Entrevista com Antonio Nery Filho e Dartiu Xavier da Silveira

Por Fabio Carezzato, Rodrigo Alencar e Rubens Espejo

A entrevista com o Dr. Dartiu Xavier da Silveira e o Dr. Antonio Nery Filho foi proposta por meio de uma reunião virtual, na qual os dois pudessem responder a entrevista conjuntamente. Dado a incompatibilidade de agendas, foi necessário realizar cada entrevista individualmente. No entanto, considerando que nas duas entrevistas foram utilizadas o mesmo roteiro, reagrupamos as respostas de acordo com tema abordado e buscamos eliminar trechos que pudessem apresentar redundância nas respostas.

Dartiu Xavier da Silveira é médico psiquiatra pela Escola Paulista de Medicina (EPM/UNIFESP) Professor Livre-docente da Universidade Federal da São Paulo (UNIFESP), foi presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica e da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Álcool e Drogas (ABRAMD) e um dos fundadores do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD)

Antonio Nery Filho é médico psiquiatra formado em Medicina pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Lumière Lyon 2, Professor Associado na Faculdade de Medicina da Bahia, foi membro do Conselho Regional de Medicina da Bahia e fundador do Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas (CETAD)

As siglas antes das respostas estão com a primeira letra do nome mais conhecido dos entrevistados. N. é a abreviação de Antônio Nery Filho, e D. de Dartiu Xavier da Silveira

Demais siglas:

CT = Comunidade Terapêutica

DQ = Dependente Químico

CRP = Conselho Regional de Psicologia

CFP = Conselho Federal de Psicologia

ABEAD = Associação Brasileira do Estudo do Álcool e outras Drogas

ABNP = Associação Nacional de Neuro Psiquiatria

ABP = Associação Brasileira de Psiquiatria

INÍCIO DA ABRAMD

QUIMERA    A história da ABRAMD vem de um rompimento com a ABEAD, assim como recentemente a fundação da ABNP, da qual também participou o Prof. Dartiu, em contraponto a ABP. Como vocês contariam a história da ABRAMD e seu papel de resistência no campo das drogas?

N. É preciso reconhecer que a história da pesquisa com psicoativos ilícitos e, em particular, as pesquisas e cuidados relacionados com o álcool, se inicia com a ABEA (Associação Brasileira de Estudos do Álcool).

No Brasil as drogas ilícitas eram, nos anos 70, fundamentalmente um problema de polícia. Psicanalista algum se arvorava a cuidar de uma pessoa usuária de cocaína, ou de outra droga qualquer. Se dizia naquela época que os toxicômanos não faziam transferência. Então a ABEA elegeu o álcool como produto principal e a Prof. Jandira Masur1 capitaneou estudos importantes, agregando em torno de si e do Prof. Carlini2 inúmeros profissionais e estudantes. O Prof. Carlini, já nessa época, estava mais interessado na psicobiologia, ou seja, a biologia dos fenômenos psíquicos, dedicando-se às investigações sobre os efeitos da Cannabis sativa sobre o SNC e, portanto, sobre o comportamento. Esse era o panorama.

Então, a ABEA agregava, a meu ver, mais pessoas do Sul, principalmente de São Paulo e Rio Grande do Sul. Pouco a pouco ficou claro para muitos associados da ABEA, a importância dos produtos ilícitos, o que levou a associação a incluir a palavra drogas em sua denominação, abrindo espaço para o estudo das demais substâncias psicoativas. Entretanto, ainda dominava a dimensão médico-farmacológica, distante da incorporação efetiva dos aspectos sociais e antropológicos. Creio que foi importante, também, para o rompimento digamos, interno, a realização de um congresso patrocinado por laboratório produtor de medicamento indicado para a “redução do impulso (desejo) de beber”.

Naquele momento, muitos profissionais liderados pelo psiquiatra e Professor Dartiu Xavier da Silveira e do Professor Elisaldo Carlini, criaram a ABRAMD, caracterizando a multidisciplinaridade como fundamental. Incorporando a multiplicidade de saberes e também acolhendo os psiquiatras mais voltados para o trabalho de rua, o que chamaremos depois de clínica ampliada.

Contudo, mesmo a ABRAMD, manteve-se sustentada pelos trabalhos do Sul, em particular de São Paulo, apesar dos esforços para se tornar, de fato, nacional. Mas, a meu ver, cabia às outras Regiões torná-la forte, o que nunca ocorreu, de fato.

 Compreendi mais tarde o quanto é difícil ocupar o imenso território brasileiro.

D. No passado, eu sempre fui muito ativo tanto na ABEAD quanto na ABP. Só para vocês terem uma ideia, eu lembro que o PROAD, implantado em 1987, era chamado todo ano pela ABP para ministrar 4 ou 5 cursos em cada congresso, e nos colocavam em 7 ou 8 mesas de debates científicos.

As novas gestões incluíram um novo grupo de profissionais, que já era atuante na ABEAD mas ainda pouco expressivo na ABP, os assim considerados “reacionários” no campo das drogas, com uma visão predominantemente repressora e exclusivamente biologizante da questão. A partir do momento em que esta última gestão assumiu a presidência na ABP, não fomos mais chamados para dar cursos e apresentar trabalhos, e tudo o que propúnhamos passou a ser sistematicamente rejeitado. Desde então, não tivemos mais espaço na ABP, o que contrastava muito com nossa participação ativa constante e intensa anteriormente.

Na ABEAD houve um movimento parecido. A ABEAD lá no seu início, da época do Prof Carlini e da Jandira (Masur), embora não desse um grande peso à questão psicodinâmica, procurava ter uma visão dialética e multidisciplinar. Porém, a última gestão que ainda manteve essa visão foi quando Evaldo Melo3 era presidente.

Após essa gestão aconteceu a mesma coisa que ocorreu na ABP e perdemos este espaço para um debate multifacetado e mais aprofundado do fenômeno. Nessa época, Silvia Brasiliano 4 e eu, insatisfeitos com esta situação, começamos a nos reunir e, a partir daí, a expandirmos nossas reuniões, chamando Maria Lucia Formigoni5 , Carlini e outros colegas que também tinham a mesma sensação de que a ABEAD não dava mais espaço para essa visão dialética amplificada. Resolvemos, assim, fundar a ABRAMD e ficamos surpresos com a chegada de um enorme número de profissionais que não se sentiam mais representados pela ABEAD.

A partir daí começamos a nos reunir em congressos anualmente. Silvia e eu fomos da primeira diretoria da ABRAMD e fizemos questão de fazer o oposto da ABEAD e da ABP: não fizemos “clubinho” de amigos que pensavam igual a nós, mas convidávamos gregos e troianos. Em geral, quem não concordava muito com a gente recusava os convites, mas nós entendíamos que a Ciência é dialética e que seria um empobrecimento não poder discutir com quem pensa diferente da gente, obviamente desde que os dois lados tivessem abertura para tal. E foi dentro deste espírito que nasceu a ABRAMD.

