DRUK: um brinde à amizade

Diva Reale
Introdução 

Sem dúvida alguma Druk é um filme necessário. Partindo de um argumento gerador de polêmica, um grupo de amigos professores embarca num experimento envolvendo um consumo de álcool que vai na contramão do senso comum. Várias inversões e desvios estão presentes, como fazer uma pesquisa que tem sobretudo um caráter lúdico, seguindo uma recomendação de beber em horário de trabalho e não beber após as 20:00! O ápice mostra a obtenção do sucesso justamente quando há liberdade para ultrapassar certos limites, tanto de parâmetros combinados previamente quanto dos índices preconizados de consumo do álcool: o consumo escalonado coincide com a cena apoteótica. 

Curiosamente a única coisa plenamente confiável – implícita, nunca enunciada – que permanece durante toda a trama da história, nada tem a ver com o argumento principal do filme. Este propõe que a vida é melhor vivida se o comedimento for substituído pela embriaguez programada. Proponho aqui a presença de uma tese implícita, tão ou mais valiosa que a tese defendida nos enunciados da trama: essa se faz presente na importância evidenciada à forte relação com os amigos. Deles e com eles surge a força para mudar. A tese poderia ser assim formulada: bons amigos são a principal referência e ponto de suporte emocional do qual os adultos não podem prescindir. 

O tom provocativo da tese do filme pode ter contribuído para a sua grande repercussão. O consumo de álcool consolidado ao longo dos tempos, presente no princípio-slogan beba com moderação! foi posto em cheque. Nicolaj, o professor de psicologia sugere que o consumo contínuo do álcool seria necessário para o ser humano se sentir melhor na vida. O mote para embarcar na pesquisa-ação¹, vem de uma tese implícita secundária que coloca a vida cotidiana como fonte de um embaçamento da alegria de viver, sendo necessário superar quimicamente este desgaste frente a sustentação que a vida adulta exige. 

Antes de entrarmos na forma como o filme explora a tese, visitemos uma narrativa do diretor sobre a história de como o filme nasceu e foi realizado, numa matéria de um jovem jornalista português Ricardo Farinha (2021):

“A ideia para “Another Round” nasceu quando Thomas Vinterberg recebeu na Dinamarca uma argumentista americana de Hollywood. A guionista² conheceu a filha adolescente do realizador, Ida, e trocaram algumas palavras, numa conversa que seria marcante para o cineasta.

“Ela conheceu a minha filha e perguntou: então, o que vais fazer hoje?”, contou Thomas Vinterberg em entrevista à “Vulture”.“E ela respondeu: vou fazer a corrida do lago. E a argumentista perguntou: o que é isso? E ela respondeu: Ah, temos de correr à volta do lago e esvaziar uma grade de cervejas. E esta americana começa a olhar para mim e a perguntar: quando é que vais interferir? Ela tem só 17 anos. E eu começo-me a rir porque estou habituado a miúdos bêbedos nas ruas.”

“E aí ela diz: mas não vais ficar enjoada? E a minha filha: Bem, se vomitarmos, descontam-nos tempo. A argumentista começo a ficar agitada e questiona: Então? E a polícia? E a minha filha: ah, mas os professores estão lá! E de repente apercebi-me de que isto era um espelho em frente da minha sociedade. Tinha de olhar para isto”, continuou o realizador.

A Dinamarca, que muitas vezes é descrita como um dos países do mundo — ou como “o” país — com maiores índices de felicidade, também é um dos países em que é mais habitual que adolescentes consumam bebidas alcoólicas.

Assim, Thomas Vinterberg decidiu entrar neste imaginário, e mostrar como é a vida para os jovens nas escolas dinamarquesas — a corrida do lago é uma das cenas do filme — mas contar sobretudo a história do ponto de vista dos professores, quatro adultos maduros que já não estão habituados a beber regularmente, mas que encontraram aí a possível chave para os seus problemas. E explora a relação geracional entre as várias personagens.

Quando leu o guião pela primeira vez, durante uma viagem a África, Ida escreveu ao pai como tinha adorado aquela história. O filme foi mesmo gravado na sua escola, na sala de aula da filha do realizador, e alguns dos seus amigos foram figurantes. E Ida ia aparecer na produção para interpretar a filha adolescente de Martin, o protagonista. 

