Cenas Clínicas

Fonte FreePIk
Por Maria de Lurdes de Souza Zemel

MIKA LINS – atriz e diretora de teatro¹

Define CENA como: 

“Uma situação dramática previamente construída por improviso ou não, envolvendo um ou mais personagens.”

BARBARA HELIODORA – crítica de teatro, escritora e tradutora brasileira²

Diz que:

CENA é a transformação do improviso no ato.”

WILLIAN SHAKESPEARE – dramaturgo e ator inglês. Considerado o mais influente dramaturgo do mundo³

Quando a boca não consegue

Dizer o que o coração sente, 

O melhor é deixar a boca 

Sentir o que o coração diz.

Pretendo com esse trabalho apresentar algumas cenas do meu trabalho clínico ao longo dos anos. Foram cenas impactantes para mim e definidoras de aspectos da minha trajetória. Quero discuti-las com um pouco de teoria, mas principalmente com a experiência clínica com outros profissionais. Claro que vou pinçar de cada uma delas um pequeno aspecto.

Bernard Doray citado no livro de Golse e Amy (2020) diz:

Chegará o dia em que saberemos transplantar tudo, os fígados, os corações, os rins, os pulmões…mas há algo que, sem dúvida, não saberemos jamais fazer, e talvez felizmente, são os transplantes de história…

(Golse & Amy, 2020, p.23)

Ele se referia à história das crianças, aquela que a criança constrói com sua mãe. Eu empresto dele esse pensamento para dizer que assim se passa também na nossa história com nossos pacientes.

Conto aqui através das cenas vividas minhas histórias com meus pacientes e quero seguir um caminho da comunicação. Acredito que é pela comunicação através do corpo, do silêncio, da palavra e do ato que todos nós recebemos de nossos pais e do nosso entorno os elementos para a formação da nossa identidade. É essa comunicação que voltamos para buscar na nossa análise e esperamos que nosso analista possa estabelecê-la conosco.

ANOS 70

Ainda não me formei em psicologia (tenho 20 anos) e fui fazer um estágio num “manicômio”. Lá todos eram números, os eletrochoques eram dados com os pacientes perfilados. Decidi deixar a clínica!

Pela insistência de um professor de psiquiatria permaneci lá e fiz, junto com um grupo de jovens colegas, um trabalho que hoje considero muito interessante: ensinei aos pacientes a sentarem no vaso sanitário, a comerem com a colher e não com a mão, a se chamarem pelo nome…

Ao mesmo tempo recebi um convite para trabalhar na clínica deste professor. Era uma clínica nova e que pretendia ser uma verdadeira comunidade terapêutica. Agora já estou formada, tenho 22 anos e não aceito um convite para ir para Itália para trabalhar com o Basaglia – eu precisava me sustentar.

Vou definir o que chamávamos de comunidade terapêutica:

“De fato pensávamos que todos éramos seres humanos e que alguns de nós adoecíamos e outros de nós podiam ajudar.”

Convivíamos com os pacientes em todas as atividades, não tínhamos muros, durante os 7 anos que trabalhei lá só vi uma aplicação de eletroconvulsoterapia, em um caso de depressão muito grave. Eu, uma psicóloga, supervisionava o trabalho dos médicos residentes e tinha muitos dos meus trabalhos supervisionados pelo atendente chefe. Discutíamos nossos procedimentos também com os pacientes, respeitávamos tanto os particulares, quanto os do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que dividiam os mesmos quartos. De fato pensávamos que todos éramos seres humanos e que alguns de nós adoecíamos e outros de nós podiam ajudar.

Um dia isso não se sustentou e eu fui embora… não suportei a perversão que se estabeleceu.

Fazíamos análises pessoais porque sabíamos que tínhamos inconsciente. Ao contrário do que nos diz Amarante (2007) no seu livro “Saúde Mental e Atenção Psicossocial” . Lá Amarante critica os psiquiatras que foram fazer psicanálise e se tornaram psicanalistas entendendo que o objetivo deles era só ganhar dinheiro. Eu fui fazer psicoterapia analítica de grupo porque era o que meu dinheiro permitia e fui fazer essa formação porque já me interessava muito pelo trabalho grupal.

1ª CENA

Dentro do hospital tínhamos um consultório em que atendíamos pacientes particulares da comunidade – naquele dia eu estava com meus horários livres.

