DROGAS BE-A-BÁ: MACONHA

por Renato Filev

Maconha é um termo genérico e popular que remete às variedades da planta cânabis que apresentam uma quantidade superior a 0,3% do seu princípio ativo mais notório, o ∆9-tetrahidrocanabinol (THC). Já as variedades da planta que apresentam esses teores abaixo desse valor de referência são designadas popular e genericamente como cânhamo. Ambos, cânhamo e maconha, são grupos de variedades da planta Cannabis sativa. A cânabis é uma planta natural da Ásia que se adaptou e é cultivada em diferentes biomas do planeta. 

Um estudo recente mostrou que a planta vem sendo domesticada há 12 mil anos, época da revolução agrícola, quando a humanidade deixou de ser exclusivamente caçadora-coletora para manejar o cultivo de diversas espécies, o que permitiu aos nossos ancestrais outras formas de vida. A princípio esses cultivares entregaram matérias primas que foram beneficiadas em instrumentos que facilitaram a vida pregressa. Existem indícios arqueológicos que mostram a interação humana milenar com as matérias primas que a cânabis pôde oferecer. Com uma das fibras mais alongadas e resistentes do reino vegetal, possibilitou a confecção de tecidos, cordas, cestos e redes de pesca que adaptaram comportamentos, proporcionaram conforto e facilitaram a vida cotidiana. Suas sementes, com propriedades nutricionais e bioenergéticas, foram encontradas próximas a fósseis de ossadas humanas juntamente com as inflorescências da cânabis fêmea (Figura 1). É no aparelho reprodutor feminino e em folhas adjacentes que são expressos em maior concentração os tricomas, pequenas glândulas que excretam e armazenam importantes componentes da planta como os fitocanabinoides e terpenos (Russo, 2011).

FIG1 Inflorescências da cânabis fêmea e seus tricomas. Fonte: https://images.app.goo.gl/aRFPZTBqnC9cUTrv5

Caso consumida, essa resina costuma produzir os efeitos terapêuticos, sacramentais ou prazerosos característicos da cânabis. Essa é composta por centenas de princípios ativos que podem ser agrupados de acordo com suas características químicas. O grupo de maior destaque são os fitocanabinoides, moléculas de caráter lipídico que, embora não sejam exclusivas da cânabis, estão expressas em uma ordem de grandeza maior nas suas flores fêmeas que em outras partes da planta ou em outras espécies vegetais. Mais de uma centena dessas moléculas foram identificadas e descritas como fitocanabinoides. 

Outros compostos de grande importância para os efeitos da cânabis são os terpenos. Foram descritos mais de uma centena de terpenos agrupados de maneiras distintas e em concentrações diferentes nas variedades da cânabis. Esses são igualmente lipídicos, mas ao contrário dos fitocanabinoides, estão associados com os intensos e complexos aromas característicos da cânabis. Além das propriedades aromáticas, os terpenos são capazes interferir na ação dos fitocanabinoides modulando seus efeitos. 

Os flavonoides e os esteroides também foram identificados como os componentes ativos presentes no fitocomplexo. As variedades da cânabis podem expressar estas centenas de compostos em diferentes concentrações, o que pode proporcionar efeitos distintos quando consumidas, por vezes antagônicos. 

“Os efeitos dos canabinoides dependem da interação complexa entre o indivíduo que faz o uso e suas particularidades, como a expressão do seu sistema endocanabinoide, da substância que está sendo consumida com suas singularidades (…) e o contexto no qual o uso está sendo realizado”

Os efeitos dos canabinoides dependem da interação complexa entre o indivíduo que faz o uso e suas particularidades, como a expressão do seu sistema endocanabinoide, da substância que está sendo consumida com suas singularidades, como concentração e pureza, e o contexto no qual o uso está sendo realizado. Ainda assim sabemos que os efeitos agudos dos canabinoides são conhecidos há bastante tempo. 

Sabemos que a via de administração pode implicar em diferenças no início e duração deles. Ao serem inalados os vapores contendo canabinoides terpenos e outros compostos atingem rapidamente o tecido cerebral proporcionando efeitos quase imediatos, que duram de uma a quatro horas após o consumo. Quando a ingestão é oral os efeitos tendem a aparecer após uma hora e os efeitos podem ser mais prolongados, e por vezes mais intensos, chegando a durar até 8 horas.