Só que um trágico acidente de carro deixou-a sem vida, apenas quatro dias depois de terem começado as filmagens. Foi um choque. Vinterberg recebeu uma chamada da Bélgica, da sua ex-mulher. Ela estava a conduzir o carro na autoestrada quando outro veículo, cujo condutor estava distraído ao telemóvel³, provocou a colisão fatal. Ida Vinterberg tinha apenas 19 anos.”

“Quando ela morreu, eu estava rodeado de psiquiatras e eles disseram-me: se consegues comer e tomar banho, e se consegues olhar para as pessoas nos olhos sem chorar, então provavelmente devias voltar a trabalhar”, explicou o realizador na mesma entrevista à “Vulture”.

“E eu disse: eu não consigo. Porque eu estava sempre a chorar, e ainda estou. Depois falei com o Mads Mikkelsen e o editor e questionámo-nos: como é que podemos fazer um filme sobre quatro pessoas bêbadas quando isto aconteceu? Mas não podíamos recusar porque sabíamos que a Ida, a minha filha, iria odiar que desistíssemos do filme por causa dela. Por isso tornou-se muito importante para nós que este filme se tornasse uma afirmação da vida, que fosse muito mais do que simplesmente beber. Acabámos por o4 fazer para homenagear a memória dela. Acho que não me vou arrepender.” (Farinha, 2021).

Descobrimos que várias notícias sobre o filme abordam a relação deste com a morte acidental da filha do diretor. Vinterberg coloca no centro da história uma homenagem à sua filha morta pouco tempo antes das filmagens. E, frente a esta morte trágica, o filme é apresentado como tratando da celebração da vida. Estas leituras parecem sugerir que o  Dinamarquês quer que o público saiba que ele carregou para dentro da realização do filme sua forma de enfrentar o luto por esta terrível perda. Esta proposta é condizente com a história deste diretor que assinou em 1995, junto com o polêmico cineasta Lars von Triers, o Manifesto Dogma (Thebas, 2021), como veremos logo abaixo. 

Os psiquiatras que cercavam Vinterberg são apresentados como uma voz única, cuja recomendação foi: “se não chorares o tempo todo deves fazer o filme”. Mas ele chorava o tempo todo, e foi buscar, junto com o editor, apoio no amigo Mads Mikkelsen, o ator principal. Desta conversa surge a força para decidir fazer o filme. A decisão de manter a gravação  se daria por uma superação pela ação da recomendação médico-psiquiátrica, que fica colocada como algo paralisante, meio besta ou sem grande serventia. Pois quem descobre como sair da incapacidade para produzir – chorar o tempo todo – é o próprio Vinterberg graças ao amigo ator e o editor da obra. Assim ele ganha forças ao obedecer a um imperativo criado: agradar e homenagear a filha morta!

“Resumindo, poderíamos dizer que a força motriz para a realização do filme vem da insurgência à submissão à dor, do luto e da celebração, sustentados pela amizade de atores que trabalharão mais uma vez juntos. “

Resumindo, poderíamos dizer que a força motriz para a realização do filme vem da insurgência à submissão à dor, do luto e da celebração, sustentados pela amizade de atores que trabalharão mais uma vez juntos. 

Como já vimos a aproximação da trama do filme e da vida real do cineasta fica entrelaçada pelo trabalho de divulgação do filme nas matérias e entrevistas que pudemos encontrar (Lorentz, 2021; Belinchón, 2021; Boscov, 2021; Sanchez, 2021; Costa, 2021). Portanto é provável que os espectadores que leram ou ouviram falar previamente do filme já entraram para assisti-lo também movidos pelo impacto da notícia do sofrimento do diretor. Este impacto pode ter enviesado a experiência direta com o objeto-filme, incluindo uma certa curiosidade voyerista inconsciente de se embeber dos rastros gestuais do diretor em luto, transformado a realização do filme num ato de heroísmo insurgente, capaz de vencer a luta com a dor da perda de uma filha. Já sabemos que o roteiro foi escrito antes da morte da filha. A filmagem, ocorrida após a morte, se torna um gesto de superação e suas escolhas na direção dos atores, construção e montagem das imagens, é acompanhado pelo espectador com a benevolência da empatia frente àquele que está em profundo sofrimento. 