Luzia gritava continuadamente durante o horário do repouso. Já estava muito medicada e os atendentes muito cansados. Me ofereci para ficar com Luzia naquele repouso. Fomos para minha sala: eu, Luzia e um residente de psiquiatria. Luzia sentou no meu divã, eu me sentei ao lado dela e o residente sentou-se no chão em frente a nós duas.

Luzia gritava alto : AI… AI… AI…

Eu tentei falar: Onde dói? Quer me mostrar onde dói?

Ela gritava sem parar.

Eu decidi ficar quieta, sem saber o que fazer.

Ela deitou-se nas minhas pernas e continuou: AI… AI…

Eu fiquei parada…

Ela foi gemendo e entrando no meio das minhas pernas, abrindo minhas pernas e se aninhando como um bebê. Eu olhava assustada para o residente sentado na minha frente, mas a deixava continuar. Aquilo era assustador e muito afetivo.

Luzia parou de gritar: dormira!

Aos poucos a porta da minha sala foi se abrindo e os outros profissionais vieram ver o que tinha acontecido. Luzia dormiu e nós ficamos alí cuidando dela no quente das minhas pernas e do meu coração. Luzia dormiu e nós ficamos ali cuidando do sono dela.

Até hoje tenho clara estas imagens na minha mente! Acho que minha juventude me ajudou muito. 

Minhas pernas e meu coração fizeram uma contenção que foi pedida por ela e, ao mesmo tempo, eu estava contida pelas pernas e pelo coração da instituição. Eu não estava sozinha! Sozinha eu não conseguiria!

(…)é de considerável importância prática que se seja capaz de constatar que o conceito e o conhecimento que um homem tem de seu ser podem apresentar muitas diferenças do conceito ou conhecimento que outro tem de seu ser. Nesses casos, torna-se necessário nos orientarmos como pessoa, no esquema de coisas do outro, ao invés de ver o outro apenas como um objeto de nosso próprio mundo, isto é, dentro do nosso sistema total de referências. Devemos ser capazes dessa reorientação, sem prejulgar quem está certo e quem está errado. A capacidade de assim proceder é um pré-requisito absoluto e evidente ao trabalho com os psicóticos.

(Laing, 1963, p.27) 

A capacidade de captar afeto de um outro precede a aquisição da linguagem

(MacDougal,1991, p.100)
2ª CENA

Era a mesma época e a mesma clínica psiquiátrica. Era uma época de muita repressão política e lutávamos contra o sistema fazendo uma antipsiquiatria. Estudávamos as teorias de Laing e Cooper que estavam propondo este trabalho na Inglaterra. Tínhamos a nossa força e a nossa ousadia de jovens!

Estava acontecendo uma festa junina na clínica e, nestas ocasiões,  nós participávamos, dançávamos, cantávamos, comíamos, todos juntos: pacientes e técnicos!

Em meio a isso, Luiz, um interno, foi para o seu quarto e cortou sua garganta!

O nosso clínico geral, muito experiente como qualquer clínico de cidade do interior, costurou a garganta dele e com isso salvou sua vida.

Fui atender ao Luiz junto com seu pai e uma residente. Luiz me dizia que ali tinha uma bomba que pulsava e ele queria tirar aquela bomba, não suportava mais aquele barulho.  O pai, um senhor muito idoso, chorava copiosamente.

Eu intuí que alguma coisa errada se passava naquela relação e com a ousadia de uma jovem perguntei a Luiz se ele queria saber alguma coisa de seu pai.

Luiz perguntou: “Você é meu pai?”

Eu, a residente e o pai quase infartamos, os três. O pai chorando muito disse que não, que Luiz era adotado. Aí, dessa forma desastrada, começou um novo caminho na estrada do Luiz.

Mantive contato com ele por muitos anos (ele era de uma pequena cidade de Minas). Através de cartões de Natal, ele me informava o que plantava no seu sítio, que namorava…casava…tinha filhos…o pai faleceu e ele seguia com sua vida.