 Existem efeitos psíquicos e fisiológicos que podem ser considerados positivos, negativos ou neutros associados ao consumo da maconha. Estes efeitos podem ser mais ou menos evidentes dependendo da tríade biopsicossocial. Sabemos que altos teores de THC são capazes de proporcionar efeitos característicos como aumento no fluxo de pensamento, alterações sensoriais, prazer, relaxamento, eloquência, distorções na percepção do espaço-tempo, boca seca, olhos vermelhos, hilaridade, paranoia, ansiedade entre outros. Esses efeitos podem variar de acordo com cada pessoa, com a composição da substância usada e se o ambiente favorece elos de proteção ou vulnerabilidade. Quanto maior a dose de THC, mais inexperiente for o consumidor e menos acolhedor o ambiente, maior a probabilidade de experiências ruins. 

Por Bira Dantas

Alguns dos efeitos proporcionados pelos consumidores habituais de maconha podem ser tolerados com o consumo frequente. Outros efeitos podem ser sensibilizados ao passar do tempo. Sabemos que consumidores habituais de cânabis, sobretudo de variedades que contenham teores elevados de THC, tendem a apresentar uma infrarregulação na expressão dos receptores canabinoides do tipo 1. Mesmo nestes casos não existem relatos de morte por intoxicação direta aos canabinoides. Isso se deve ao fato de não existirem receptores canabinoides no tronco cerebral, área relacionada ao controle autonômico da respiração. Aparentemente os canabinoides desempenham seus efeitos enquanto usados, ou seja, se o indivíduo parar de consumir estes efeitos deixam de se manifestar. Algumas pessoas podem apresentar sintomas de abstinência leve com a interrupção do uso. Assim, pessoas com enfermidades crônicas e de difícil controle acabam fazendo uso continuado de canabinoides para reduzir sintomas e melhorar a qualidade de vida. 

Como geralmente ocorrem com as plantas terapêuticas, as variedades da cânabis são compostas por diversos componentes. Sua extração, formulação e uso para fins terapêuticos necessitam de orientação e algumas informações que podem ser fundamentais para a segurança, adesão e resposta ao tratamento. No entanto, parte das pessoas que fazem uso habitual de cânabis, mesmo sem ter ciência desses parâmetros, acusam que a prática traz benefícios que podem ser enquadrados na dimensão terapêutica e que foram descobertos a partir da experiência empírica.  É preciso compreender que existem muitas variedades da espécie, com os perfis de canabinoides e outros compostos diferentes, que a dose e o perfil molecular podem proporcionar efeitos diferentes em cada pessoa, inclusive com queixas semelhantes, e que um dos desafios da terapia com esses fitocomplexos é encontrar um tratamento satisfatório que maximize a reabilitação ao mesmo tempo que minimize seus possíveis eventos adversos.     

  Questões relativas ao cultivo, manejo, extração, armazenagem, diluição, titulação e posologia também são fatores importantes para se ter ciência ao iniciar o tratamento. A cânabis para fins terapêuticos pode ser usada in natura, através de dispositivos que vaporizam seus componentes que ao serem inalados são absorvidos pelo pulmão. Também existem tratamentos realizados com extratos integrais podendo, ou não, serem diluídos em solventes orgânicos como álcoois ou em outros excipientes como o óleo de coco ou a glicerina vegetal. Estes extratos também podem ser vaporizados e inalados, bem como ingeridos por via oral durante a alimentação. Também podem ser utilizados para a preparação de pomadas e unguentos de uso tópico. Além disso, estes compostos podem ser diluídos, isolados e servir de insumo para a produção de outras formulações e apresentações específicas, privilegiando um ou poucos componentes da planta e eliminando o restante.  Existe, ainda, um medicamento disponível no Brasil para o tratamento de espasmos em decorrência da esclerose múltipla que disponibiliza os canabinoides através da absorção pela mucosa oral. Estas e outras formulações que buscam diferentes vias de administrações vêm sendo desenvolvidas e aprimoradas. A expectativa é que haja um menu amplo de opções com grande diversidade de apresentações e composições distintas, a fim de atender as complexidades da demanda terapêutica pelos componentes da planta.

“Sabemos que os canabinoides apresentam uma curva dose resposta em padrão de sino. Isso significa que doses diferentes podem apresentar efeitos diferentes, inclusive antagônicos. Significa que pode existir uma janela em que a dose para certa indicação terapêutica é ótima e doses inferiores ou superiores podem desencadear efeitos opostos ou ausência de efeito.”

Sabemos que os canabinoides apresentam uma curva dose resposta em padrão de sino. Isso significa que doses diferentes podem apresentar efeitos diferentes, inclusive antagônicos. Significa que pode existir uma janela em que a dose para certa indicação terapêutica é ótima e doses inferiores ou superiores podem desencadear efeitos opostos ou ausência de efeito.