A leitura do manifesto Dogma (Trier & Vinterberg, 1995) pode oferecer uma camada do enquadre que construímos para nos aproximar de Vinterberg. Segundo o manifesto é desejável que se estabeleça uma proximidade entre realizador e a temática da obra realizada, perpassando a experiência estética do filme. Criador e criatura devem se apresentar bem próximos. E podemos dizer que neste aspecto Druk permanece fiel a este eixo do manifesto Dogma. Além das matérias sobre o filme corroborarem o desejo de Vinterberg de mostrar esta proximidade entre obra e realidade, também encontramos pistas disto  na construção do personagem Martin. Ele  pode ser considerado o alterego do diretor, uma chave de leitura comumente usada na crítica cinematográfica. A figura do alterego do diretor-autor se afirma como um recurso valioso para elucidar e favorecer a desconstrução das tramas do filme. Espero que possa também nos fornecer pistas de como insurgência, luto e celebração se mesclam no filme. Examinemos algumas dessas pistas.

Uma pitada de decupagem 

O filme começa com duas cenas com adolescentes dinamarqueses. Na 1ª cena, ao ar livre, uma corrida ao redor do lago de jovens ocorre; a curiosidade vem atrelada ao fato de que a corrida inclui como parte do desafio   o time  correr carregando uma caixa de cerveja e seguir regras que parecem principalmente estimular o consumo pesado de álcool. Mas veremos mais adiante, que existe uma sutileza sobre estas regras desta corrida que descentram ou relativizam a questão do consumo em si do álcool!  

Numa 2ª cena, jovens que parecem bastante embriagados e agitados estão num vagão de metrô onde o consumo de bebida continua publicamente, associado a comportamentos próprios de turmas fazendo algazarra, incluindo o comum desafio dos seguranças do vagão tentando manter a ordem. Um jovem mais ousado, algema um dos fiscais a uma barra e vai embora. 

Numa 3ª cena: professores numa escola estão discutindo o ocorrido. A diretora da escola convida os professores a buscarem uma forma de enfrentar esta situação com seus alunos, pois consideram que desta vez eles foram longe demais. 

Mais adiante, numa outra cena chave, acontece um jantar entre os quatro amigos. Nicolaj, o aniversariante professor de psicologia, discorre sobre os limites da vantagem incondicional da sensatez oferecendo a tese de Skarderud, o psiquiatra norueguês, que supostamente serviria de contraponto à ideia de comedimento. Nas palavras de Nicolaj, as coisas são mais ou menos assim: O álcool em determinadas concentrações deixa a pessoa relaxada, mais musical, mais aberta e corajosa em geral. Autoconfiança coroa este estado tão atraente. Esta vodka, diz Nicolaj, colocaria um sorriso na cara do Czar. Portanto, para Skarderud, conclui Nicolaj, é sensato beber!” e, complementa: 0,05% é o que falta de álcool em nosso sangue, o que nos torna vulneráveis emocionalmente; para corrigir esta falta é preciso manter este nível de álcool estável no sangue, o que se consegue bebendo 1 ou 2 taças de vinho.

Martin tem uma cara meio desenxabida, após a menção de que está com problemas na escola. Passamos a ouvir a música do restaurante e não mais a conversa dos amigos que continuam falando. Ele passa a beber maciçamente e, depois de ter se retraído, está com lágrima nos olhos.

Os amigos perguntam o que houve…. e ele começa a contar… e em tom bem cabisbaixo, bem sintético…. minimalista…. descreve um cenário solitário. Ele parece bastante deprimido para nós.

Nicolaj rebate, reapresentando Martin para si próprio: “Há 12 anos atrás “você era o cara”, bem cotado para vaga de pesquisador…”. E os amigos embarcam usando vários adjetivos bastante elogiosos, construindo um personagem muito destacado. Martin vai mostrando uma cara feliz que ao mesmo tempo disfarça sua vaidade: ele gosta de ouvir esta descrição elogiosa que o (re)coloca em destaque. Estar em destaque parece ter sido sua forma “anterior” de ser!

