Comentários sobre o uso de psicodélicos na clínica

Fabio Carezzato

Após um boom entre os anos 60 e 70, o uso de psicodélicos como ferramenta clínica permaneceu por décadas deixado de lado. Se após a famosa intoxicação por acidente de Albert Hoffman com LSD em 1943 iniciou-se uma grande fase de experimentações com a molécula em diversos contextos, com a declaração de guerra às drogas pelo presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971, houve uma demonização de toda uma gama de substâncias colocadas na ilegalidade, levando a cortes nos financiamentos de pesquisa, perseguição a cientistas e criminalização de praticamente toda atividade que envolvesse psicodélicos. 

Não é por acaso que, apesar de conhecermos diversas dessas substâncias há um tempo considerável, o conhecimento sobre suas propriedades ainda engatinha, especialmente nos campos terapêuticos. Por exemplo, os mesmos obstáculos que impediram o avanço do conhecimento sobre a cannabis bloquearam o estudo sobre todos psicodélicos clássicos como LSD, psilocibina, mescalina e ayahuasca, atrasando a averiguação de seus potenciais como tratamento de diversas patologias, de suas propriedades de cura, assim como de suas limitações e riscos reais, distantes daqueles propagandeados pelo Proibicionismo. Neste meio tempo, além da Ciência, sofreram os prejuízos tanto aqueles que potencialmente poderiam se beneficiar de seus usos terapêuticos, quantos os usuários que tiveram menos acesso às informações referentes aos efeitos dessas substâncias.

Já com pequenos movimentos na década de 90 como os trabalhos de Hermle et al. (1992) Strassman e Qualls (1994) e Vollenweider et al. (1998), mas principalmente nos anos 2000, foram retomados os estudos científicos com psicodélicos. Impulsionado por todo conhecimento registrado em meados do século XX e com o objetivo de colocá-lo à prova dentro dos parâmetros contemporâneos mais rigorosos dos métodos de pesquisa, este campo tem se apresentado como promissor nas áreas da psiquiatria, psicologia e neurociências.  

Epidemiologia e estudos recentes

Estudos que procuram analisar o potencial de adicção de diferentes substâncias têm observado que os psicodélicos têm baixo potencial de gerar dependência, mesmo se comparados a outras drogas. Anthony, Warner e Kessler (1994) publicaram um trabalho epidemiológico famoso por demonstrar que a menor parte daqueles que fazem uso seja de álcool, cocaína ou heroína, tornam-se usuários problemáticos. Neste trabalho pioneiro apontam que 30,1% daqueles que usam tabaco, 23,1% dos que usam heroína, 16,7% dos usuários de cocaína/crack, 15,4% dos que usam álcool, 9,2% dos usuários de ansiolíticos e 9,1% dos usuários de cannabis desenvolvem dependência dessas substâncias, contra apenas 5% dos usuários de drogas psicodélicas. Estudos posteriores descartaram essa classe como tendo potencial de levar a adicção (Nichols. 2016) e levantamentos sobre dependência chegam a não as incluir em suas pesquisas. (Bastos et al. 2017)

Outro estudo procurou classificar 20 substâncias a partir da opinião de especialistas segundo seus riscos potenciais, incluindo mortalidade específica e associada a cada uma, prejuízos para usuário e para a comunidade. Enquanto álcool, heroína e crack foram as indicadas como mais danosas, com scores de 72, 55 e 54 em 100 respectivamente, as drogas psicodélicas incluídas, LSD e Cogumelos alucinógenos ficaram no fim da lista pontuando 6 e 7 respectivamente, sendo o risco majoritário as alterações cognitivas durante a experiência da intoxicação aguda. (Nutt, King, & Phillips. 2010)

Mais do que apresentarem baixos riscos, o uso de psicodélicos aparenta ter potencial de trazer benefícios à saúde mental de seus usuários. Um estudo americano que seguiu 130 mil pessoas, sendo 19.299 usuários de psicodélicos, não só não encontrou associação entre o uso dessas substâncias e maior risco para ansiedade, depressão, ideação ou comportamento suicidas como indicou que o uso de psicodélicos na vida estava associado com menos internações psiquiátricas.  (Johansen. & Krebs. 2015) Outro estudo recente realizado com questionários online indicou que pessoas com histórico de uso de psicodélicos lidaram melhor com o estresse do confinamento da pandemia de covid-19 em relação a pessoas que não fizeram uso (Reves et al. 2021). Nos últimos anos diversos estudos clínicos têm observado efeitos benéficos dessas substâncias em sintomas depressivos e ansiosos (Griffiths et al. 2016; Palhano-Fontes et al. 2019)