A demanda diversa pode ser explicada, ao menos em parte, através da compreensão sobre o sistema endocanabinoide. Sua descoberta há cerca de 25 anos mudou radicalmente o que compreendíamos a respeito da cânabis e sua interação com o organismo humano.  Não apenas isso, levou a nossa compreensão muito além! O sistema endocanabinoide cumpre diversos papeis funcionais em diferentes tecidos, órgãos e sistemas dos organismos humanos e animais, regulando atividades fisiológicas, psicológicas, metabólicas e patológicas. Esse sistema é composto por uma série de moléculas que desempenham sua atividade modulatória interagindo com uma pluralidade de sistemas de neurotransmissão, imunológica e de mediação lipídica e do metabolismo.      

As moléculas de maior destaque são os endocanabinoides. Os dois mais conhecidos são a anandamida e o 2-AG (2-araquidonoilglicerol), mensageiros que interagem de maneira específica, análoga ao mecanismo de chave-fechadura, com os receptores canabinoides do tipo 1 e 2 proporcionando alterações na estrutura desse receptor e permitindo que a mensagem seja transmitida para a célula. Além dos mensageiros e receptores, o sistema endocanabinoide conta com as enzimas que sintetizam e degradam seus mensageiros e com transportadores que auxiliam nesta degradação. 

Os receptores canabinoides estão amplamente expressos em nosso corpo, desempenhando papel funcional e regulatório no sistema nervoso central e periférico, imunológico, muscular-esquelético, cardiocirculatório, adiposo, hepático, pancreático, gastrointestinal, excretor, reprodutor, epitelial, endócrino. Essa amplitude explica a potencialidade terapêutica dos canabinoides. No entanto, sabemos que essas moléculas são expressas de maneira singular em cada indivíduo. Isso significa que a terapêutica canabinoide tem uma dinâmica própria de pessoa para pessoa. O caráter personalizado é traço marcante. Existem indivíduos que alcançam sucesso terapêutico com baixíssimas doses de determinado extrato, enquanto outras pessoas podem necessitar de altas doses de um composto isolado. Ou seja, não existe uma única opção que funcione para todas as pessoas. Precisamos de mais estudos que avaliem essas particularidades cruzadas com a experiência clínica, correlacionando os sucessos e os percalços da terapia. 

Em contrapartida o uso social da cânabis é cada vez mais aceito. Países e territórios vêm reformando suas leis regulando a cânabis para qualquer finalidade. Hoje nas Américas e Europa a regulação existe em diferentes formatos que renunciam à proibição. Alguns ainda podendo ou não restringir o acesso a compostos com THC. 

Ao uso do THC padece uma preocupação e cautela quanto a sua utilização, seja terapêutica, seja pelo prazer proporcionado. Isso ocorre, pois, seu consumo está relacionado ao aumento da probabilidade de eventos adversos. É necessária informação de qualidade e uma regulação responsável para mitigar os riscos atrelados a seu consumo. Usuários de cânabis desenvolvem estratégias que minimizam os danos associados ao seu consumo. Esse conhecimento vem auxiliando e informando pessoas interessadas no cuidado de pessoas que usam substâncias psicotrópicas.

No caso da cânabis saber que seu consumo pode potencializar os efeitos de outras substâncias, como o álcool, é uma informação fundamental para manejar o consumo. Usar piteiras e papel apropriado, filtragem em água através de bongs e encontrar a variedade e dose adequadas além de manter-se hidratado, bem nutrido, respeitando as horas de sono e em um local seguro em companhia de pessoas de confiança são estratégias de redução de danos que podem mitigar os eventos adversos associados ao consumo. Um estudo desenvolvido no Canadá, país onde os processos de produção, acesso e consumo da cânabis são regulados, mostram estratégias em dez fatores que podem reduzir os danos atrelados ao consumo da planta (Fischer, 2017). Entre estes fatores sugerem desde orientações mais óbvias como evitar o consumo ou o consumo de alta frequência, mas também sugere evitar associar com outras substâncias psicotrópicas, retardar a idade de início de consumo, evitar prender a fumaça, preferir formas de ingestão que evitem a combustão, evitar combinar esses fatores, como também os canabinoides sintéticos.

Ainda, sabemos que uma das questões de maior risco associada à cânabis é sua regulação, que atualmente gera mais malefícios para a sociedade e saúde pública que os efeitos da planta. O risco de ser pego com a planta pela polícia, depende de critérios de gênero, raça e classe para a pessoa ser processada como traficante ou usuária. Um dos muitos exemplos que poderíamos refletir a respeito de uma regulação responsável para a cânabis que poderia mitigar seus eventos adversos de maior gravidade seria a regulação dos teores do princípio ativo em produtos comercializados, como é feito com o álcool. Outro exemplo poderia vir da regulação do tabaco, através da restrição de propaganda exclusiva aos locais de venda. 