OLIEVENSTEIN

QUIMERA    Ambos foram marcados pelo contato com Olievenstein. Como foi a importação das ideias da clínica francesa para o Brasil e as adaptações regionais?

N. Morei na França de 73 a 77 quando transitei pela psiquiatria clássica francesa, trabalhei durante 5 anos no hospital Sainte-Anne. Voltei da França para Salvador e fui trabalhar, novamente em um hospital judiciário, hoje denominado Casa de Custódia e Tratamento.

“[…] os hospitais judiciários são o inferno para onde se mandam as pessoas que o ‘inferno banal’ não aceita.”

Fui muito marcado por essa experiência, pois, a meu ver, os hospitais judiciários são o inferno para onde se mandam as pessoas que o ‘inferno banal’ não aceita. Trabalhei lá até 1980 quando fui convidado para ensinar psiquiatria forense na Faculdade de Medicina da UFBA. Eu era muito crítico do sistema ‘judiciário-psiquiátrico’, e levava os alunos para verem aqueles vivos-mortos, aqueles homens e mulheres abandonados, não a própria sorte, mas a um destino que nenhum ser humano merecia, nem merece, ainda hoje.

Sempre chamou minha atenção a “domação” farmacológica naquele hospital judiciário e, sobretudo a questão da responsabilidade dos profissionais da saúde, em particular dos médicos prescritores de tratamentos. Além disso, era evidente a prevalência de dependências iatrogênicas além das doenças causadas pelas longas impregnações psicofarmacológicas. Era até paradoxal: se estavam no inferno, este inferno só era suportável porque eram “anestesiadas” pelos psicofármacos.  Isto gerava discussões interessantes. Rapidamente estávamos discutindo sobre os psicoativos em geral e o modo como os usuários de produtos legais e ilegais eram tratados no início dos anos 80. Em 1983, escrevi para o Dr. Claude Olievenstein e fui conhecer a experiência francesa, o Hospital Marmottan, onde os usuários de heroína eram cuidados segundo três princípios: a gratuidade, o anonimato e a busca voluntária pelo tratamento.

Pude ver o que era uma toxicomania; compreendi como o uso de heroína não era um castigo de Deus, mas uma alternativa que algumas pessoas encontravam para viver, sublinho isso, para viver e não para morrer. Sua prática clínica apoiava-se em um tripé indissociável: a pessoa, a droga e as circunstâncias sociais. Dizia ele: “a toxicomania resulta do encontro de uma pessoa com um produto, em um dado momento sociocultural”. Isto deslocava o eixo (olhar), da droga para a pessoa. Compreendi que não era a droga que “tomava” a pessoa, mas, a pessoa que “tomava” a droga.

Por 4 meses morei no hospital com 20 heroinômanos, equipe de enfermagem e equipe médica.

Olievenstein veio ao Brasil a convite de Minas Gerais, ministrando aulas e conferências em São Paulo e na Bahia. Esta aproximação me levou, em 1985, a inaugurar um ambulatório especializado no cuidado de pessoas usuárias de psicoativos, deixando de fora o álcool e o tabaco. Os alcoolistas inundavam os serviços de psiquiatria e o tabaco estava no domínio da cancerologia, do INCA, e da pneumologia. Claude Olievenstein foi fundamental para a abertura deste serviço na Bahia e em outros Estados Brasileiros, animando os jovens psiquiatras – e não psiquiatras – com suas ideias centradas na liberdade, no afeto, nos Direitos Humanos.

Muitos foram para a França. Juntos, ‘disseminamos’ a Clínica de Marmottan e inauguramos serviços: em 1985, o CETAD/UFBA, em Salvador. O CMT, mais antigo, em Belo Horizonte com José Mario Simil Cordeiro. O PROAD com Dartiu em São Paulo, o NEPAD no Rio de Janeiro com Sergio Seibel, o EULÂMPIO CORDEIRO, com José Carlos Escobar e José Francisco Albuquerque, em Pernambuco, e o CORDATO em Brasília, inaugurado em 1986 por Richard Bucher, da UnB, precocemente falecido. Estes Centros começam a influenciar serviços pelo Brasil, com os Congressos e falas, essa nova palavra, de cuidar de pessoas e não das drogas.

A cooperação que estabelecemos com o Centre Medical Marmottan foi longa e frutuosa. Se hoje, 2021, fala-se menos em Olievenstein, nem por isso se pode negar o papel que teve no que chamávamos ‘uma nova clínica das toxicomanias’, ainda referência para muitos de nós e, base para muitas atividades desenvolvidas pelo País. Lamentavelmente, estamos vendo hoje o retorno da hegemonia da droga e uma tentativa de “repsiquiatrizar” os usuários.

D. Quando me formei em medicina, fiz residência em psiquiatria e fui trabalhar com urgências psiquiátricas. Em paralelo tinha interesse por psicodinâmica e me aproximei da psicologia analítica de Jung. Fiquei 7 anos trabalhando em Pronto Socorro (PS). Em seguida concluí que não gostaria de trabalhar nesta área de urgências psiquiátricas por um tempo maior, pelo excesso de estresse, e que eu deveria me focar em uma outra área de interesse.

E houve duas razões principais pelas quais eu fundei o PROAD: a primeira é que, quando trabalhava em pronto-socorro, eu não tinha para onde encaminhar os usuários de drogas ilícitas. A lógica era montar esse serviço, já que havia uma grande demanda por este tipo de tratamento. E, em segundo lugar, havia igualmente uma motivação pessoal, já que eu sentia haver em mim uma contratransferência muito positiva face a estes pacientes, gostava de atender os dependentes químicos…

Mas, ao mesmo tempo, o que eu estudava sobre dependência se encaixava mais em um modelo americano, mais positivista, mais reducionista, excessivamente biologizante. Por outro lado, mesmo a psicanálise e a psicologia analítica junguiana falavam muito pouco sobre dependência.

Sentindo-me sem referências, conheci o prof. Claude Olievenstein. Ele veio a São Paulo dar algumas palestras, fui assisti-las e fiquei fascinado. Ele trazia uma outra visão do tema, ‘enxergava’ o drogado de uma outra forma. Li seu livro autobiográfico “Os drogados não são felizes” e me dei conta que era daquela maneira que eu queria trabalhar com dependência. Sincronicamente, nessa época surgiram bolsas para estágios em Marmottan, instituição que ele dirigia em Paris.

