Entrevista com Zélia Maria Ferrari P. R. Pagliarde

A presente entrevista, consubstancia o registro do conhecimento adquirido por uma profissional, que, como tantos outros técnicos que trabalham na prática diária do SUS (Sistema Único de Saúde), não registra sua experiência obtida a partir dessa posição avançada. Assim, a produção acadêmica fica privada desse enriquecimento. No esforço de aproximar a prática da teoria, o texto a seguir tem o potencial de nutrir o diálogo científico.

Zélia Maria Ferrari Paiva Ribeiro Pagliarde é Assistente Social de formação (1981), com especialização em educação e saúde pública, e supervisão em serviço social. Foi gerente do programa De Braços Abertos (Cracolândia), gerente do Centro Especializado Reabilitação (CER 3 do centro da cidade de São Paulo), gerente do programa saúde da família (PSF Cidade Júlia, pela OS Organização Social Saúde da Família) e atualmente gerente do CAPS AD II Santo Amaro da SMS Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo.

Nessa entrevista, conversamos sobre a diferença da situação atual dos serviços diante da mudança na política de drogas ocorrida nos últimos 5 anos.

Siglas usadas na entrevista: 

DBA: De braços Abertos

CAPS AD: Centro de atenção Psicossocial – Alcool e Drogas

GCM: Guarda Civil Metropolitana

POT: Programa Operação Trabalho

SMADS: Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social

SMDET: Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo

SIAT: Serviço Integrado de Assistência Social e do Trabalho

CRAS: Centro de Referência de Assistência Social

UBS: Unidades básicas de Saúde

UPA: Unidade de Pronto Atendimento

UAA: Unidades de Acolhimento de Adultos

SAICA: Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes

OSs: Organizações Sociais

Quimera: Por favor, me conte sobre sua experiência com as pessoas em situação de rua, no tempo do programa municipal do DBA. Isto é, qual sua função na época, como eram as pessoas atendidas em termos de necessidades, habilidades, capacidade de resposta ao seu trabalho. Como você avalia o trabalho, da perspectiva da época e agora, passados alguns anos?

ZMP: A minha função lá era de coordenadora do programa DBA pela Saúde, na TENDA (rua Helvetia). As pessoas atendidas estavam em extrema vulnerabilidade social: elas precisavam de tudo, desde apoio psicológico até um banho, roupas, cuidados de saúde, documentação. Basicamente eles necessitavam de água potável. Era a nossa forma de atraí-los, pois eles tinham medo de agentes do governo. Referente à habilidade ou capacidade de resposta ao trabalho, alguns estavam mais organizados e conseguiam alguma colocação profissional, iam trabalhar, mas muitas vezes recaíam e voltavam para lá. 

“O mais interessante era que havia um trabalho intersecretarial, todas as secretarias estavam envolvidas, inclusive a de esportes: seus funcionários organizavam jogos na rua com eles. Todos os Secretários Municipais participavam ativamente em contato comigo direto, eu tinha acesso, não fazia nada sozinha.”

Na época nosso trabalho era maravilhoso, poderia ter dado muito certo se continuasse… foi uma pena que terminaram com tudo! Não só com esse programa, mas também com a chance que muitos tiveram de sair de lá. O mais interessante era que havia um trabalho intersecretarial, todas as secretarias estavam envolvidas, inclusive a de esportes: seus funcionários organizavam jogos na rua com eles. Todos os Secretários Municipais participavam ativamente em contato comigo direto, eu tinha acesso, não fazia nada sozinha. Todos eles eram muito preocupados com esse programa, queriam e torciam para que desse certo

O CAPS AD III¹ da Rua Frederico Alvarenga participava ativamente com seus agentes Redutores de Danos que realizavam oficinas, rodas de conversa, rádio e TV, roda de Samba, e havia até um mestre em capoeira. 