Há um outro aspecto do ser do homem que é crucial em psicoterapia, comparado com outros tratamentos. É o de que todo e qualquer homem está, ao mesmo tempo isolado e relacionado com seu próximo

(Laing,1963, p.27)

(…)Enquanto formos sãos e ele louco, assim será. Mas a compreensão para alcançá-lo e entendê-lo, enquanto nos mantemos dentro de nosso próprio mundo e o julgamos por nossas categorias, aquém das quais inevitavelmente permanece, não é o que o esquizofrênico quer ou precisa. Temos de reconhecer, sempre sua separação ou diversidade, seu isolamento, solidão e desespero

(Laing,1963, p. 42)

…ressalto que o trabalho analítico precisa estar ao mesmo tempo amparado tanto no desenvolvimento quanto na psicopatologia  e, consequentemente, precisa levar em conta a capacidade de introjeção do paciente”  

(Alvarez, 2012 ,p.174)

        Os pacientes chamados “psicóticos’ exigem de nós uma abordagem especial e uma disposição pessoal intensa para receber uma transferência prematura e dependente, com uso maciço de identificações projetivas. 

 Citando Bion, que me parece ter sido o teórico/clínico que melhor deu conta desta questão:

Eu não penso, ao menos ao que se refere aos pacientes encontrados na prática analítica, que o ego esteja totalmente afastado da realidade. Eu diria que seu contato com a realidade está disfarçado pela preponderância, na mente e no comportamento, de uma fantasia onipotente dirigida a destruir tanto a realidade como a percepção dela. Já que o contato com a realidade nunca se encontra totalmente perdido, os fenômenos que costumam associar com as neuroses nunca estão ausentes e servem para complicar a análise, surgindo, quando algum progresso já foi conseguido, misturado com algum material psicótico. Minha segunda modificação é que a fuga da realidade é uma ilusão, não um fato, e surge pelo emprego da identificação projetiva contra o aparelho perceptivo descrito por Freud(…) o paciente age como se seu aparelho perceptivo pudesse ser cindido em fragmentos diminutos e projetados para dentro de seus objetos.

(Bion apud Rosenfeld, 1994, p.34)

O, jogue fora a pior parte 

E viva a mais pura

Com a outra metade

(Shakeaspeare, Hamlet, Ato III, Cena 4 apud Rosenfeld, 1994, p.31)
3ª. CENA

Agora, já nos anos 80 e em atendimento no meu consultório particular.

Jorge vem até mim porque se injeta cocaína. Mas seu uso tem uma característica interessante: Jorge é fazendeiro de produção de leite. No dia da pesagem do leite (isso acontece uma vez por mês e é necessário para se medir a produção das vacas), Jorge fica sozinho na fazenda para acompanhar esse processo. Então faz o ritual de se injetar.

É um ritual doloroso, acompanhado de muita perseguição e perigo porque todos os barulhos são ameaçadores e ele fica acompanhado do seu revólver. 

Esse processo dura três dias. Daí volta para casa da família e não se droga durante todo o mês. A mãe de Jorge sabe do seu uso, vai até a fazenda e organiza as seringas para ele.

Jorge vem com regularidade na análise comigo e sempre me diz que gostaria de vir “usado”. Tenho um procedimento de chamar meus pacientes e eles só entrarem na minha sala junto comigo. Eles me esperam numa sala de espera. Num determinado dia entro na sala e Jorge já está lá, andando de um lado pro outro, olhos esbugalhados, suado, tenso… Eu me assusto e logo penso: ele usou no carro e entrou aqui.

Pergunto se ele quer sentar e ele diz que não. Veio com o motorista, só para me contar que o irmão mais novo sofrera um acidente numa reta, em frente à casa da fazenda e morreu!

Chora copiosamente, me abraça e vai embora.

Eu fico com uma tristeza muito grande por ter me precipitado e “julgado” Jorge.

4ª CENA

O pai de José marca um horário para o filho. José tem 20 anos. O pai acha que José está usando drogas, pois percebe-o estranho ultimamente. 

Marco um horário para ver José. Abro a porta e vejo um homem que é um “armário”, como dizemos popularmente. Ele segura o batente da porta com os braços e as pernas abertas. Ocupa todo o espaço da porta! Tem cabelos e barba longos e pretos. Usa uma camiseta regata e um shorts bem curto e tem todo o corpo tatuado. Passo os olhos por ele e só vejo armas e caveiras.

Me assusto com a figura, mas os olhos estão tranquilos. Fico com medo, mas peço que ele entre. Ele senta e pergunto o que ele espera de mim. José começa falar e levo outro susto: ele parece um carneirinho, é doce, é um menino desprotegido. Veio porque o pai mandou. Não usa drogas, fumou maconha algumas vezes, vai bem na faculdade mas não está satisfeito com a vida. As tatuagens, foi fazendo. Não sabe o sentido de muitas delas, fomos discutindo isso ao longo dos tempos.

