ESPERANDO K: Cenas de um acompanhamento terapêutico

Retirado de Freepik
Luciana Mannrich
Rafael Muscalu Raicher

Tentar de novo 

Falhar de novo

Falhar melhor

Samuel Beckett

Recentemente, o Teatro Oficina nos ofereceu uma nova montagem de Esperando Godot, de Samuel Beckett (Beckett, 2017). Os personagens, dois vagabundos em um cenário em ruínas, em um mundo em pedaços, dialogam sobre a espera. Estão à espera de Godot que não sabem o que(m) é, mas sabem que é preciso esperar.

A tarefa que nos foi dada pelos editores desta revista é escrever sobre o acompanhamento terapêutico na clínica das adicções. Nós, autores desse texto, não tão vagabundos assim, propomos um diálogo sobre a espera em um cenário em ruínas. 

Antes, cabe alguma introdução para que se entenda de quem falamos e de onde o fazemos. K. é uma mulher de 39 anos que, há cerca de 17 anos, vive em desmoronamento. Antes, se formou em economia, trabalhou em grandes empresas, comprou apartamento com o namorado da adolescência com quem se casou. Alguns meses depois do casamento uma depressão a abate, dois anos depois o casamento termina e, até hoje, o ex-marido a sustenta, numa impossibilidade intrigante de se desvincular dela e dessa história.

Filha de um pai alcoolista já falecido, de quem se lembra sempre bêbado e no bar, e de uma mãe religiosa, K. recomeçou a vida depois do casamento em um pequeno apartamento, onde passou a viver uma outra vida: faculdade de letras, tradução de textos, alcoolismo. Alguns anos depois, uma equipe composta por um acompanhante terapêutico (at¹), uma psicanalista e um psiquiatra foi formada para tentar dar algum contorno à sua vida que se esfarelava. Ela consegue parar de beber e se organiza minimamente, ainda que os episódios de depressão se mantenham e coloquem sua vida entre parênteses.

Começa o consumo de cocaína, ela se torna ainda mais errática e a equipe desmorona: o AT que estava com ela há 5 anos não suporta mais sustentar o trabalho e convoca Luciana a substituí-lo, algo que ainda não chegou a fazer suficientemente. Também a psicanalista e o psiquiatra pedem substitutos e nasce uma nova equipe, exposta a intempéries desde o primeiro momento e sempre a ponto de sucumbir, como K.

“Visto que o desafio é conseguir esperar em meio a ruínas, nos perguntamos que técnicas poderiam nos ajudar a sobreviver. (…) A tarefa que se impõe ao analista é suportar e sobreviver, ou seja, manter-se em reserva, lembrando sempre que a precariedade é essencial a quem se aventura a estar ao lado de alguém que tateia o mundo em busca de um lugar para existir.”

Visto que o desafio é conseguir esperar em meio a ruínas, nos perguntamos que técnicas poderiam nos ajudar a sobreviver. Luís Claudio Figueiredo (Figueiredo & Coelho Junior, 2000) introduz o conceito de presença reservada e com ele nos ajuda a pensar nessa presença que precisa conter em si uma ausência convidativa. A tarefa que se impõe ao analista é suportar e sobreviver, ou seja, manter-se em reserva, lembrando sempre que a precariedade é essencial a quem se aventura a estar ao lado de alguém que tateia o mundo em busca de um lugar para existir.

O que se segue é um diálogo entre o at e a psicanalista. Nele procuramos dar algum contorno a experiência radical de estar com K. a céu aberto.

Luciana – Acompanhante Terapêutica

K. me recebe de roupão. Seu namorado está na cozinha. O cheiro da casa é uma mistura de cocô de gato com comida velha. O banheiro fede, as panelas se acumulam no fogão. Ela pega um pedaço de bolo e então pergunta para ele: será que ainda está bom?

Ela parece em frangalhos. Pouco fala e o que fala atesta a minha impressão. Diz que dorme muito, que se a alternativa é a sarjeta, prefere morrer. Diz que seu ex-marido depositou somente mil reais esse mês, que no final de semana passado chorou o tempo todo porque não tinha dinheiro para comprar comida. Pediu afastamento do trabalho e precisava mandar e-mail para os professores pedindo para fazer os trabalhos em casa, pois está com excesso de faltas na faculdade.

Vejo um gato bonito e digo que seu gato melhorou. Na segunda vez ela me corrige, dizendo que este é outro gato. Que vontade de algum milagre! Que vontade de que algo naquela casa floresça, melhore, verdeje! Conto para K. sobre Niki de Saint-Phalle – fazer colo para ter onde se aninhar. Digo que tenho vontade de dar colo a ela. Nada. NADA faz efeito, nada entra nesse amontoado de fracasso e desistência. Desisto porque não quero ser também a pessoa que vai invadir o seu quarto, abrir a janela e dizer que precisa reagir.