Se a GCM estava pegando lá, eu ligava para o Secretário de Segurança do Município, Roberto Porto, e resolvia rapidamente. Eu me lembro de ele ter comentado que não havia autorizado o tipo de armamento usado nas intervenções, dessa forma ele podia intervir e coordenar melhor as ações dos guardas. 

O pessoal da SMADS era bem ativo, principalmente pela Secretária Municipal Luciana Temer que entrava comigo no fluxo sem medo. As ideias dela eram compartilhadas conosco, como a inserção social, principalmente na questão de emprego, ou em levá-los de volta à família. Ela disponibilizava passagens para o local de origem para aqueles que assim o desejavam, era feita uma entrevista para avaliar a pretensão deles para uma ida permanente. A família deles era contatada e consultada sobre a possibilidade do retorno deles, porque o indivíduo precisava ter garantia de ser aceito. Além disso havia o acompanhamento após a viagem para se saber como a pessoa estava lá, e se tinha arrumado emprego

As Secretarias Municipais de Educação em parceria com a SMDET contrataram uma ONG que desenvolveu um Programa, o POT (instituído em 2001) que desenvolvia cursos e encaminhamento para algumas empresas, com acompanhamento dentro da empresa desses pacientes, isso dava muito certo. 

Por isso que acabaram com esse programa: porque sabiam que ia dar certo.

Atualmente eu vejo que isso faz uma falta danada, tudo parou naquele território. Hoje precisaria haver um SIAT mais ativo. Então eles não têm apoio daquele trabalho conjunto Inter secretarial, daí eles ficaram dispersos e espalhados pela cidade – o que causou o aumento da criminalidade, porque eles se sentem acuados e ao mesmo tempo são espancados e não têm com quem falar, não têm a quem recorrer, sem apoio algum, é uma coisa muito triste.

Quimera: Atualmente você dirige um CAPS AD, nem tão central como era o DBA. Como é seu contato com as pessoas em situação de rua?  Como são as relações entre o seu serviço e os recursos sociais da região? (Albergues, CRAS, outros). Há algum contato com o judiciário, defensoria pública, segurança (delegacia, polícia civil e militar). Como são as relações entre o seu serviço e os outros recursos da saúde como UBS, saúde da família, consultório na rua, SAMU, unidades de acolhimento de adultos?

ZMP: Atualmente sou a coordenadora do CAPS AD de Santo Amaro. O meu relacionamento com pessoas em situação de rua é pontual, um caso ou outro. Não é direto, eu não vou para a rua, é um atendimento mais distanciado do que eu fazia antigamente no DBA. A minha relação com os recursos da região é boa, infelizmente não funcionam como deveriam funcionar e, pela experiência que eu tive lá na Cracolândia, onde havia muitos serviços para atender essa população, aqui a gente sente falta de vagas nos albergues. O CRAS não atua direcionalmente como teria que atuar, então nós temos problemas nos recursos para trabalhar com essa população. 

O contato com o Sistema Judiciário, com a Defensoria Pública e com a Segurança, só ocorre quando somos convocados a participar de reunião online referente a algum paciente. Aqui não temos um estreitamento que eu tinha na Cracolândia, onde eu conversava direto. Nós temos relacionamento com a Saúde da Família, com o Consultório na Rua, e com o SAMU que é uma dificuldade pois é muito demorado. Lá no DBA tínhamos um código que era ‘Cracolândia” e imediatamente éramos atendidos pelo SAMU. Então eles pensavam naquele local de forma muito diferente de como são tratados de fato aqui. 

As UBSs, na medida do possível, nos acolhem bem, temos um contato direto com elas, às vezes fazemos atendimento em conjunto. Temos também uma reunião de vulnerabilidade entre os equipamentos de Saúde e de Assistência Social do território (UBSs, UPAs, UAAs, Centros de Acolhida, SAICA), que ocorre uma vez por mês, onde se discutem os casos em comum.