Novamente aí meu preconceito apareceu…

Roudinesco, no seu Dicionário de Psicanálise, define contratransferência como: “conjunto de manifestações do inconsciente do analista relacionadas com as da transferência de seu paciente” (Roudinesco,1997 p. 133).

No mesmo Dicionário, citando Paula Heiman e Margaret Little, mostra que elas redefinem o conceito como “o conjunto das reações e sentimentos que o analista experimenta em relação a seu paciente” (Roudinesco,1997 p. 134).

MacDougal (1991) no seu capítulo “A Contratransferência e a comunicação Primitiva” nos diz:

A capacidade de captar o afeto de um outro precede a aquisição da linguagem. Nada resta a criança senão reagir a experiencia afetiva da mãe, ao passo que a capacidade de captar os afetos do filho e de lhes dar uma resposta depende do desejo de dar um sentido aos gritos e gestos do bebê. Afora o que representa para a mãe, a criança não possui existência psíquica possível: fonte de vida para o filho, ela é também seu aparelho de pensar

(MacDougal,1991 p.100)

Jorge e José eram adultos, mas carregavam essas falhas dentro de si.

Preenchiam as falhas com as drogas ou as tatuagens,  precisavam dar sentido para suas emoções.

Continuando com MacDougal:

(…)isso ocorre com frequência pelo fato do paciente utilizar a linguagem como um ato; à sua e a nossa revelia, ele está mostrando através da palavra, e não graças a ela ou ao seu sentido latente, os destroços de uma experiência catastrófica vivida precocemente em sua vida de relação, em uma época em que era ainda incapaz de conter ou elaborar psiquicamente o que sentia.

(MacDougal,1991 p.100)

Nos diz Alvarez:

A maneira pela qual o terapeuta verbaliza e exprime sua compreensão e processa seus sentimentos contratransferenciais, possivelmente muito perturbadores, pode facilitar ou impedir os movimentos em direção a simbolização .(…) Atualmente compreendemos, a partir de Bion, dos teóricos do desenvolvimento neurocientistas, que a capacidade de pensar e, portanto, de assimilar interpretações, tanto envolve funções cognitivas quanto emocionais (…)quando o distúrbio é grave, pode interferir no ego já desenvolvido e na função simbólica

(Alvarez, 2012, p. 175).

Jorge e José transportaram para dentro de mim o temor que traziam no próprio corpo.

Jorge me trouxe a morte, mas não era a morte da seringa injetada na veia, era a morte do irmão e a confiança de que eu poderia viver aquilo com ele.

José me assustou com seu corpo ocupando todo o espaço da minha porta, mas com a doçura da sua voz mostrou o quanto era desconhecido aquele corpo que inicialmente me assustou tanto, como assustava a ele próprio.

“Tanto Jorge quanto José me ajudaram a viver, por eles, no meu corpo, o desconhecido e o temor que eu iria enfrentar. Meu corpo temeu o desconhecido e o assustador trazido. Suportei com eles e em seguida vivi, também com eles, novas experiências de terror e de afeto.”

Tanto Jorge quanto José me ajudaram a viver, por eles, no meu corpo, o desconhecido e o temor que eu iria enfrentar. Meu corpo temeu o desconhecido e o assustador trazido. Suportei com eles e em seguida vivi, também com eles, novas experiências de terror e de afeto.

5ª CENA

Recebo uma família para atendimento. Eles são mórmons e acreditam que o mundo acabará, mas eles sobreviverão. Construíram uma grande casa onde existe um bunker que os protegerá. Conto isso para mostrar que existe uma grande preocupação com a religião e supostamente com a família ou com os grupos a que pertencem.

Vieram até mim porque um filho esteve internado no Rio Grande do Sul (para que a comunidade não tomasse conhecimento disso).

Joaquim tinha 20 anos quando esteve comigo e se internou porque entrou em síndrome de abstinência. Joaquim usou todos os tipos de drogas. Chegou a comer cola de sapateiro e a perder os dentes, mas a família não percebia o que se passava. Um dia, por iniciativa própria  ( ”Eu não aguentava mais”) parou com tudo e, aí, entrou em síndrome de abstinência.  Só então a família percebeu que algo se passava e o internou.

Joaquim conta tudo o que houve com ele com o mesmo tom na voz. Parece até ter algum problema cognitivo, além do embotamento afetivo.