Estimulados pelo calor afetivo da turma de amigos com um lauto jantar regado a farta bebida de qualidade, eles estendem a noitada até o amanhecer. E com brincadeiras bem joviais: desde a ‘dança com passinhos’ que o Martin ainda lembrava dos tempos que dançava jazz na juventude até uma minicompetição de marcha olímpica, eles se  esbaldam naquela noite.

Martin é o personagem que serve de pivô, ou desculpa para que a trama se desenvolva. Martin precisa de ajuda, decidem os amigos. Embora Martin esteja claramente deprimido, Nicolaj, o mais jovem de todos, descreve as mudanças do amigo em termos que não incluem terminologias psicologizadas: ele perdeu o viço da vida, a alegria e empolgação que o caracterizavam. 

O que sabemos sobre Martin? Martin é interpretado pelo impressionante ator Mads Mikkelsen, que já participara de A caça, outro filme do mesmo diretor. 

Ele é um professor de história, na meia idade, que se encontra num momento ruim da vida profissional: os alunos não querem mais tê-lo como professor. Acontece que as coisas não andam nada bem também na vida conjugal e familiar, pois as relações estão muito distanciadas entre ele e a mulher e filhos. 

No dia seguinte ao jantar Martin decide procurar os amigos. Ficou interessado na tal teoria… Nicolaj propõe aos amigos uma brincadeira científica: um experimento sociológico para testar o que vai acontecer em suas vidas se eles corrigirem o desbalanço dos humanos, resultado desta ‘falta básica’ de álcool no sangue de 0,05%. 

Os amigos professores do 2º grau de história, música, educação física e psicologia, cujas vidas parecem apresentar uma crise de meia idade, topam participar da pesquisa. Dois deles, o de música e o de educação física, são solteiros. O de música apresentado como meio mulherengo começa a se ressentir disso, sem entender muito bem por que permanece só. O de educação física, aparentando ser o mais velho de todos, é um solitário conformado. 

Nicolaj enfrenta problemas ligeiramente diversos dos amigos: além de haver pistas de que tem uma situação financeira melhor, provavelmente por riqueza de família, tem três filhos bem pequenos que exigem um sacrifício dos pais. Este é apresentado de forma um tanto escatológica: um deles, o de idade do meio, além de refugiar-se na cama dos pais regularmente à noite, faz xixi na cama ou no próprio pai. Esta situação, apresentada como normalizada, acarreta sistematicamente a desagradável experiência de acordar molhado durante o sono e ter a trabalhosa função de trocas de roupa da criança e dos adultos, além da roupa de cama. Sua condição financeira mais confortável não parece poder neutralizar os sacrifícios que acompanham a criação de vários filhos. O ethos de DRUK inclui o conhecimento e acesso a bebidas caras e sofisticadas, mas os problemas da existência não chegam a ser decodificados como podendo ter uma origem emocional ou psíquica. Para o tópico da saúde mental, vale o senso comum. Não há uma presença de referenciais de saúde mental, nem de categorias psicopatológicas da psiquiatria ou da psicanálise: Martin não sofre de depressão (seja ela psicodinâmica ou reativa), nem o segundo filho de Nicolaj tem enurese noturna. 

É Nicolaj quem lidera a concepção e incita a aventura de embarcarem na “pesquisa”: ele a situa dentro da psicologia social, praticando uma “ciência” com metodologias pioneiras e antigas, que soam hoje como descritivas e ingênuas. 

Uma última cena encerra esta análise mais detalhada. Nela as coisas já estão acontecendo num outro patamar de alcoolemia, e pesquisadores e nós espectadores seguimos examinando os seus resultados: “efeitos na performance e na interação social”. 