Estudos que compararam membros de comunidades ayahuasqueiras também perceberam menos incidência de problemas de saúde mental, inclusive identificaram a participação nestes grupos como fator protetivo para o uso problemático de outras substâncias (Barbosa et al. 2018)

O potencial antiaditivo dessa classe de drogas não é novidade.  Além de alguns estudos iniciais da primeira geração de pesquisas com psicodélicos, temos o caso famoso de Lotsof com a Ibogaína. Participante de um grupo de usuários experimentadores de drogas e usuários frequentes de heroína, Lotsof percebeu que após o uso de Ibogaína ele não sofreu os efeitos típicos da síndrome de abstinência do opioide e teve uma diminuição de fissura. A partir disso começou um trabalho de investigação e disseminação desse conhecimento sobre este fármaco, que, no entanto, esbarrou nas políticas proibicionistas e na preocupação sobre seu risco de gerar problemas cardíacos. (Brown 2013) 

O uso terapêutico dos psicodélicos para dependências também foi tema de estudos mais recentes com protocolos seguindo as normas atuais de rigor científico. Dois estudos avaliando a eficácia de tratamentos assistidos com psilocibina para diminuição do uso de álcool e de tabaco apresentaram resultados positivos (Bogenschutz et al. 2015, Johnson, Garcia-Romeu, Cosimano, & Griffiths. 2014).

Porém, os mecanismos pelos quais se dão os efeitos dos psicodélicos ainda não são claros. Para iniciar essa exploração, um ponto de partida interessante é tentar entender o que diferencia os psicodélicos de outras drogas de uso recreativo e abusivo. 

Classes de drogas psicoativas

Tradicionalmente as drogas psicoativas são classificadas como estimulantes, depressoras ou perturbadoras do sistema nervoso central (SNC). Isto diz respeito ao efeito principal que cada substância provoca no cérebro, não estritamente relacionado ao comportamento apresentado durante a intoxicação. Por exemplo, o álcool em certa dose pode deixar pessoas mais eufóricas e energizadas, mas é um depressor, enquanto a cannabis tem fama de ser relaxante, mas é classificada como perturbadora do SNC. 

“Ora, se estamos tentando compreender o fenômeno do uso descontrolado de drogas para além de um simples desarranjo na circuitaria de recompensa, como podemos desconsiderar o efeito subjetivo bastante diverso ocasionado por cada classe, senão por cada substância?”

É frequente, inclusive nas discussões clínicas e na psicanálise, que ao se falar de adicção, se fale em drogas como um termo geral. Ora, se estamos tentando compreender o fenômeno do uso descontrolado de drogas para além de um simples desarranjo na circuitaria de recompensa, como podemos desconsiderar o efeito subjetivo bastante diverso ocasionado por cada classe, senão por cada substância? As alterações perceptivas, mudanças de posicionamento do eu para com sua realidade, gozos e experiências provocadas pelo uso dessas drogas pode permanecer indiferenciada?  

Talvez algumas divergências conceituais do campo das adicções são consequência de uma teorização baseada em experiências clínicas restritas a populações específicas, seja em relação à substância utilizada ou a contextos, como os de extrema vulnerabilidade social, que indicam a presença de múltiplos fatores interagindo de forma complexa e sobressalente na modulação dos efeitos que equivocadamente são atribuídos à droga em si.