Traz a namorada para as sessões de família e fica “grudado” nela – quase sentam juntos na mesma cadeira. A mãe é obesa, o pai sempre rindo e contando tudo como um fato que se passou com outra pessoa, além de uma irmã que me parece ser a mais sintonizada. No processo de tratamento essa irmã pede uma indicação e vai fazer uma terapia grupal.

A negação é preciosa para nos proteger de grandes dores!

Anne Alvarez (2012) nos diz:

Mas, muito antes de certos pacientes processarem seu ódio e encontrarem sua capacidade de amor, eles podem precisar desenvolver a capacidade de se interessar por um objeto com certa substancialidade e vida. Algo ou alguém  precisa ter importância. É um trabalho no próprio alicerce da possibilidade de relação humana, ou seja, ainda que tenhamos que prestar atenção a sua falta de interesse, muitas vezes temos que encontrar maneiras de atrair sua atenção e, então, tentar mantê-la. Uma vez que consiga isso, o trabalho pode se mover a níveis superiores, às vezes dentro da própria sessão.

(Alvarez, 2012, p.187)
6ª CENA

João usa álcool abusivamente há muitos anos.  Veio de um projeto de tratamento comigo na Escola Paulista de Medicina, onde todo um acompanhamento médico era feito mas nenhuma medicação psiquiátrica era ministrada aos pacientes. João decidiu seguir comigo no consultório depois que o projeto de pesquisa terminou e eu aceitei.

Ele era dono de muitos drive-in e essa atividade sustentava toda sua família, mas era uma atividade muito violenta (muitas brigas, muita droga, muito álcool). Lá ele passava a noite bebendo “para suportar”, dizia ele. Isso era no final dos anos 80.

João vinha às sessões comigo trazido pelo seu filho. Vinha completamente alcoolizado. O filho, um moço forte, trazia João escada acima até chegar na minha sala, colocava João sentado e saía. No final do horário eu pedia que ele voltasse para pegar o pai e descer as escadas.

Por meses passei sentada em frente ao João sofrendo por não fazer nada por ele. Mas na saída ele me agradecia e voltava no horário seguinte.

A sala ficava cheirando álcool e eu precisava abrir as janelas e deixar um horário mais espaçado para atender ao outro paciente. Muitas vezes precisava também trocar minha roupa pois tudo cheirava a álcool.

João dormia, mas minha cabeça não parava de funcionar. Ficava lá comigo o álcool, os terrores, a impotência… Vivemos meses assim. E aí, aos poucos, ele foi acordando e falando.

João foi um caso de muito sucesso. Decidiu que queria fazer um período de abstinência e, então, fomos fazendo uma redução gradativa. Não queria mudar sua atividade de trabalho, pois lhe era lucrativa.  Foi para um clínico geral cuidar das suas questões físicas. Aí sim pudemos discutir as representações dos horrores que ele aplacava com o álcool.

Aos poucos, João transformou seus drive-ins em motéis, que eram mais seguros e o deixavam menos exposto.  Mas gostava de trabalhar com a “indústria do sexo”, como dizia ele.

Permanecemos juntos, trabalhando, por muitos anos!

Hinshelwood (2001) em seu texto “Contratransferência” nos ensina:  

Um bebê precisa de algo mais do que o cumprimento da tarefa pela mãe. Necessita de uma mãe que possa sentir a perturbação e que aceite ficar perturbada.

(…)Essa interação emocional não verbal, característica do bebê e da mãe, tornou-se o modelo do cerne da relação analítica.

(…)A função de incorporar, de lidar com, e de deixar o bebê conhecer a ansiedade é atualmente chamada de “continência”. Nessa visão coloca-se ênfase ao que acontece dentro da pessoa em quem se projeta a ansiedade. Às vezes chamada de “digestão” (ou metabolização), essa importante função é transformar a ansiedade em uma vivência de ansiedade tolerável.     

(Hinshelwood, 2001,p.166)

João, Jorge, José, Luiz, Luzia são personagens de cenas clínicas importantes da minha vida. Como eles muitos outros me desafiaram, ensinaram-me a ampliar meu olhar, a não temer meus próprios sentimentos, a estar presente nas sessões com meu corpo e meu conhecimento.

João, Jorge, José, Luiz, Luzia são personagens de cenas clínicas importantes da minha vida. Como eles muitos outros me desafiaram, ensinaram-me a ampliar meu olhar, a não temer meus próprios sentimentos, a estar presente nas sessões com meu corpo e meu conhecimento.”