A cena em questão é antecedida por uma outra cena,  cujo clima emocional da narrativa fica inteiramente conduzida pela trilha sonora, e gestual dançante de Martin. A música tocada é a peça The Tempest, op. 18, de Tchaicovsky. Nesta cena vemos Martin bebendo em sua casa inúmeras doses e se preparando para a aula que, pelo que sugere a música, será uma aula-show apoteótica. Vamos deduzindo que a música é tocada enquanto Martin estuda o roteiro da aula; descobrimos que ele decidira que pretendia atingir níveis dobrados de alcoolemia em relação àquela que inicialmente fora recomendada. A música o acompanha desde este momento em casa até a chegada na escola e continua na sala de professores, enquanto Martin se movimenta com gestos amplos e rodopiantes. Estamos colocados dentro do mundo subjetivo de Martin: ele está exultante! Parece mesmo uma pessoa relaxada, mais musical, mais aberta e corajosa em geral. A autoconfiança coroa este estado tão atraente, como disse Nicolaj na cena do restaurante. Martin não está nem aí com os outros, imerso e dançante, sem preocupar-se com os circundantes. 

A sequência começada na cena anterior termina nesta cena com a música sendo silenciada pelo som da cara de Martin batendo o nariz no batente da porta. Sem dúvida uma narrativa que nos suscita o impacto brutal da dureza da realidade ‘batente-na-cara’: literalmente (quase) quebrando a cara, deixando um suspense sobre o que poderá vir a acontecer em seguida, pois apenas nós os espectadores e os amigos-pesquisadores sabemos o que está acontecendo com o estado de consciência de Martin: ele está em risco, ultrapassando convenções e leis socialmente recomendadas quanto ao consumo de álcool, sobretudo durante o trabalho.

Na cena seguinte, Martin, já parcialmente recuperado da pancada, está com os alunos dando uma aula bastante empolgada. Ele encena uma aula que traz o leitmotive que moveu Vinterberg a decidir realizar o filme: Martin – que lembro está sendo tomado como o alterego do diretor – é o personagem que congrega a força motriz do argumento ao trazer à baila o tema do consumo do álcool cotejado com as realizações de grandes homens da história (Farinha, 2021).

Martin compartilha com os alunos suas reflexões acerca das distâncias entre aquilo que é recomendável pela OMS5 e aquilo que acontece na vida dos grandes bebedores: os adolescentes dinamarqueses para quem ele fala, e os grandes e poderosos homens da história; e, mesmo embriagado e inebriado de si, revela não ter perdido a crítica, pois não abre nada de sua vida privada, sobretudo a existência da pesquisa-ação/brincadeira em andamento com os outros 3 amigos professores dos mesmos alunos. 

“Esta cena carrega para dentro dela um belíssimo exemplo de uma ação pontual de educação e prevenção dentro de uma perspectiva de redução de danos, na qual a ênfase é colocada nas potencialidades do sujeito que usa a substância e não na ação da substância em  si.”

Já ficamos sabendo pela entrevista de Vinterberg (Farinha, 2021) que há do ponto de vista da roteirista amiga estadunidense uma complacência dos adultos com a tal corrida do lago. Nela parece haver até mesmo um estímulo ao consumo pesado e compartilhado do álcool, pois segundo o que entendi das regras6, há uma manipulação do tempo da corrida diferente se uma única pessoa do time vomita ou se o time inteiro vomita coletivamente. 

Enquanto isso, na cena da aula, Martin apresenta sua tese num clima de crescente animação, em nenhum momento emitindo um julgamento negativo frente ao fato de que todos os jovens da sala participam da tal corrida do lago. Ele termina sua defesa de tese, exortando os alunos a responderem o que eles farão com o exame de história que se aproxima: se eles vão fazer como o Churchill que ganhou a 2ª guerra mundial ou como Hemingway que estourou os próprios miolos. A cena termina com uma grande ovação dos alunos em grande algazarra. O grande Martin brilhante e empolgado está de volta. A tese da pesquisa secretamente em andamento é confirmada: sob efeito de uma dose maior que os 0,5 % de álcool no sangue, Martin, anteriormente prestes a perder sua classe de alunos, obteve a conquista total de sua aceitação e animação  para enfrentar, com suas aulas, os estudos e o temido exame de final de ano! E de quebra ele faz um belo trabalho de elaboração com os alunos sobre o consumo do álcool, tal como a diretora da escola havia solicitado aos professores!! Esta cena carrega para dentro dela um belíssimo exemplo de uma ação pontual de educação e prevenção dentro de uma perspectiva de redução de danos, na qual a ênfase é colocada nas potencialidades do sujeito que usa a substância e não na ação da substância em  si.  Ela pode ser tomada como um bom exemplo de uma abordagem que se alinha com as diretrizes de uma educação voltada para a autonomia. (Reale, 1997; Cavallari & Sodelli, 2010; Cavallari, 2017; Albertani & Sodelli 2014; Sodelli, 2020). 