E foi muito interessante ter vivenciado esta experiência inovadora no Centro Marmottan. Quando voltei ao Brasil, me senti mais empoderado, capacitado a lidar com dependência química. Juntamente com Miguel Jorge e Ladislau Glausziuz, criei o PROAD dentro do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP).

Existiam diferenças entre Marmottan e o PROAD, obviamente. Na França, por exemplo, a principal droga ilícita utilizada era a heroína, enquanto aqui no Brasil era a cocaína. Havia naquela época muito uso injetável por aqui e ainda não havia aparecido o crack, que veio a surgir somente depois de alguns anos. Mas eu havia aprendido que o manejo da dependência era o mesmo para qualquer droga, o diferencial era a maneira de entender quem era o dependente. E esse diferencial é o que distingue o PROAD da maioria dos outros serviços. Penso que o modelo médico tradicional, positivista, tende a entender a dependência de uma forma reducionista: um indivíduo que estava muito bem na vida, um dia encontra uma droga e esta afeta o seu cérebro, tornando-o diferente, tornando-se assim dependente. Nesta visão simplista “a droga faz o drogado”.

A minha visão, essencialmente influenciada pelo modelo Marmottan, não tem nada a ver com isto. A dependência é vista como um sintoma de algo que não deu certo na vida desse indivíduo, e ele apresenta esse sintoma (uso abusivo de drogas) quando passa a usar a droga indevidamente, seja como automedicação, seja para fugir de uma realidade insuportável ou suprir uma falta, ou seja, a dependência é consequência de algo mais complexo que está por trás deste comportamento, cuja essência é a perda de controle do consumo de uma substância.

De certa forma, logo depois isso é corroborado pelos estudos epidemiológicos de Jim Anthony6, da Johns Hopkins, que demonstram que a grande maioria dos usuários de drogas não se tornam dependentes. Isso nos permite sair desse paradigma simplista e finalmente concluirmos que “não é a droga que faz o drogado”. E a pergunta para nós clínicos, e para nós pesquisadores também, passou a ser essa:  por que uma grande maioria de pessoas consegue usar drogas, lícitas ou ilícitas, de maneira controlada enquanto uma minoria perde o controle sobre este uso? E aí começamos a entrar nas questões que, a nosso ver, estão na a origem da dependência. Pode se tratar de uma comorbidade psiquiátrica, de uma situação de exclusão social extrema, de uma família disfuncional, ou seja, os possíveis motivos são inúmeros. Mas seria nestes motivos que residiria a gênese daquele comportamento que depois viria se tornar uma dependência.

Quando eu estava na França, Olievenstein ainda tinha certas restrições à redução de danos (RD). Mas estávamos na época da epidemia de AIDS. Havia programas de troca de seringas para usuários de drogas injetáveis, que era a mesma população que procurava o serviço de Marmottan. Porém, após uma reticência inicial, Olievenstein aceitou criar um serviço, que chamava de serviço clínico (não de RD, embora fosse), e que tinha entradas diferentes e independentes para quem quisesse participar do programa de RD e para quem quisesse se tratar de sua dependência química. Ele falava acertadamente que a clientela e a demanda para estes serviços eram diferentes, havendo quem procure Redução de Danos e havendo quem procure “interromper o uso de drogas”.

Acho interessante não se perder de vista esta diferenciação. Mas lembro, quando morava na França, que eu frequentava também outros serviços como por exemplo o de Lia Cavalcante – o EGO La Goute d’Or- e me dei conta de que este era um trabalho que complementava a proposta de Olievenstein em Marmottan. A partir desta percepção, aqui no PROAD, nós já começamos tentando juntar as duas coisas. Íamos para as ruas, para as favelas e oferecíamos esse serviço de prevenção e redução de danos, ou seja, complementávamos o ambulatório do PROAD onde éramos procurados voluntariamente pelos pacientes, indo ativamente atrás daqueles usuários de drogas disfuncionais que não procuravam ajuda.

E, se inicialmente tínhamos algum receio de como isso iria acontecer, na prática esta múltipla maneira de intervir nunca constituiu um problema. E isto, a meu ver, pela seguinte razão: se tomarmos como referência os melhores serviços que tratam DQ no mundo encontraremos taxas de sucesso de cerca de 30% ao considerarmos como critério de sucesso a abstinência. Isto significa que mais de dois terços das pessoas que nos procuram para tratamento não vão conseguir ficar abstinentes. No início, no PROAD, nós dispensávamos esses pacientes que não conseguiram ficar abstinentes, alegando coisas do tipo “não deu certo, vamos tentar de novo” ou “você recaiu, não teve jeito, não funcionou” para justificarmos nosso fracasso terapêutico… Posteriormente, constatamos que era um verdadeiro absurdo um serviço de tratamento dispensar dois terços da população que o procura por “insucesso terapêutico”. Algo estava errado. Pensamos, então, o que poderíamos fazer com eles? A resposta foi “podemos utilizar estratégias de redução de danos”.  Para quem não responde ao modelo que visa a abstinência, nós passamos a propor estratégias para reduzir o consumo, modificar padrões de uso, mudar de droga, trocar a via de utilização (deixar de se injetar, por exemplo). Havia muitas estratégias que podíamos utilizar com os nossos pacientes que não conseguiram ficar abstinentes. E o interessante é que, a médio prazo, estes mesmos pacientes voltavam a tentar ficar abstinentes e muitos o conseguiam.

Inclusive há estudos interessantes que designaram dependentes químicos aleatoriamente para dois serviços: um que exigia a abstinência e outro que trabalhava com estratégias de RD (mudança de padrões de uso). No que exigia a abstinência, se o indivíduo recaísse ele era imediatamente desligado do serviço, enquanto no de RD, após a recaída, trabalhava-se nesta perspectiva de modificações dos padrões de consumo. Após cerca de 2 anos de acompanhamento dos dois grupos, o número de abstinentes era muito maior no segundo serviço onde não havia exigência de abstinência. Isto aconteceu porque o indivíduo não foi desligado ao recair, fez-se um trabalho de estratégias redução de danos e posteriormente ele conseguiu ficar abstinente. Parece um paradoxo que o serviço que não exigia a abstinência a alcançava em 70% dos casos, comparativamente aos 30% de sucesso daquele serviço que tinha a abstinência como pressuposto básico.

No PROAD, a gente já trabalhava desta maneira intuitivamente, mas estes estudos vieram corroborar nossa experiência.

COMUNIDADES TERAPÊUTICAS

QUIMERA    Vocês percebem alguma forma em que as comunidades terapêuticas podem servir como ferramenta legítima de cuidado?