Ainda enfrento desafios e ainda tenho muitas questões clínicas a discutir. Concordo com Ogden (2010): 

A responsabilidade do analista não é com a “psicanálise” mas com o paciente…O objetivo do analista não é executar os ditames de um conjunto de regras analíticas (com frequência ditadas pela escola analítica a qual ele “pertence”) mas atentar analiticamente para o dilema humano do paciente

(Ogden, 2010, p.42)
COSTURANDO E CONCLUINDO

Mika Lins, Barbara Heliodora e Shakespeare sabiam o que se passaria comigo e todas aquelas pessoas com as quais me encontrei na minha sala de análise.

Sabiam através de sua capacidade de perceberem o ser humano e lerem sua alma.

Eu tinha uma outra função: queria ler aquelas “almas” através do conhecimento psicanalítico e aí fui me encontrar com essas pessoas, fui me encontrar com teóricos mais experientes que me deram muitas luzes.

O que posso mostrar com estas cenas e com meus estudos é que na sala de análise entramos com nossa mente e nosso corpo. Sentimos nas nossas entranhas o que os pacientes nos trazem e temos a função de nomear e digerir isso por eles, quando conseguimos.

ENCERRANDO

Empresto a fala dos poetas para o meu encerramento:

Quem não compreende um olhar, tampouco entenderá uma longa explicação

(Mario Quintana apud Golse & Amy, 2020, p. 88)

Como sei pouco, e sou pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando inteiro.
Sabendo que não vou ver
o homem que quero ser.

(Mello, 2018)

1-Fala livre da artista no dia 03/12/2022
2-No programa “Mudando de Conversa” com Miguel Falabella. Programa de Daniel Filho, exibido no Canal Brasil em 2008. PGM 01. Dirigido por Maria Lucia Rangel e produção Lereby
3-Encontrado em “as melhores frases de Shakespeare” em “frasesfamosas.com.br” e selecionado por mim para definir CENA


REFERÊNCIAS

Alvarez, A. (2012). Níveis de Trabalho Analítico e Níveis de Patologia : o Trabalho de Calibragem. Livro Anual de Psicanálise, XXVI, 173-190. 

Amarante, P (2007). Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz

Golse, B. & Amy, G. (2020). Bebês, maestros, uma dança das mãos. São Paulo: Instituto Langage

Hinshelwood, R.D. (2001). Contratransferência.  Livro Anual de Psicanálise, XV, 161-182.

Laing, R.D. (1963). O eu Dividido – Estudo sobre a loucura e a sanidade. Rio de Janeiro: Zahar

MacDougal, J. (1991). Em Defesa de uma Certa Anormalidade – teoria e clínica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas

Mello, T. (1984) Para os que virão. Em Vento geral 1951/1981: doze livros de poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira e disponível em https://notaterapia.com.br/2018/02/26/os-10-melhores-poemas-de-thiago-de-mello

Ogden, T. (2010). Do que eu não abriria mão. Em Essa arte da Psicanálise. Porto Alegre: ArtMed

Rosenfeld, D. (1994). O Psicótico – aspectos da personalidade. Petropolis: Editora Vozes

Roudinesco, E. & Pon, M. (1998). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar 


Maria de Lurdes de Souza Zemel é membra da ABRAMD Clínica, Psicóloga, psicanalista da SBPSP, terapeuta de família membro da ABPCF, membra-fundadora da ABRAMD . Coautora dos livros: “Liberdade é poder decidir – sobre drogas” -FTD- 2000; “Alcoolismo” – Blucher-2015; “Maconha. Os diversos aspectos, da história ao uso”- Blucher- 2021

2 Comentários

  1. Que privilégio poder ler e aprender com a sua experiência.Os recortes clínicos
    adaptados as citações de autores diversos,nos ajuda a compreender e refletir a respeito das suas vinhetas e dos nosso casos no consultório. Parabéns pelo trabalho e obrigada por compartilhar

  2. Primoroso texto. Arrebata nossos corações e sentimentos com o transbordamento de humanidade contido nas cenas de acolhimento. Inegavelmente a vida humana é mais digna de ser vivida quando um de nós faz o que é devido e reconhece o outro como verdadeiro semelhante, e não mero instrumentos manipuláveis. A clínica realizada e escrita pela autora atesta a infinita compreensão do seu olhar…

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