Tento encontrar em mim a memória de meus próprios desmoronamentos. Eu também estou por um fio K., também temo a sarjeta, sei o que é não ver saída. Vou para os meus fracassos para encontrá-la nesse lugar de vergonha e impossibilidade. Não sei se consigo, mas faz-se um silêncio entre nós. Em algum momento peço a ela que fale comigo e, de dentro do novo silêncio, me pergunto se disse isso mesmo. Eu pedi mesmo a ela que falasse comigo? Ela olha para baixo, brinca com a faixa do roupão. Será mesmo que o que sobrou para você é a sarjeta?

“O que seria cuidar de K. agora? Penso em La Borde, na história da equipe que sustentou o desejo da mulher de parar de comer. Como sustentar isso que K. quer agora: só dormir? Imagino uma casa bem pequena, depois imagino um quarto e depois uma bolha toda branca e silenciosa dentro da qual ela pudesse só dormir, protegida de todo o resto. Desejo um útero para ela?”

O que seria cuidar de K. agora? Penso em La Borde, na história da equipe que sustentou o desejo da mulher de parar de comer. Como sustentar isso que K. quer agora: só dormir? Imagino uma casa bem pequena, depois imagino um quarto e depois uma bolha toda branca e silenciosa dentro da qual ela pudesse só dormir, protegida de todo o resto. Desejo um útero para ela? Tive vontade de colocá-la em meu colo, aninhá-la em meu corpo. Será que ela conseguiria chorar? Será que algo de afeto ou dor apareceria? Algum acidente em seu relevo? Mas talvez essa depressão seja o acidente no relevo, ela produz esse vale no qual pode se esconder.

Atender K. é como estar na beira de um precipício ou em um caminho tortuoso onde a neblina acabou de baixar. Sei mais ou menos onde estou, mas não sei qual a próxima curva e, portanto, há sempre o risco de cair. De perder tudo. Perder o que exatamente? Não faço ideia do que ela está vivendo e não sei se acredito no que me diz, ainda que pressinta o quanto isso é de pouca importância no momento. Talvez o mais sério seja justamente não conseguir entrar na cena. É isso: perder meu lugar junto a ela. A todo momento.

Rafael – Psicanalista

A dualidade encontro – desencontro nos traz o primeiro ponto a pensar. Já é um clichê referir-se a tarefa do at como a clínica “do encontro”. Mas queria propor pensarmos na clínica do desencontro, que nos aparece com a mesma força do encontro. O at é aquele que se lança aos sujeitos em grandes dificuldades na vida cotidiana, na vida compartilhada. Não podemos esperar que ao chegar ali, num cenário em ruínas como tão vivamente descrito por Luciana, as coisas fluam na direção de uma “evolução” onde os sintomas vão perdendo suas forças através do encontro entre um sujeito, que se coloca à disposição (o at), e outro sujeito que está, a princípio, alienado de alguma forma do encontro humano (o acompanhado). Essa é a proposta base de um acompanhamento terapêutico e, em minha experiência clínica, pude participar e testemunhar muitas vezes esses ocorridos. Mas, mesmo nos casos que poderíamos chamar de “sucesso”, há doses enormes de desencontros, ruínas, esperas infindáveis pelos diversos Godot(s) que nunca chegam, mas continuamos ali, ao lado da árvore com ou sem folhas, sejam elas verdes ou secas. 

“O que afirmo aqui é que o desencontro é de uma grande potência clínica. De fato, ele é a verdade inicial e constante da clínica do at. É através dele que podemos de fato, em transferência e contratransferência, agir e nos aproximar da vida psíquica de nossos acompanhados.”

O que afirmo aqui é que o desencontro é de uma grande potência clínica. De fato, ele é a verdade inicial e constante da clínica do at. É através dele que podemos de fato, em transferência e contratransferência, agir e nos aproximar da vida psíquica de nossos acompanhados.

No caso dos sujeitos adictos como K., a evidência disso é concreta. O curto-circuito droga-sujeito deixa buracos na existência. Quem está saudável é o outro gato, não é K. A at se desespera para achar algo que possibilite calor e afeto, busca colo (dar e receber?). Mas, assim como Estragon e Vladimir², resta a ela sobreviver, esperar.