Nosso relacionamento com a equipe do Consultório na Rua é muito bom, pois eles acompanham os pacientes, supervisionam a medicação, facilitam o acesso das pessoas ao tratamento. O problema é que temos apenas uma equipe para atuar nas regiões de Santo Amaro e Aeroporto (Congonhas).

“Em relação às duas populações atendidas, no caso, são totalmente diferentes e sem comparação. Lá nós estávamos diariamente o tempo inteiro no meio, junto com eles, ouvindo participando, interagindo. Aqui não. O atendimento daqui é pontual, com hora marcada.”

Em relação às duas populações atendidas, no caso, são totalmente diferentes e sem comparação. Lá nós estávamos diariamente o tempo inteiro no meio, junto com eles, ouvindo participando, interagindo. Aqui não. O atendimento daqui é pontual, com hora marcada. No CAPS AD temos técnicos responsáveis pelo atendimento ao paciente. Mesmo fazendo reuniões para discutir o caso, é diferente porque nós não temos esse paciente o tempo todo conosco. Principalmente eu, enquanto gerente, não fico direto com eles, então é uma diferença imensa! Às vezes eu recebo um feedback de um caso pelos técnicos. Na medida do possível, quando dá para eu ajudar, interagindo com algum equipamento necessário para um atendimento no conjunto. Estou sempre à disposição.

Quimera: Como você avalia as semelhanças e as diferenças entre as populações atendidas no DBA e agora no CAPS?

ZMP: Como eu comentei na primeira questão, na época que eu trabalhei na Cracolândia, eu tinha acesso direto aos Secretários, aos técnicos principalmente na Secretaria da Saúde, junto à coordenação de Saúde Mental, sempre havia reuniões para discutir aquele espaço. Fora isso também vinham outras pessoas para visitar aquele local, porque era diferente, veio o Dr. Tikanori², que ficou muito surpreso com aquele espaço. Aquilo ali era a curiosidade do mundo. 

O príncipe Harry foi lá. Inclusive um dos nossos beneficiários o recebeu, falando muito bem em inglês. Interagiu muito bem com ele, então se percebe que naquele meio tinha muitas pessoas capacitadas. Geralmente as pessoas acham que são pessoas ignorantes que estão ali, faveladas. Mas encontrávamos de tudo: desde analfabetos, advogados, veterinários, médicos, ex pastores, era surpreendente! Bastava uma situação de fragilização na vida, qualquer perda: pessoal, profissional, existencial, a falta de aceitação daquele momento ruim que a pessoa viveu: o indivíduo ia para a rua e usava drogas.

O interessante que pude observar era que a rua era acolhedora, a Cracolândia acolhia quem chegasse. E naquele lugar o relacionamento entre eles não tinha diferenças sociais. O acolhimento é o que mais eles procuram.  Um abraço entre eles é muito importante. Eram todos iguais, muito unidos, um apoiando o outro, uma coisa que atrai, parece um imã. Porque há diversidade, se aprende muito, e altera o olhar, a perspectiva. Me parece que é isso que falta aos técnicos que atuam na população da Cracolândia hoje em dia, eles não têm clareza daquela realidade, para se ter uma ação mais efetiva lá. Cada um vai lá com sua própria teoria e seus valores e deixam de ouvir a realidade da vida de cada um que está lá.

“O interessante que pude observar era que a rua era acolhedora, a Cracolândia acolhia quem chegasse. E naquele lugar o relacionamento entre eles não tinha diferenças sociais. O acolhimento é o que mais eles procuram.”

Isso é interessante porque se houver a escuta despida de todos os valores morais e preconceitos podemos ajudar essa população.  Alguém me perguntou como eu aguentava atender travesti! 

A religião é forte, pois mais da metade deles sabia a Bíblia de trás para frente e de frente para trás. Eu ouvi um me dizer “que eu vou sentir o momento em que eu vou sair daqui”.

