. Militantes radicais – ao contrário dos Beats que não reivindicavam a mudança do mundo – os hippies são politicamente engajados. Manifestam contra a guerra do Vietnam e convidam à desobediência civil. Adotam como slogan político “Faça amor, não faça a guerra” e, como se opõem às normas e aos valores da sociedade ocidental, vivem em comunidades rurais ou urbanas, contestam e recusam a ordem social estabelecida, o consumismo, o sistema capitalista, e toda forma de alienação.

Os membros da geração Beat e os hippies têm em comum o anticonformismo, a ausência de tabus, o espírito contestatário, a liberdade como ideal de vida. Para as duas gerações as viagens possibilitam encontrar o sentido da vida e da morte, do amor e da amizade. Ambas são minimalistas e fazem uso de drogas como um modo de viver a essência da liberação espiritual e se reconectar à valores profundos. Como nos lembra Olievenstein (1978) as drogas são pela primeira vez reivindicadas em seu uso coletivo e de massa. “De fato, desde os anos 1960, a característica de massa de tomada de produtos diversos, sua focalização em uma camada social precisa – os jovens – sua internacionalização rápida, tornam caducas as tomadas de posição jurídicas e psicopatológicas … ” (Olievenstein,1978, p.12). Nesta “revolução das drogas” os adultos são as últimas pessoas a entenderem o que está acontecendo.Com as drogas, o espírito se eleva e se abre à criatividade, ao delírio, à exploração do desconhecido que habita em si mesmo, à revelação de que o ser humano é dono de si mesmo. Assumindo esta postura, os Beat e os hippies mudam definitivamente a percepção do consumo de drogas na cultura ocidental.

Apesar da semelhança entre as duas gerações, elas se distinguem pelo pertencimento social de seus membros. Os Beats são de um meio popular e mais individualistas, intelectuais e aventureiros que os hippies. São também mais ligados ao mundo underground americano. O movimento hippie, com suas práticas minimalistas, sua procura de retorno à natureza, seu gosto por uma vida natural, contribuiu para a emergência posterior do movimento ecologista.


Referências

Kerouac, J. (1977). Sur la route. Paris: Ed. Gallimard.

Mead. M. (1972) . Le fosse des générations. Paris: Denoël-Gonthier

Olievenstein, C. (1978). La drogue. Paris: Idées-Gallimard.

Roszak, t. (1972). A contracultura. Rio de Janeiro: Ed. Vozes.

Sur la route: embleme de l’influente Beat generation. https://empreinte.asso.univ-poitiers.fr/la-beat-generation-influence-du-mouvement-hippie/


Eliana Oliveira é psicanalista e psicóloga. Tradutora. Doutora em psicologia pela Universidade de Nantes, mestre em psicologia social pela Universidade Paris V e mestre em psicanálise pela Universidade Paris VIII. Formada em psicologia na Universidade Federal Fluminense e em ciências sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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