O at vagabundeia pelo mundo à espera de algo. Apostar que a sua espera tenha ou possa vir a ter algum sentido, e que outros personagens que atravessam pela ruína tenham valor, mesmo que efêmero, é parte do inglório trabalho. O at é aquele personagem clínico que chega aonde nenhum outro profissional consegue chegar, por isso é um ser em risco de ruína, e por isso é também uma figura de apoio importantíssima para que sujeitos em pedaços possam se escorar no destrutivo e no potente constante encontro – desencontro que ocorre na relação clínica. Nesse cenário o at não pode ficar sozinho. Ele precisa de parceiro(s) que possam esperar juntos. Precisa de outros vagabundos para ficar em dúvida, como ficam Estragon e Vladimir, mas que decidam, no final, permanecer. 

Luciana 

Sinto que Rafael funciona como um ponto de referência nessa carta geográfica que tento desenhar junto à K. De tempos em tempos recorro a ele para reencontrar algum rumo, para me certificar de que a rota se mantém a mesma apesar de tantos desvios. 

Em um primeiro momento acredito ser possível criar um projeto para K., e seguir por ele até construir algo que se mantenha de pé. Sou tomada de assombro toda vez que o projeto desmorona. Rafael, não. 

Étienne Souriau defende que há existências singulares que é preciso instaurar, no sentido de responder ao seu apelo. Trata-se de testemunhar, mais do que inventar. “Souriau refere-se a modos de existência que precisam de nós para se desdobrarem no seu esplendor, inclusive na autonomia a que têm direito. Seríamos por vezes como que testemunhas em favor delas ou advogados em defesa de seu ‘direito’ a existirem a seu modo” (Souriau apud Pelbart, 2019, p. 226).

“Penso no at e no seu ofício de garantir que certos tipos de existência sejam possíveis. O ofício de se colocar à disposição do outro para ser manejado, mastigado, descartado e chamado de volta. O ofício de emprestar o corpo para que alguém se escore, confunda, esnobe.”

Penso no at e no seu ofício de garantir que certos tipos de existência sejam possíveis. O ofício de se colocar à disposição do outro para ser manejado, mastigado, descartado e chamado de volta. O ofício de emprestar o corpo para que alguém se escore, confunda, esnobe. 

Que raiva de você K.!! Depois passa e volta de novo. Que raiva. Depois vem uma sensação de torpor: o que estamos fazendo? Que tratamento é esse? Por que não a internamos mesmo? K. é especialista em ludibriar e escorregar e ir me levando junto com ela para o precipício. K. é polvo que me seduz. Que me leva na conversa e me faz responder ao seu chamado. Sereia que me enfeitiça. Assim, bem clichê mesmo.

K. é sereia que engana e afunda navios. Tenho vontade de ir embora, de desistir. Mas fico seduzida, totalmente enredada, entregue a um certo tipo de magnetismo que não desvendo. Ela me conta que usou drogas e me pede “não comenta com ninguém, tá? Pelo menos por enquanto., respondo, transformada em cadela.

Tento me defender da angústia que me invade, do medo de me misturar a ela e me perder. Respiro fundo para me acalmar. O que é necessário para que a existência de K. seja possível? O que eu poderia fazer para ajudá-la? Me acalmo, silencio. Penso que estou toda ali por ela, mas que se ela não quiser ou puder usar o que tenho a oferecer, não adianta nada.

Pelbart (2019), ao analisar o trabalho de Virgínia de Medeiros, comenta sobre o quanto ela se coloca disponível para essas pessoas que são como obras em curso e que requerem dela solicitude, “pois demandam ser prolongadas, completadas, ecoadas, intensificadas, insufladas” (227). A artista diz: “O Outro não é apenas o dessemelhante (…), é também uma sensação de incompletude que nos mantém em suspenso, como inacabados, na espera de nós mesmos. Um encontro que requer tempo, cumplicidade e uma vontade de aproximar o que nos parece distante” (228). Tenho ainda vontade de voltar e estar com K. nesse desmoronamento?     

Rafael

A minha primeira parte do texto foi enviada a Luciana e ela retorna, com alterações no que antes tinha escrito e no que eu tinha escrito. Inseguros ficamos.  Será que o que um propõe ao outro faz sentido? Será que o encontro entre nós, permeado por esse texto, e principalmente permeado pela clínica com K., vai se fazer desabar ao se realizar? E o que desaba? O texto ou os próprios autores? É impressionante como fica aqui explícita a dinâmica de contratransferência. Sofremos de angústia similar a K. Similar, pois não é a mesma. Há um encontro-desencontrado com K.  

Duas coisas escritas por Luciana me chamaram a atenção. Primeiro, que sou um ponto de referência. Segundo, ela corrigiu “vagabundos”, por “não tão vagabundos assim”. Somos espelhos, em nossa relação Luciana–Rafael com as relações K.-Luciana e K.-Rafael. Cada um de nós testemunhando os outros dois. Procurando por pontos de referências, de escora. Tentando exorcizar aquilo que vagueia sem sentindo por aí. Eu não sou um ponto de referência como o ex-marido que sustenta K. até hoje. Ou sou? De K.? De Luciana? K. vaga pelo mundo sem rumo, como a conotação negativa da palavra vagabundo, ou a at e o terapeuta são Estragon e Vladimir, capazes de torcer o tempo para poder escutar?   