Novamente a música é uma presença marcante, dando um final apoteótico à cena pelo uso dos instrumentos de metais no trecho escolhido da música para compor a trilha sonora. Um forte contraste nos aguarda: um dos amigos anunciou que estava indo passear de barco. 

O que a clínica de AD tem a dizer frente ao filme? 

Não é de estranhar que um filme que problematiza o viés apresentado como conservador frente ao consumo de álcool, traduzido pelo slogan beba com moderação, mantenha uma cautelosa distância dos psiquiatras e demais profissionais que habitualmente tratam da questão drogas. A visão hegemônica proibicionista (Reale & Carezzato, 2017) quando reproduzida especialmente por uma psiquiatria dominantemente acrítica e desatenta de seu papel ideológico (Reale, 2005) carrega um viés patologizante nas comunicações feitas para o público em geral, que facilmente são apreendidas como sisudas ou francamente moralistas. Os males e prejuízos causados pelas drogas ilícitas é o que mais se ouve e se lê nos meios de comunicação quando se fala de drogas. Frente às drogas ilícitas o discurso sobre o álcool fica em segundo plano.

O olhar e escuta clínicos que fogem de um pensamento simplista acabam por ficar restritos a um pequeno círculo de profissionais que tenham tido ou buscado uma base humanista na sua formação. O pensamento mais comum é aquele onde predominam polarizações do tipo bom-mau, certo-errado, ou mesmo saúde-doença, tratados como coisas estanques, sem as nuances que sabemos ser reais. A formação psicanalítica e psicodinâmica contribui fortemente para este pensamento mais complexo, onde inclusive o paradoxo pode e deve ser sustentado. Mas desorientadas profissionais, poucas são as vozes que chegam a se tornar ouvidas pelo público em geral.  

A sociedade dinamarquesa tal como é apresentada pelo olhar de Vinterberg, especificamente presentificada pelo microcosmos dos professores, suas famílias, e alunos desta escola, não parece ter sido apresentada ou tocada pela psicanálise que se manifesta em desdobramentos na cultura. Também não há vestígios de qualquer menção ao viés da saúde mental representado pela redução de danos, perspectiva capaz de oferecer uma visão crítica aos modelos simplistas e moralistas de concepções sobre o consumo de álcool e outras drogas. Vinterberg nos apresenta neste filme uma sociedade em que impera uma mentalidade moderada, sem mesmo tocar na clássica divisão de papéis e funções sociais orientadas segundo heteronormatividade, que corriqueiramente são objeto de atenção e reflexão numa pauta feminista que problematize o machismo neles implícitos.  

“Os especialistas em sua maioria não apenas contribuíram para criar e alimentar este imaginário moralista e demonizador das drogas ilícitas, quanto são moldados por ele”

Se tomamos um olhar crítico sobre a mentalidade dominante e hegemônica, comumente presente na sociedade ocidental em relação ao consumo das drogas, principalmente ilícitas, vemos que há um borramento frente a diferença entre os vários tipos de usos reconhecidos pela OMS (Reale & Carezzato, 2017). Nesta lógica o uso ocasional, recreativo, ou mesmo o uso social passam a ser objeto de uma discreta vigilância ou mesmo, em alguns momentos, de franca repreensão, completamente explícita em relação às drogas ilícitas, e mais veladamente frente ao álcool. Os especialistas em sua maioria não apenas contribuíram para criar e alimentar este imaginário moralista e demonizador das drogas ilícitas, quanto são moldados por ele (Reale, 1997). A força de um imaginário que já completou um século, vem desde a criminalização das principais drogas nas duas primeiras décadas do século XX, e que se reafirmou e atualizou com a declaração da Guerra às drogas feita nos anos 60 por Nixon, (Escohotado, 2004; Carneiro, 2018), não apenas se mantém firme e forte quanto serve de base para disputas político partidárias e ideológicas elegendo ou derrubando candidatos às eleições de cargos políticos. Embora isto não se refira diretamente ao consumo do álcool, certamente reforça uma linha de força moralizante e controladora que também atua sobre as formas de seu consumo . É só lembrar que ainda vivemos uma realidade de atenção à saúde de dependentes de álcool e outras drogas na qual  as comunidades terapêuticas são o tipo de atenção que mais lhes é ofertada. As comunidades terapêuticas se baseiam em grupos de autoajuda, como o clássico e original AA, que praticam os chamados 12 passos; nestes locais, as pessoas que cuidam dos pacientes – não chamados assim – não são profissionais de saúde, mas educadores ex-adictos. 