Estratégias de redução de danos para consumidores de cânabis vem sendo elaboradas Alguns locais em que a cânabis foi regulada apresentam problemas em relação ao consumo de produtos com teores elevados do THC, o que vem favorecendo desfechos desfavoráveis e elevando o risco de prejuízos físicos e mentais relevantes a seus consumidores. É prudente que a regulação se atualize para mitigar os possíveis desdobramentos à saúde pública que um cenário de regulação pode gerar.      

” É imprescindível políticas que abominem a política de guerra, a letalidade policial, o genocídio seletivo, o superencarceramento e a desigualdade econômica que no Brasil pesa sobretudo entre de jovens, pobres, negros, periféricos e suas famílias.”

Quadros de ansiedade e psicose são relatados após consumo, em especial de produtos com teores elevados do THC, além de  prejuízos na motivação e baixo rendimento escolar; fatores que podem aumentar a vulnerabilidade dos mais vulneráveis, sobretudo entre o público mais jovem. Sabemos que existe uma associação positiva entre psicose e uso de cânabis. No entanto,a causa e efeito permanecem incompreensíveis. Carl Hart em seu livro Drogas para Adultos (2020) usa uma analogia interessante e didática para refletir sobre essa questão. O professor fala que existe uma correlação positiva entre chover e o número de guarda-chuvas abertos e, que seria estranho crer que por estarem abertos são eles que causam a chuva. Transtornos psicóticos são multifatoriais, envolvem o indivíduo em sua complexidade e o contexto no qual ele está inserido. Enquanto o THC pode ser o disparador de um quadro psicótico, o CBD tem características de antipsicótico (Zuardi, 2012). Podendo a cânabis, sobretudo as variedades ricas em CBD, ser promessa para auxiliar pessoas que sofrem desses transtornos.

Segundo a Organização das Nações Unidas [ONU] (2021), existem hoje no mundo cerca de 200 milhões de usuários de cânabis,  esse número corresponde a 80% dos consumidores de substâncias ilícitas. É imprescindível políticas que abominem a política de guerra, a letalidade policial, o genocídio seletivo, o superencarceramento e a desigualdade econômica que no Brasil pesa sobretudo entre de jovens, pobres, negros, periféricos e suas famílias. É fundamental a reflexão sobre quais políticas deverão reparar às pessoas que estão sendo afetadas agora pela atual política. Um processo de escuta, diálogo e troca entre as pessoas impactadas pela política de drogas pode trazer apontamentos de caminhos menos nocivos a seguir. Movimentos sociais que pautam a mudança na atual política, como as marchas da maconha, são fundamentais para discutir autonomia, cuidado, direitos humanos, reparação para além da regulação do uso da planta. Muitas associações para fins terapêuticos ou de pesquisa se reúnem por laços de solidariedade, empatia, afinidade, compaixão, desobediência civil e dão exemplos de alternativas à regulação pelo monopólio do mercado, buscando de diversas maneiras garantir acessos a quem necessita. Hoje esses movimentos vêm informando, orientando e fortalecendo a autonomia e dignidade de pessoas que necessitam da cânabis e seus efeitos. É papel de toda sociedade pensar como a relação com as substâncias poderia ser diferente.  


Referências:

Fischer B, Russell C, Sabioni P, et al. (2017) Lower-Risk Cannabis Use Guidelines: A Comprehensive Update of Evidence and Recommendations [published correction appears in Am J Public Health. May;108(5):e2]. Am J Public Health.;107(8):e1-e12. doi:10.2105/AJPH.2017.303818

Hart C. (2021) Drug Use for Grown-Ups: Chasing Liberty in the Land of Fear. New York: Penguin Publishing Group

Russo EB. Taming (2011) THC: potential cannabis synergy and phytocannabinoid-terpenoid entourage effects. Br J Pharmacol. 163(7):1344-1364. doi:10.1111/j.1476-5381.2011.01238.x. 

Organização das Nações Unidas [ONU] (2021) World Drug Report 2021 United Nations publication

Zuardi AW, Crippa JA, Hallak JE, Bhattacharyya S, Atakan Z, Martin-Santos R, McGuire PK, Guimarães FS. (2012) A critical review of the antipsychotic effects of cannabidiol: 30 years of a translational investigation. Curr Pharm Des. 18(32):5131-40. doi: 10.2174/138161212802884681. PMID: 22716160.


Renato Filev é PhD – Bacharel em Ciências Biológicas: Modalidade Médica. Doutor em Neurociências, ambos pela Universidade Federal de São Paulo. Pós-doutorando pelo Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da mesma instituição. Coordenador Científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas – PBPD. Diretor executivo da CANAPSE – Associação de Canabiologia, Pesquisa e Serviço.

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