K. tenta se inscrever num mundo com recursos ambíguos. Às vezes parece uma mulher potente, cheia de vida, interesses, às vezes uma garotinha assustada em busca de um deus, de um amor, de um “sustentador”. Muitas vezes se apresenta como uma “junkie” ou como uma “deprimida”. Muitas vezes nem se apresenta, não aparece na sessão, não recebe a at. Daí nós esperamos. Sabemos que outros profissionais tentaram até um limite. Qual seria o nosso limite?

Não seria melhor se perguntar (afinal, não é disso que se trata?) como acompanhar K. para que ela descubra essa sua mania de fazer os outros esperarem? Por que seu ex-marido paga as suas contas até hoje? Dez anos depois e sem filhos? Por que essa impotência toda? Perguntas que, quando feitas diretamente, não têm respostas. K. não sabe. K. age.

Isso me lembra um dos primeiros livros de at lançados onde a imagem magistral era a de Dom Quixote e Sancho Pança (Barreto, 2000), sendo Sancho o at que acompanha Quixote em suas andanças pelo mundo. Sancho sabe que é só um moinho, mas topa mesmo assim ser o escudeiro do ataque aos gigantes. Faz isso em protesto à uma diferença de mundos. Os gigantes de K. são menos literários, não estão nos campos quixotescos que são as ruas paulistas. Os gigantes de K. são Godot. E o at espera, não sem protesto. E sem garantias de que aguentará.

Não é à toa que K. vive uma relação espelhada entre o objeto droga, no caso dos últimos tempos, a cocaína, e o amor. Ela espera que algo a preencha, algo a tire da potência não realizada. Ela cheira para agir, mas também para ressacar, ela se relaciona com homens despedaçados que atacam gigantes como ela (mas não necessariamente os mesmos), e por fim ela é sustentada por um amor perdido que mantém tudo como está. 

“Luciana fala do testemunho, eu falo da espera, tudo parece muito passivo, e talvez seja em certa medida, mas também são uma espera e um testemunho ativos. Somos Sancho Pança nomeando seu dia a dia, mas também dando possibilidades de estar juntos, usando o que sentimos como farol. (…) Nossa intervenção é para que o ex se torne ex. Que isso seja feito com cuidado e que nós possamos ajudá-la a suportar o vazio para quem sabe (re)construir o contrário da dependência, isto é: a liberdade possível.”

Luciana fala do testemunho, eu falo da espera, tudo parece muito passivo, e talvez seja em certa medida, mas também são uma espera e um testemunho ativos. Somos Sancho Pança nomeando seu dia a dia, mas também dando possibilidades de estar juntos, usando o que sentimos como farol. Procuramos um rumo e tentamos emprestar um pouco dele para ela. Nós estamos sustentando que o amor perdido finalmente se vá. Deixe amorosamente de sustentar o imóvel. Nossa intervenção é para que o ex se torne ex. Que isso seja feito com cuidado e que nós possamos ajudá-la a suportar o vazio para quem sabe (re)construir o contrário da dependência, isto é: a liberdade possível.                


1 – Optamos por grafar at em minúsculas, sem itálico, para se referir aos profissionais que exercem a função de acompanhante terapêutico. Já at em itálico e minúscula seria a função de acompanhamento terapêutico exercida pelo profissional. Tal escolha em minúsculas é baseada no entendimento de que o acompanhamento terapêutico é uma função clínica exercida por diversos profissionais. Uma prática clínica transdisciplinar e não fixada como profissão exclusiva de profissionais específicos. 

2 – Os dois personagens que esperam Godot na peça


Referências

Barreto, K. D. (2000) Ética e técnica no acompanhamento terapêutico – Andanças com Dom Quixote e Sancho Pança. Ed Unimarco.

Beckett, S. (2017) Esperando Godot. Ed Cia das Letras.

Figueiredo, L.C.M., & e COELHO JR, N. (2000) Ética e Técnica em Psicanálise. Ed. Escuta.

Pelbert, P.P. (2019). Ensaios do Assombro. Ed. n-

1 Comentário

  1. Parece que os papéis se repetem na interação com K. O ex marido não consegue conviver com a cena, mas alimenta um buraco, que não se preenche. As intervenções de cuidado, se misturam com a tentativa de que o sujeito se perceba, mas o que precisa ser percebido? De quem é a busca? Existe busca? Espera? Desejo? De quem? Do que? Para que? Para quem?

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