Comentários finais 

Na pesquisa livre feita no GOOGLE, nem sistemática nem exaustiva, encontramos algumas matérias que apresentavam afirmativas sobre determinados aspectos tratados em DRUK que mostravam uma certa dificuldade em reconhecer os limites entre ficção e realidade. Ter alguma familiariedade com o Manifesto Dogma pode facilitar o reconhecimento no filme da presença de algumas de suas proposições. Estas recomendam adotar uma certa forma técnica do ato de fazer filmes, fazendo determinadas escolhas de conteúdo que visam redundar numa certa estética alinhada por uma determinada pauta ético-política.

Outro aspecto notável é que a relação com o referencial científico e a autoridade médica que aparece de modo tangencial nas menções envolvendo psiquiatras tem uma forma ambígua, sutilmente crítica e invalidante. A tese do 0,05% de álcool faltante no sangue usa uma afirmativa atribuída a um psiquiatra norueguês chamado Skarderud. Apesar de algumas notícias mencionarem que ele gostou e está recomendando o filme (Ebiri, 2021), descobrimos que ele demonstra desconforto com a tal premissa do filme; esclarecendo que a tese foi inventada e se baseia numa leitura rápida e mal interpretada de um prefácio escrito por ele (Palmeira, 2021), sendo equivocada e não científica. Parece impróprio o uso da expressão fake news nesta mesma matéria para se referir a um tema apresentado numa obra de ficção que pode ter sido objeto de um uso deformado ou indesejável, pois coloca no filme um problema que não nasceu nele, mas que se refere a fenômenos comunicacionais contemporâneos, envolvendo as campanhas publicitárias e seus buscados efeitos de ressonância. 

É curiosa também uma certa confusão entre o reconhecimento das características que são próprias à ficção daquelas da realidade que observamos no comentário de uma matéria publicada no site France Musique (Dozolme, 2021). Lendo a matéria percebemos ser possível entender um viés, que pode mesmo ser um erro até proposital do autor do filme: o engano de atribuição quanto ao autor e executante da obra colocada para ser ouvida pelo grupo pelo personagem de Nicolaj. Nicolaj faz um ato falho para estimular o grupo? Nicolaj acredita piamente em sua tese? Ou Nicolaj inventa uma brincadeira de cientista, meio maluco, com os amigos que, tal como ele, parecem precisar de um recreio amplificado, podendo brincar e se divertir durante o horário de trabalho vivenciado como maçante ou sem graça? O autor da matéria (Dozolme, 2021), evidentemente interessado na imagem da música erudita em si, seja por compromissos didáticos na relação com jovens estudantes de música, ou apenas prezando a boa reputação da música erudita, talvez experimentada como tendo sido arranhada pelo filme, não se detém no filme propriamente dito e corrige vigorosamente os equívocos de considerar a criação musical como tendo uma relação virtuosa com o consumo pesado de álcool!