N. Há muitos, no início dos anos 70, quando concluí o curso médico, trabalhei em um hospital que implantou uma proposta de ‘Comunidade Terapêutica’, inspirada nos trabalhos de Maxweell Jones7, na Inglaterra. Infelizmente, pouco tempo depois verificamos que “degenerava” em uma utilização inadequada dos pacientes gerando uma redução de custos, transformando os pacientes em ‘trabalhadores não remunerado’. Nada tinham de terapêutico as inúmeras atividades impostas. Mais recentemente, as denominadas Comunidades Terapêuticas (CTs), com raras e honrosas exceções, são espaços desprovidos de suporte médico-psico-social, muitos são verdadeiros ‘depósitos’ de pessoas, submetidas a rigores religiosos, desprovidos de liberdade, caracterizando verdadeiros cárceres privados, como pode constatar o CFP. Infelizmente, muitas famílias diante do sofrimento imposto pela doença de algum de seus membros, e na ausência de serviços públicos de qualidade, recorrem a estas CTs, “aliviando-se do fardo”. Neste sentido, minhas críticas vão muito na direção do Estado que não sustentou a proposta dos Centros de Atenção Psicossocial- CAPS. Ouve-se dizer, sobretudo pelos mal-intencionados, que os CAPS fracassaram, quando, na verdade, os CAPS foram fracassados!

“[…] no Brasil, ainda temos o agravante de toda esta questão de fanatismo religioso por trás, chegando a um nível de abusos e aberrações que não se justificam.”

D. Eu acho uma coisa abominável nossas CT, pela maneira como elas são geralmente constituídas aqui no Brasil.  E destaco que eu tenho um histórico pessoal favorável às CTs, já que meu primeiro trabalho como médico foi em uma CT que eu considero um modelo exemplar de intervenção, chamada Enfance, destinada a tratamento de crianças e adolescentes. Lá eu aprendi muita psiquiatria e muita psicodinâmica. Criada por um grupo de psicanalistas, entre os quais Oswaldo Di Loreto e Michael Rainer Schwarzchild, a CT Enfance não era específica para DQ, mas atendia adolescentes dependentes também. Mas o que vemos por aí não é esse modelo exemplar de CT, mas sim um modelo de inspiração religiosa, com forte influência dos modelos repressivos de hospital psiquiátrico manicomial, ancorado em paradigmas dos grupos de autoajuda. De certa forma visam sobretudo formatar o indivíduo a um determinado comportamento padrão previamente estabelecido.

Eu não acredito na eficácia deste modelo… conheci diversos serviços na Europa que tratam DQ, por exemplo na Itália, onde há diversas CT religiosas em moldes similares aos daqui. Primeiramente, destaco que a maioria das CTs não fizeram avaliação de eficácia da intervenção proposta e, entre as que fizeram, foi demonstrada baixa eficácia. Desta forma, não há fundamentação científica para você privilegiar uma intervenção com tais características. E, no Brasil, ainda temos o agravante de toda esta questão de fanatismo religioso por trás, chegando a um nível de abusos e aberrações que não se justificam. E, quando examinamos os relatórios do CRP sobre as CTs no Brasil, encontramos uma série de registros de maus tratos e até mesmo torturas. Isso é muito grave. Escuto diversos relatos de pacientes meus, sejam do PROAD (institucional) sejam de meu consultório privado, queixando-se destas situações de abuso em CTs. Vale lembrar que em muitas clínicas psiquiátricas também encontramos este fenômeno de intervenções desumanas e abusivas. 

Não sou contra os grupos de ajuda mútua, eles ajudam muitas pessoas. O que acho problemático é a pessoa ir somente a estes grupos e não ter nenhum profissional atento a suas possíveis comorbidades, aos fatores psicodinâmicos, a outras questões fundamentais que podem constituir inclusive a origem da dependência. Mas, como estratégia de manejo, para algumas pessoas servem ao seu propósito. Por outro lado, publiquei um artigo8 que avaliava eficácia de grupos de AA em uma amostra de 300 alcoólicos. Quem permaneceu no grupo de AA até o final da intervenção apresentou eficácia de cerca de 90%. No entanto, apenas 10% das pessoas que procuraram apenas esses grupos de autoajuda conseguiu aderir a eles. Ou seja, a eficácia verdadeira é de 9 em cada 100 pessoas e não 90 entre 100 como foi alegado incialmente. Questiono essa matemática que fala de alta eficácia para os grupos de ajuda mútua. Alta eficácia, sim, mas baixíssima aderência…

QUIMERA    A diferença de uma clínica que consegue trabalhar além da demanda que chega o paciente, essa demanda de parar de usar droga.

N. Parar de usar droga ou drogas, não é um problema. A questão é como conviver sem este ou aquele produto relevante na economia psíquica do consumidor. Mais ainda, muitos e muitas pessoas, sobretudo aquelas submetidas aos rigores da invisibilidade social, padecendo de sofrimentos inimagináveis, destituídas de tudo, exceto do presente e da ameaça constante de morte, encontram nos produtos psicoativos, sobretudo no álcool e, mais recentemente no crack, o alívio para permanecer vivo. Tenho dito que nossos serviços, aliás, todos nós, necessitamos ultrapassar a dimensão droga para alcançar, sempre, a dimensão humana. Já escrevi que as drogas não têm alma, não pensam, não amam, por isso não me interessam. Estou interessado nos humanos. É pelos humanos que devemos nos interessar.

D. Eu acho que isso é um grande desafio. E é claro que é mais trabalhoso operacionalizar um atendimento multidisciplinar individualizado do que colocar um esquema ao estilo “pacote pronto” (combo terapêutico).

Quando um dependente nos procura, não devemos estar interessados em rapidamente interromper esse uso de substâncias, a qualquer preço. Antes devemos entender por que ele usa, o que ele está procurando na droga. A maioria das pessoas que trabalha com drogas fala muito dos malefícios da droga e não falam dos benefícios da droga, não falam do prazer. E, na verdade, o que leva o indivíduo a usar a droga é a busca pelo prazer. Isto está ausente do discurso das pessoas. Os próprios pacientes já chegam com o discurso formatado que estavam bem na vida, chegou à droga que lhe foi oferecida e que isto o arruinou. E sabemos que isso não existe, pelo menos não desta forma. Ninguém se torna dependente porque usou droga inadvertidamente. Tornar-se dependente pressupõe a procura ativa de uma droga, seja em busca do prazer ou para o alívio de um sofrimento.

Assim, acho que é essencial desfocarmos da droga em um primeiro momento. A droga é um objeto inerte. A maior parte das pessoas usa a droga de uma forma controlada e retira dessa experiência muito prazer. Se algumas pessoas utilizam de forma descontrolada é por outras razões, motivos que estariam na gênese das dependências.

RELIGIÃO

QUIMERA    Como você percebe a influência da Religião/ espiritualidade no tratamento das adicções?