Considerando que toda experiência com drogas é influenciada não só pelos seus aspectos farmacológicos, mas também pelo contexto em que se dá e pelas características da pessoa que faz uso, é delicado fazer apontamentos gerais sobre os efeitos de uma intoxicação. Mas, também, não podemos retirar um dos vértices da equação. Tanto pela ação sobre o SNC quanto pelos aspectos culturais que circundam o uso de cada droga, podemos tentar fazer um pequeno esboço de como cada classe pode gerar influência 

A intoxicação por estimulantes de forma geral, como anfetaminas, cocaína e crack trazem consigo uma sensação de totalidade, uma euforia, uma autoconfiança. Relatos de uma sensação de onipotência, que aproxima das experiências infantis. Aumento da libido, impressão de maior produtividade e energia acompanham esse uso. 

Já as drogas depressoras, como álcool, heroína e benzodiazepínicos, em geral tem efeitos em duas fases. Uma primeira, fruto de depressão de áreas inibitórias do SNC, com algo eufórico. Posteriormente, uma sensação de anestesia, relaxamento, amortecimento. 

Já os psicodélicos fazem parte da categoria de perturbadores do SNC, junto com outros fármacos, por exemplo os canabinóides e empatogênicos. Essa categoria tem como característica modificar de maneira qualitativa o funcionamento de processos cerebrais. Alteram a percepção de estímulos sensoriais e emocionais, criando uma experiência estética diferente das outras categorias de drogas.

Os psicodélicos por sua vez, são divididos entre delirantes, dissociativos e clássicos. Delirantes, como a atropina, em geral tem uma atuação colinérgica que costumam induzir confusão mental, com quadros mais próximos do delirium orgânico. Os psicodélicos dissociativos, como o nome já diz, trazem a sensação de dissociação, de afastamento da realidade, como a Ketamina. De maneira interessante, esta última, que traz uma certa anestesia como os depressores do SNC, é uma droga com potencial significativo de dependência. (Tofoli & Araujo. 2016).  A Ibogaína apesar de classificada como dissociativa, tem uma farmacodinâmica complexa (Tofoli & Araujo. 2016)  e uma experiência subjetiva singular que faz com que a aproximemos dos psicodélicos clássicos, que vamos analisar neste artigo.

A experiência de êxtase que está ligada ao uso certamente tem um peso, inclusive no caráter pulsional de sua repetição e no fenômeno de “urgência” que percebemos em muitos casos. Porém não se pode dizer que drogas com baixíssimo potencial de dependência não proporcionam picos de prazer até maiores que muitas outras cujos usos levam pessoas a procurar ajuda. Pelo contrário, foi observado em um estudo que experiências com LSD e MDMA foram mais prazerosas, intensas e estimulantes do que as com anfetamina, sendo que a última tem maior potencial de adicção. (Holze et al. 2020)

Este trabalho não se propõe a debater com profundidade as bases da adicção, até por diferenças bioquímicas que devem ser consideradas. Mas, certamente, se não é pelo simples gozo imediato que pode proporcionar a droga, se há essa distinção de efeitos subjetivos, a exploração do que é proporcionado pelos psicodélicos clássicos em contraposição com outras classes de substâncias pode contribuir para uma compreensão mais apurada dos fenômenos psíquicos que levam ao uso descontrolado de outras. 

O objetivo deste texto será apresentar o que é descrito sobre o uso terapêutico dos psicodélicos clássicos, os diferentes mecanismos pelos quais eles podem atuar e tecer comentários a este respeito sob a perspectiva de uma psicanálise lacaniana.

Aspectos bioquímicos

Os psicodélicos clássicos, como LSD, psilocibina, mescalina e ayahuasca, têm principalmente uma atuação serotoninérgica. Esse aspecto os aproxima das medicações psiquiátricas antidepressivas e alguns estudos atuais têm investigado essa característica como via terapêutica para sintomas ansiosos e depressivos. Dentro deste paradigma, muitas vezes os aspectos subjetivos da experiência são desconsiderados, sendo vistos como um artefato ou até como indesejados. Assim, tratamentos com microdoses, ou seja, doses abaixo do necessário para levar a alterações de percepção e do estado de consciência, ou com moléculas teoricamente similares, mas que não produzem psicodelia, são propostas nesta linha.

Assim, este uso das drogas têm o mesmo lugar dos tratamentos com fármacos tradicionais, visando o alívio de sintomas. Apesar de ser controversa a efetividade para além do efeito placebo dos tratamentos com microdoses, foram observadas respostas no sistema nervoso e há relatos de usuários que percebem melhora na disposição, em sintomas de humor e outros processos mentais. (Ona & Bouso 2020) 

“Assim, este uso das drogas têm o mesmo lugar dos tratamentos com fármacos tradicionais, visando o alívio de sintomas.”