Esta matéria é um bom exemplo de como o filme ao provocar reações negativas, pode convocar um tom didático para corrigir eventuais distorções ou efeitos indesejáveis nos jovens. Podemos antever o temor do autor da matéria que o filme pudesse estimular jovens ao consumo pesado de álcool sobretudo quando estivessem envolvidos com alguma atividade musical, seja execução ou composição! A forma brincalhona, nem sisuda nem séria, de tratar o tema do consumo do álcool no filme, coloca em questão os limites convencionalmente adotados (pelos órgãos reguladores internacionais ou nacionais, de saúde e de trabalho7); este questionamento parece atualizar um desconforto e talvez até medo de que o filme assim fazendo seja uma má influência para os jovens, podendo até ser visto como um convite à transgressão! Quatro professores e adultos são colocados temporariamente mais próximos dos excessos dos adolescentes frente ao consumo do álcool do que encarnando ostensivamente posição de autoridade ou simplesmente reproduzindo os parâmetros da lei e da ordem. A mensagem é que nem todo adulto/professor reproduz uma sensatez contida, um exemplo da ode ao comedimento do consumo – Beba com moderação! Há aqueles que sem perder completamente suas competências profissionais de adultos responsáveis podem adotar ou resvalar em posições contrárias à recomendação tratada como algo ideologicamente constituído já em senso comum, que daria o tom à ‘forma adulta’ ou sensata para beber! Não consigo imaginar um filme melhor para servir de disparador de discussão de questões de fundo que subjazem aos prejuízos e riscos maiores que podem ser associados a determinados tipos de consumos, por determinadas pessoas, em determinados contextos. 

Nestes tempos o obscurantismo graça, perceptível nos pensamentos fundamentalistas e de caráter francamente fascista que são proliferados ao lado da peste viral covidiana. E tudo acontece de forma amplificada pela velocidade de transmissão própria de progressões geométricas ocorridas em redes sociais midiáticas ou de contato social, cujo controle ainda está longe de ter sido instituído de forma efetiva! 

 Nestes tempos, os pensamentos menos simplistas, mais inclusivos e que adotam arcos longos ao invés de retas causalistas e maniqueístas se perdem nestas transmissões que facilitam a predominância de uma leitura rasteira e apressada da realidade. Na Era da Pressa, expressão que busca qualificar nossos tempos a partir da caracterização das formas relacionais contemporâneas em função da categoria tempo (Fazzio, 2021), o simples e o complexo são igualmente nocauteados pelo massificado e alienado capaz de repercutir com milhares de likes. É mais do que bem-vindo, neste contexto, tudo que foge disso e escapa do tensionamento destas forças que ameaçam destroçar pactos sociais mínimos. 

E por isso reafirmo: DRUK é um filme necessário. 


Nota da autora: Um esclarecimento sobre a interrupção da análise do filme neste ponto. Como autora sei que parei arbitrariamente num ponto de inflexão da trama. Reconheço que deste ponto em diante ainda muitos desenvolvimentos acontecem na história dos personagens envolvendo uma sequência de resoluções e impactos na vida pessoal, incluindo a decisão de finalizar o experimento em virtude dos inúmeros prejuízos sociais reconhecidos pelos sujeitos e objeto da pesquisa-ação. Mas a decisão se baseou no fato de que os aspectos que decidi trazer para analisar neste artigo já haviam sido revelados nas cenas que aqui foram trazidas. E assim procedendo, espero ter poupado os leitores de verem desvelados os desdobramentos que tornam a experiência do filme digna de ser apreciada sem interferências saturantes. Afinal o filme merece ser destacado como uma celebração da vida. 


1 Nicolaj propõe um experimento que se aproxima da pesquisa-ação, metodologia usada na psicologia social. Na verdade ela é apresentada e abraçada como uma brincadeira, poderíamos dizer que seria uma pesquisa-brincadeira-ação. A ideia surge como desdobramento de uma conversa no jantar de celebração do aniversário de Nicolaj, regado a bebidas de grande estirpe consumidas fartamente.

2 Mantido o termo português original para se referir a profissão de roteirista.

3 Também mantivemos o termo original, para se referir ao celular.

4 Embora tenha soado estranha, optamos por manter a forma original da colocação pronominal, visto que é uma citação literal.

5 ou pelo Ministério da Saúde da Dinamarca, o que não fica explicitado na cena.

6 É um ponto que não ficou muito claro para mim.

7 Na cena da aula-show de Martim que analisamos acima neste texto.


Referências Bibliográficas

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Belinchón, G. (2021). Thomas Vinterberg: “A morte de minha filha me confirmou que eu deveria rodar uma celebração da vida”. Recuperado de https://brasil.elpais.com/cultura/2021-04-23/thomas-vinterberg-a-morte-de-minha-filha-me-confirmou-que-eu-deveria-rodar-uma-celebracao-da-vida.html

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