N. Vou responder a isto por um caminho que me serviu na clínica. Quando compreendi que nossa humanização se deu pelo reconhecimento da nossa finitude, reconhecendo a tridimensionalidade do tempo: futuro, presente e passado. E é curioso que essa história nos mostra que enquanto aprisionados no tempo presente nós imaginamos o futuro e ressignificamos o passado. Assim, reconhecemos nossa finitude e isso produz um imenso sofrimento.

“A Espiritualidade nasce como alternativa para nossa finitude. Uma alternativa que não resolve completamente… Há os enteógenos, produtos que podem colocar os humanos em contato com a transcendência, com o infinito, com o começo…”

Então, penso que nós humanos nos inauguramos na dimensão do sofrimento. Nos humanizamos no sofrimento. Mas se ficássemos aí, nós nos suicidaríamos todos, sendo o suicídio uma saída para essa monstruosidade: reconhecer-se mortal, finito. Os ‘recém-hominizados’ encontraram alternativas para “a dor fundamental”. A primeira parece ter sido um produto psicoativo; esses primeiros humanos devem ter encontrado uma ‘água fermentada’, que continha etanol e ao beberem dela vislumbraram algum alívio, uma janela para a alegria, pelo apaziguamento do sofrimento.

O caminho dos humanos se faz a partir da possibilidade de apaziguar o sofrimento.  Com o passar dos tempos apareceram outras alternativas, distintas dos psicoativos. Talvez, lá, bem mais adiante, Deus, eterno, sem princípio nem fim foi inventado e, por extensão, a alma, a Ele pertencente. Como consequência foi separado o corpo mortal da alma eterna. O sofrimento determinado pela finitude sofreu uma grande ruptura.  Penso que a memória transgeracional permitiu perpetuar isso.

A Espiritualidade nasce como alternativa para nossa finitude. Uma alternativa que não resolve completamente… Há os enteógenos, produtos que podem colocar os humanos em contato com a transcendência, com o infinito, com o começo…

QUIMERA    Como você entende o papel da Ibogaína, Ayahuasca, dos psicodélicos em geral e das comunidades relacionadas ao uso dessas substâncias do tratamento das adicções?

N. Nunca trabalhei com terapias psicodélicas; trabalhei com pessoas que me disseram fazerem uso do Santo Daime, e lá viverem experiências transformadoras. E quando me contam essas experiências, as compreendo e aceito como ‘experiências de verdade’, como um discurso de verdade. Não posso, nem tenho o direito de questionar o discurso de alguém que me diz que se viu no útero materno, se viu nascendo. Creio que cabe ao terapeuta acolher o relato e experimentar com quem o conta as significações e ressignificações possíveis. Se me pergunta sobre psicodélicos para ter uma resposta do tipo sou contra ou a favor, não ouvirá de mim.

Volto ao início. Acho que nós humanos somos constituídos e nos constituímos permanentemente na e por nossas histórias. Na história de cada um, de cada uma, está, de modo primordial, a relação com o produto psicoativo. Então estou interessado no que pode o humano contar a partir de sua memória, suas construções, suas fantasias.

D. Um colega médico da minha equipe, Eliseu Labigalini, começou a frequentar centros ayahuasqueiros aqui e no norte do país. E coletou histórias de pessoas que tinham sido alcoolistas a vida inteira, por décadas, e ao entrar nestes grupos religiosos ayahuasqueiros simplesmente abandonaram o uso de álcool, de um dia para o outro. Esse material foi aproveitado na tese de mestrado dele, descrevendo uma série de casos similares. Foi a partir daí que criamos uma linha de pesquisa com Ayahuasca no PROAD em 1995.

Retomando a pergunta original do meu orientando “o que acontece que algumas pessoas abandonam a droga ao entrar para esses grupos?”, eu diria que pode ser decorrência do efeito químico dos componentes da ayahuasca no cérebro, mas também pode ser consequência da forma como esse indivíduo é acolhido na comunidade religiosa.  Para observar o efeito dessa adesão a um grupo religioso, Luis F. Tofoli9 e eu desenhamos um estudo comparativo, observando dois grupos diferentes: em que um utilizaria a Ayahuasca em contexto ritualístico e outro no ambulatório do PROAD. Infelizmente, após a saída da Dilma Roussef da Presidência houve corte de verbas e esse estudo não foi realizado.

QUIMERA  Você acredita que existe efeito da alteração de consciência, mais ligada a experiência do sujeito com psicodélicos?

D. Eu acho que há um impacto sim.  Penso que o estado alterado de consciência pode ter um poder transformador na personalidade e por isso acho que é muito promissora a ideia das terapias psicodélicas, o uso de psicodélicos como ferramentas de acesso ao inconsciente.

QUIMERA Essa ideia do acesso ao inconsciente pelo psicodélico não tem algo de recurso a hipnose do Charcot, a busca do transe como recurso terapêutico?

D. Sim, porém a hipnose apresenta outros problemas, como a questão do quanto do processo não seria apenas fruto da sugestionabilidade do paciente. Isto sem mencionar os insucessos relatados por Freud ao usar a hipnose como forma de tratamento. Por isso tendo a ver a hipnose com muitas restrições.

Além disso, entendo que a questão dos psicodélicos é outro fenômeno. Se você analisar o discurso de alguém que passou por uma experiência psicodélica, constata que emerge um material inconsciente de uma riqueza incrível. Então penso que o que se passa na experiência psicodélica não é algo artificialmente fabricado, mas algo que vêm de dentro da pessoa, do seu Inconsciente.

Muitas vezes pode constituir um excelente recurso terapêutico, como por exemplo no Transtorno de Estresse Pós-traumático. Os estudos têm mostrado que veteranos de guerra que voltam traumatizados do Afeganistão frequentemente não conseguem estabelecer uma relação de empatia nem com o seu próprio terapeuta. Sob o efeito do MDMA (ecstasy), uma droga empatogênica, ele pode criar essa empatia e aproximação com o outro, indispensável para o processo psicoterápico. Realizamos algumas pesquisas neste sentido cujos resultados preliminares se mostraram promissores.

DROGAS, PESQUISA E ENSINO SUPERIOR NO BRASIL

QUIMERA    Em relação a posição de vocês na universidade: quais as barreiras institucionais que encontraram/encontram, como a recepção ao tema e ao posicionamento progressista evoluiu ao longo do tempo e houve alguma mudança após o golpe parlamentar? E em relação ao financiamento de projetos e pesquisas?

D. Sinto certa resistência ao tema dentro da comunidade cientifica, sobretudo entre os psiquiatras. Acredito que eles tendem a ser excessivamente reacionários, sobretudo aqui no Brasil.

A própria maneira como a psiquiatria vê hoje a psicanálise tende a ser de uma forma depreciativa, algo secundário, quase como uma leitura de ‘tarot’ ou um jogo de búzios. Muitos não reconhecem o seu valor.