Infelizmente as políticas e diretrizes municipais atuais são de “vamos limpar o território”, “não vamos deixar aparecer, vamos tentar esconder”. E paradoxalmente, quando tentam fazer isso acabam pulverizando essa população. Foi que aconteceu lá, agora eles espalharam. Mesmo porque eles (os beneficiários do programa) perderam aquele apoio que tinham ali, que era da saúde e da assistência social, porque foi que sobrou depois que terminaram com o programa DBA.

Apenas essas duas secretarias que continuaram ali, dando um seguimento no trabalho, na medida do possível. Eu fiquei sabendo que começaram a trocar as pessoas que já estavam um tempo trabalhando no território. Ou seja, para manipular mais facilmente os profissionais para dar um jeito de acabar com aquilo. Mas o programa é uma coisa que sabemos ser histórica e que nunca vai acabar. 

Está muito complicado… falo isso porque eu ainda sinto a necessidade de estar presente naquele local, mas não atualmente, devido essas políticas que não são desejáveis. O que falta muito nos territórios, inclusive aqui, são os equipamentos híbridos, que eu pedia muito. Agora fizeram o SIAT em que a Assistência Social e a Saúde trabalham juntas com essa população. Faltou incluir o Esporte para que eles possam ter um atendimento mais complexo, mais amplo. 

Você não perguntou nenhum momento de internação, naquele momento nós não fazíamos internação, nem compulsória, nem voluntária, nem nada disso.  Muitas vezes eles pediam internação para sair daquele pedaço por proteção ou por “eu quero dar um tempo daqui”. Iam sim para as comunidades terapêuticas, algumas das quais, eu cheguei a conhecer, eram boas, com uma equipe legal lá dentro, que a gente chegou a fazer algumas trocas. 

Mas também não adiantava muito, porque nessas internações eles engordavam, se organizavam, mas saíam e não tinham para onde retornar, voltavam para aquele local. Porque não era feito nenhum trabalho com a família, não era dado nenhum tipo de curso para eles, nem encaminhamento para algum local de trabalho. Fora isso, também, muitos não tinham onde dormir. Só faltava tudo isso: habitação e trabalho. Isso é uma coisa que falta no território, para a gente poder melhorar um pouco a qualidade de vida dessas pessoas. 

Não é esse olhar que a gente tem aqui dentro do CAPS: “por causa disso, por causa daquilo”. Uma coisa muito maior tem que ser esse entendimento. As anotações em prontuário são importantes, nem tudo é descrito apropriadamente para que outros profissionais do CAPS AD possam acompanhar o paciente a partir daquele momento. Além disso, há pouco treino para a “escuta especializada”.

O que eu sinto aqui no CAPS é que muitas pessoas vêm até aqui e são encaminhadas para desintoxicação, saindo daqui com uma pancada de medicação e ficam muitas vezes na rua. Nós também não temos um centro de acolhida que nos forneça vaga para essa pessoa, então falta um pouco mais de entendimento desses equipamentos no entorno para esse tipo de aceitação desses pacientes. Também temos dificuldade com muitos dirigentes das OSs que não sabem ao certo como funciona o CAPS e do apoio especial que essas pessoas precisam ter. 

As internações aqui no CAPS são referenciadas para os CAPS AD III em hospitalidade noturna, quando há vagas. Há discussão dos casos dos pacientes entre os profissionais daqui e do CAPS AD III e visitas de nossa equipe ao paciente internado nesses equipamentos. Há a internação em UAA para os mais organizados, em que o Projeto Terapêutico Individual firmado com o paciente é discutido pelas duas equipes. Mas quando o paciente está mais agressivo e agitado ele é encaminhado para a UPA. Nós não temos acesso direto às vagas hospitalares.


1– CAPS AD III Sé
2– Roberto Tykanori Kinoshita é psiquiatra, professor adjunto da UNIFESP. Na época do programa DBA era Coordenador de Saúde Mental no Ministério da Saúde.

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