Senti muito esta resistência, essa “caretice” dos psiquiatras. Quando faço um estudo mais polêmico, mais ousado, em geral sou muito aplaudido pelos colegas médicos e tendo a ser visto com reservas pelos colegas psiquiatras, apesar do meu rigor do ponto de vista metodológico.  Nunca publiquei nada de teor exclusivamente ideológico, estive sempre pautado no que observei em pesquisas objetivas e, se a pesquisa deu algo que eu não esperava, eu a publico do mesmo jeito.  Como mantenho esse rigor metodológico, ainda me respeitam apesar de minha ousadia, mas não tenho recebido muito apoio.    

“Acho que a visão da política atual envolve uma certa ’patologização da miséria’ e ‘psiquiatrização da pobreza’.”

Em relação ao SUS, acho lamentável que tenha havido um verdadeiro desmanche de um modelo assistencial que ofereça alternativas terapêuticas. Trabalhando diretamente na gestão do Fernando Haddad, eu, Mirmila Alves Musse10 e Thiago Calil11, do coletivo “É de Lei”, colaboramos na montagem de um programa que posteriormente se tornou o programa DBA (“De braços abertos”). Este projeto tinha coisas fantásticas: percebendo a situação de miséria imensa da população de rua e suas necessidades de comida, ter onde morar e uma atividade, propusemos que o prioritário seria fornecer alimentação, moradia e um trabalho a eles. Em um segundo momento era oferecido acesso a assistência médica, em ambulatório em saúde mental, onde se poderia abordar inclusive a questão da dependência de crack, quando presente.

Uma parcela considerável, diria que por volta de 25%, dos dependentes de crack pararam de usar a droga só por terem onde morar e o que comer. Não precisou nem uma consulta médica ou psicológica, ou seja, isso foi o suficiente para eles não quererem mais usar crack. Isso nos diz tanto da origem do problema…

Acho que a visão da política atual envolve uma certa ’patologização da miséria’ e ‘psiquiatrização da pobreza’. Erroneamente, nos dá a entender que o indivíduo está naquela situação miserável de vida em decorrência do seu uso de ‘crack’.  E assim, defendem a internação, as vezes involuntária, em uma clínica psiquiátrica, como se apenas isto resolvesse o problema. Não se trata disso, pois geralmente estas pessoas acabam recorrendo ao uso de crack para suportar sua condição miserável de exclusão social (e não o oposto).  Esta que foi a grande ‘sacada’ do programa DBA implantado pelo prefeito Haddad.

Internacionalmente existem estudos comparando internação compulsória, internação voluntária, tratamento ambulatorial, grupos de ajuda mútua, inclusive avaliando custo-benefício. O Canadá é um bom exemplo neste campo, já que a medicina lá é estatal (como o SUS), não havendo empresários investindo em clínicas ou hospitais objetivando o lucro. Como está tudo na responsabilidade do governo canadense, procura-se aquilo que seja mais eficaz e menos custoso. Um estudo canadense mostra que com o que se gasta para internar um dependente químico em uma clínica, pode-se tratar 50 pacientes em regime ambulatorial. E a eficácia do tratamento ambulatorial é semelhante à das internações voluntárias e maior que a de internações involuntárias. É partir destes dados de eficácia e custo-benefício que eles organizam o modelo de tratamento. No Brasil, desde o governo Dilma, criou-se uma linha de financiamento independente para CTs que chega a valores estratosféricos, de um dinheiro que deveria estar na Saúde. E isto se mantem apesar de todas as avaliações de baixa eficácia (constatada nas comunidades fora do Brasil). E isto se mantém porque há muitos interesses financeiros por trás…

Entendo que esse desmonte do SUS também vai pela mesma linha. No Canadá, França, Inglaterra, você tem modelos de tratamento para DQ com resultados melhores.  E o que mais se assemelha a estes modelos é o sistema de CAPS-AD centralizando uma rede assistencial, obtendo-se maior eficácia. Mas vocês vão dizer que os CAPS não são todos assim… Sim, mas não são porque as equipes dos CAPS não são adequadamente treinadas, os profissionais vêm de uma formação absolutamente deturpada, biologizante, não multidisciplinar. Isto é uma enorme barreira ao bom funcionamento de um CAPS. Um CAPS com uma equipe bem formada é a melhor resposta para um dependente químico.

E temos que parar com esta ideia de internação involuntária como estratégia de saúde pública dirigida a dependentes. É um recurso de exceção adotado na psiquiatria, apenas para pacientes psicóticos ou suicidas. Mas há muita gente lucrando com esse desmonte do SUS, seja através de comunidades terapêuticas ou de clínicas psiquiátricas. Falo o mesmo da legalização das drogas. A legalização das drogas é o terror para dois grupos: os traficantes que receberão um golpe em sua receita, e os donos de clínica de reabilitação. Muitas clínicas psiquiátricas se mantêm graças ao enorme afluxo de DQs que são internados e reinternados indefinidamente. Estas clínicas seriam muito prejudicadas pela legalização das drogas, já que grande parte dos internados são apenas usuários de drogas, nem sempre dependentes. Certamente os dirigentes dessas clínicas não tem interesse em redução de danos, em tratamentos ambulatoriais e visões multidisciplinares, pois isso ameaça seus ganhos financeiros.

QUIMERA    Pode destrinchar mais essa relação entre o proibicionismo e as clínicas de recuperação?

D. Podemos ver esse fenômeno de várias maneiras. Recebi uma vez um casal que havia internado o filho adolescente de 16 anos em um hospital psiquiátrico porque ele era (supostamente) um drogado. Eu fui vê-lo, e ele me contou que usava maconha a cada 15 dias. Investigando a história familiar com ele e com os pais, foi relatado que o seu irmão, um ano mais velho, chegava em casa bêbado cerca de 3 vezes por semana e que os pais entendiam isso como algo normal da adolescência, que este filho estava ‘se sociabilizando através do álcool’, que é comum ‘exagerar na bebida’ nesta idade, que ele está ‘aprendendo a usar álcool’. Bom, eles identificaram errado quem apresentava um uso problemático de drogas em casa. Esse menino que usa um cigarro de maconha a cada 2 semanas não é um dependente químico e não deveria estar em um hospital psiquiátrico.

O que esse casal está fazendo, não o faz por maldade. Eles querem o melhor para seus filhos. Eles fazem isto porque nossa sociedade é formatada deste jeito. A maioria das pessoas acha que a melhor modalidade de tratamento para um DQ é a internação. As pessoas não sabem que a taxa de sucesso das internações é baixíssima, que a recaída é a regra e não uma excepcionalidade para quem foi internado. E isto se mantém porque existe muito interesse financeiro por detrás.

QUIMERA    Existem métodos exigidos nos periódicos para publicação de artigos que certificam eficácia que não corresponde a epistemologia da psicanálise e da psicodinâmica.

D. Claro, existe sim uma questão epistemológica. Isso vale para outros tipos de estudo. Se ao organizar um estudo para avaliar a eficácia de uma intervenção para DQ se considerar como único desfecho valorizado a abstinência, ficamos muito limitados. Um indivíduo que usava dois litros de whisky por dia e agora ainda bebe uma lata de cerveja, ele será considerado um fracasso terapêutico, ainda que o impacto destes dois tipos de uso de álcool sobre sua vida seja completamente diferente. Esse ganho não costuma ser valorizado neste modelo de ciência positivista tradicional.

Quando tenho a oportunidade sempre gosto de lembrar que devíamos estar menos preocupados com o problema da droga e olhar o outro lado: o que a droga traz de bom para aquele indivíduo. Ver o que as pessoas que não têm problemas com as drogas estão fazendo com elas, muitas as utilizam de forma criativa. Nesse uso ocasional há uma busca de um estado alterado de consciência que para essa pessoa oferece um ganho importante, e isto precisa ser valorizado de alguma forma. Entendermos como funciona a possibilidade de se usar uma substância de forma recreacional poderá nos ajudar a compreender o que não deu certo com os dependentes.

“A Medicina não tem nenhuma disposição para olhar estas coisas ditas marginais. Não se estuda filosofia, sociologia, antropologia…”

QUIMERA    Há uma carência enorme de informação sobre drogas nas universidades, ainda mais com o movimento autoritário e retrógrado do governo atual. Então gostaria de saber o que pensa sobre a RD como um campo a ser ministrado abertamente nas universidades, quais são as barreiras e para além as barreiras o que podemos fazer para que dentro da academia não formemos psicólogos ou outros profissionais que não saibam o que é uma cocaína, quais são os processos em  ele pode ter para pensar na lida e no manejo disso, para além da abstinência, que carrega essa conotação a doença da pessoa que se perdeu.

N. Eis aí uma das sérias responsabilidades da ABRAMD. A Universidade não vai se transformar de dentro para fora e não será aqui que faremos a exegese das universidades.

Eu não vejo a academia interessada em discutir esse fenômeno marginal que trata de bandido, de traficante, de morte. Lamentavelmente a universidade não trata disso na dimensão que deveria. As faculdades de medicina estão voltadas, quase que exclusivamente, para as tecnologias pesadas, robôs, medicamentos, telemedicina, cirurgias de diversas naturezas.

Acredito que isso é geral, não só do Brasil; falo da medicina por ser médico. A Medicina não tem nenhuma disposição para olhar estas coisas ditas marginais. Não se estuda filosofia, sociologia, antropologia… A medicina pensa largo a tecnologia e estreito a coisa humana.

Então a ABRAMD, e tantas outras associações, devem essa responsabilidade primária e primordial: provocar a formação dos técnicos, médicos, psicólogos, assistentes sociais, e tantos outros trabalhadores no campo da saúde. Lamento que nossos congressos se tornaram, cada vez mais, espaços de trocas exclusivamente técnicas.  A ABRAMD é uma organização científica capaz de provocar transformações de fora para dentro da academia. Se olharmos para a ABP, o que veremos? De que tratam em seus atuais congressos? Pelo que leio, ensinam a usar medicamentos, submetidos às diretivas e patrocínios da indústria de medicamentos. São congressos voltados para o corpo, que não alcançam a alma. Aliás, ocorre-me que os CRs, e o CFM, lidam com o erro, em lugar de cuidar da formação. “Cuidar, mesmo sem curar”. Prevenir, antes de errar. Os conselhos de medicina se interessam pelo erro e punição, menos pela formação e prevenção.

Então, penso que a saída está em um movimento das associações, na direção de formações humanistas, onde prevaleça, para lembrar Edgard Morin, a Poesia-alegria, e a Prosa-rotinas de todo dia.

BRASIL: IMPASSES E PERSPECTIVAS

QUIMERA    Qual a perspectiva atual em relação as políticas de drogas no contexto nacional e internacional?

D. Aqui no Brasil estamos na contramão da história. Estamos cada vez mais reacionários, defendendo paradigmas que estão sendo abandonados pelos países mais desenvolvidos.

Quando alguém vem me perguntar o que acho a respeito da legalização das drogas, me posiciono francamente a favor. Porque com a legalização retiramos o controle desse mercado da mão do traficante e o colocamos sob a determinação do Estado.

O traficante não está preocupado se quem está consumindo a droga é uma criança ou um adolescente. Ele não está preocupado se há contaminantes, o controle de qualidade do produto vendido é baixíssimo. Portanto, o dano relacionado ao uso de drogas é muito maior se o traficante estiver ‘na jogada’. A legalização não significa ‘liberar as drogas’, significa o Estado assumir a responsabilidade da produção, distribuição e regulação desse mercado. Isso é um fator de proteção.

As pessoas se rebelam: “aí vai ser um liberou geral!”   Não! Acho que hoje é um “liberou geral”. Moramos em um país, e isso não é exclusividade do Brasil, que se eu quiser uma droga, eu ligo para um delivery e daqui a 15 minutos surge um motoqueiro na minha porta com o que eu quiser. Isso não é “liberou geral”? Claro que é.

Agora se houvesse uma regulação estatal haveria regras para como, quanto e onde comprar. Teríamos ainda a possibilidade de fazer prevenção. Pois há uma grande dificuldade em se fazer prevenção do uso indevido de uma droga ilícita. Os jovens nem contam para os pais que fazem uso por medo decorrente do peso do discurso proibicionista que permeia nossa sociedade. Em se tratando de uma droga legalizada os jovens falariam sobre sua curiosidade a respeito das drogas e os pais poderiam proibir, alertar, informar. Ou seja, haveria mais acesso à informação.

INTERCAMBIANTES

QUIMERA    Vocês podem falar um pouco do surgimento do Intercambiantes e qual o papel deste coletivo em relação à ABRAMD?

N. Eu diria que essas duas associações são complementares no seguinte sentido: entendo que a ABRAMD é uma associação produtora de ciência, com pesquisadores, organiza congressos, promove encontros que são, a meu ver, fundamentais. E, nesse sentido, entendo que a maioria, se não todos, que compõe o Coletivo Intercambiantes é vinculado à ABRAMD. Mas, entendo que cada uma tem características que não se encontram na outra.

Vou dar um exemplo. A característica mais forte do Intercambiantes é a comunicação. Comunicação do saber, dos trabalhos, dos eventos, das dificuldades… Diria que nestes quatro anos o que nós fizemos foi fazer laços com pessoas pelo Brasil. Aliás, a condição para pertencer ao Intercambiantes – e isso vai caracterizar uma diferença com a ABRAMD – é que a pessoa seja indicada por outra, Intercambiante, caracterizando uma rede de laços afetivos. Além, claro, do interesse pelos vulnerados e vulneradas, particularmente em situação de rua, que o Professor Mehry12 chamou de ‘viventes de rua’, além do interesse pelos psicoativos e seus usos, tendo como norte a Bioética e os Direitos Humanos.

A ABRAMD tem características mais tradicionais enquanto associação: diretoria eleita, anuidade, regularidade de congressos e jornadas, uma cobrança de anuidade. O Coletivo Intercambiantes não tem diretoria, é o mais horizontal possível. Comunica-se, permanentemente pelo WhatsApp, agregando pessoas de todas as Regiões do Brasil. Isto levou à organização de Núcleos Locais, também sem diretoria, livres para o desenvolvimento de trabalhos de acordo com os interesses pessoais e locais. Em algumas cidades as atividades são mais intensas, em outras nem tanto, mas todos podem, permanentemente, ‘saber da vida do outro’ e opinar. Todos e todas Intercambiantes desenvolvem atividades nos mais diversos campos do conhecimento, quer na academia, na clínica, administração de saúde, etc., aportando para o Coletivo seus olhares e saberes. Não há hegemonia, “um saber superior”. Há compartilhamento de saberes.

A minha ideia de criar este coletivo surgiu durante o trabalho que desenvolvi para a SENAD, parte da proposta do Projeto REDES, na gestão de Leon Garcia. Fui convidado a visitar cidades onde o Projeto estava implantado. Pouco a pouco senti que uma grande ameaça política pairava sobre o Brasil, com a possibilidade de desorganização do REDES. Decidi anotar os telefones de pessoas conhecidas e novas, por onde passava. Um ano depois, como previ, tudo desabou! Tudo que havia sido construído ao longo dos Governos Lula e Dilma, foi abandonado e/ou desmontado. Decidi, em São João Del Rey, Minas, durante um evento científico, propor a um pequeno grupo de amigos a criação do coletivo ‘para manter nossas almas próximas’, e resistir às tempestades que, certamente viriam. Naquele momento concordamos com três princípios norteadores: o pertencimento ao Coletivo se faria através de laços afetivos; todos poderiam permanecer, sair e retornar de acordo com suas possibilidades e, mais importante, nossas atividades seriam orientadas de modo inquestionável, pela Bioética enquanto campo de reflexão sobre a ética da vida e as Declarações Universais de Direitos Humanos e de Bioética. Como mencionei, não haveria diretoria nacional nem local. Acordamos três nomes para administrar o WhatsApp, um de Minas, um da Bahia e outro de Pernambuco.   

Em 2017, realizamos o 1º Encontro Intercambiantes, em Salvador. Neste evento trabalhamos em torno de nossa identidade e nos perguntamos o que queríamos e como faríamos. Ainda estamos pensando nestas questões e reconstruindo, permanentemente, nossas respostas.

E por que este nome? Em razão de nossas parcerias anteriores com a Associación Civil Intercambios, da Argentina. Há mais de vinte anos um grupo de trabalhadores e trabalhadoras desenvolvem em Buenos Ayres, intensa atividade científica e política, voltadas para o cuidado de vulnerados e vulnerada e dos produtos psicoativos. Então pensamos: quem faz intercâmbios? A resposta: intercambiantes. Foi assim. Somos hermanos, envolvendo, agora, colegas do Uruguai.

QUIMERA    Como podemos pensar a relação e colaboração destes dois grandes espaços (Intercambiantes e ABRAMD) que discutem o campo AD para 2021, que ações possíveis que estes grupos e outros do campo AD podem realizar?

D. São vários os caminhos possíveis. Acredito que quanto mais diversificarmos os olhares e saberes, mais rico será o campo. Teremos mais material para entendermos o fenômeno do uso de drogas, do abuso, de dependência, do uso terapêutico. Estes múltiplos saberes beneficiarão muito os avanços nesta área.

Muito mais importante do que ficarmos tentando trabalhar com determinados paradigmas fechados é nos deixarmos contaminar com a visão do outro, sermos permeável a diversas ideias.


1 Jandira Masur, Psicóloga formada pela USP e doutora em psicofarmacologia pela UNIFESP, professora de graduação e pós-graduação na Escola Paulista de Medicina, tornando-se professora titular desta instituição.

2 Elisaldo Luiz de Araújo Carlini, Professor emérito da Escola Paulista de Medicina, pioneiro mundial na pesquisa com Cannabis, falecido em 16/09/2020

3 Evaldo Melo de Oliveira, psiquiatra e psicanalista pernambucano, foi secretário de saúde de Recife e consultor do Ministério da Saúde e SENAD, além de presidente da ABEAD

4 Silvia Brasiliano, Psícologa, Doutora em Ciências pela USP, fundadora da ABRAMD, membra da ABRAMD Clínica e coordenadora do PROMUD- IPq/FMUSP

5 Maria Lucia Formigoni, Biomédica, Livre Docente membra do Departamento de Psicobiologia da UNIFESP

6 James C Anthony, professor de epidemiologia e bioestatística da Michigan State University, um dos artigos em questão é Wagner, F. A., & Anthony, J. C. (2002). From first drug use to drug dependence: Developmental periods of risk for dependence upon marijuana, cocaine, and alcohol. Neuropsychopharmacology26(4), 479-488.

7 Maxwell Jones, psiquiatra sul-africano, considerado criador do conceito de Comunidade Terapêutica

8 Terra, M. B., Barros, H. M. T., Stein, A. T., Figueira, I., Athayde, L. D., Palermo, L. H., … Silveira, D. X. da. (2007). Predictors of engagement in the Alcoholics Anonymous group or to psychotherapy among Brazilian alcoholics. European Archives of Psychiatry and Clinical Neuroscience, 257(4), 237–244. doi:10.1007/s00406-007-0719-1

9 Luis Fernando Tofoli, Professor do departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP

10 Mirmila Alves Musse, psicóloga, mestre em Psicanálise pela Université Paris VIII, participou do Centro de Convivência É de Lei e foi supervisora técnica do progama De Braços Abertos.

11 Thiago Godoi Calil da Costa, psicólogo, Mestre em Ambiente, Saúde e Sustentabiliade pela Faculdade de Saúde Pública – USP, parte do Centro de Convivênia É de Lei e Observatório Vozes da Rua

12 Emerson Elias Mehry, Médico sanitarista e pesquisador brasileiro, Mestre em Medicina Preventiva pela USP e Doutor em Saúde Coletiva pela UNCAMP, participou da fundação na década de 1970 do Movimento pela Reforma Sanitária, de grande importância para criação do SUS.

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