Também parece sensato entender que essas substâncias, até por compartilharem vias de ação com algumas medicações já estudadas e disponibilizadas pela indústria farmacêutica, também podem causar modificações em processos de doença não necessariamente por suas características psicodélicas. Ambas atuam na neuroplasticidade e têm poder de influenciar o aumento de sinapses (Olson 2020), assim como têm propriedades que diminuem a resposta afetiva a situações negativas. (Tofoli & Araujo 2016) 

 Fica a questão se não se pode considerar que há uma mudança na experiência subjetiva em pessoas sob efeito de medicações comumente prescritas, como os antidepressivos inibidores da recaptação da serotonina. Pacientes em uso dessas drogas relatam uma alteração na percepção do ambiente, percebendo-se mais tolerantes a imprevistos e frustrações, mais dispostos para atividades e menos suscetíveis a influências do ambiente. 

No caso das adicções a drogas, como notado por Lotsof com a Ibogaína, podemos enxergar uma ação também por vias neuroquímicas. A Ibogaína tem ação secundária sobre receptores opióides e dopaminérgicos, o que explica os efeitos mais imediatos de alívio dos sintomas de abstinência de heroína e de atenuação da fissura. Picos de ação serotoninérgica de outros psicodélicos também pode ter efeitos semelhantes;

Assim, os psicodélicos despertam interesse como medicação psiquiátrica por possíveis vias de ação inovadoras. Porém, para além da questão do que é causa e o que é consequência entre experiência e processo neurofisiológico, podemos entender que há algo a mais proporcionado pela substância psicodélica que não pode deixar de ser levada em conta. 

Terapias assistidas por psicodélicos clássicos

Para além de seu uso como medicação, os psicodélicos clássicos têm sido estudados e experimentados como “auxiliares” de processos psicoterapêuticos. As terapias assistidas por psicodélicos são classificadas de acordo com a dose e frequência em que estas drogas serão administradas. 

As terapias psicolíticas são aquelas em que doses baixas, mas já com efeitos claros sobre a mente, diferente, portanto, das microdoses, são utilizadas na maior parte ou em todas as sessões. A ideia seria “quebrar defesas, inibições e aperfeiçoar o tratamento psicanalítico, ao promover associação livre e intensificar a transferência”.  (Edmundo, 2020).  Já nas terapias psicodélicas, são usadas doses altas para buscar experiências de pico. 

Bom, dentro desses parâmetros, para além do estímulo à associação livre, para qual uma boa técnica prescinde de químicos, é difícil de entender o processo psicolítico, como próximo da psicanálise. O uso de um subterfúgio para atenuar defesas é algo que Freud se deparou no início da sua carreira em relação à hipnose. Sendo utilizada como meio de acessar memórias recalcadas e obter a ab-reação, foi descartada de início no método psicanalítico. Ao atropelar as resistências, também se atropela os conflitos que fizeram este conteúdo ser recalcado, questão mais crucial para psicanálise do que o conteúdo em si.  

Na primeira fase, a da catarse de Breuer, o foco era colocado sobre o momento da formação do sintoma, e havia o esforço persistente em fazer se reproduzirem os processos psíquicos daquela situação (…) Recordar e ab-reagir, com auxílio do estado hipnótico, eram então as metas a serem alcançadas. Em seguida, depois da renúncia à hipnose, impôs-se a tarefa de descobrir, a partir de pensamentos espontâneos do analisando, o que ele não conseguiu recordar. A resistência seria contornada mediante o trabalho de interpretação (…) a ab-reação caía para segundo plano, parecendo substituída pelo dispêndio de trabalho que o analisando tinha que fazer, na superação da crítica a seus pensamentos espontâneos a que era obrigado (…). Por fim se formou a técnica coerente de agora, na qual o médico renuncia a destacar um fator ou problema determinado e se contenta em estudar a superfície psíquica apresentada pelo analisando, utilizando a arte da interpretação essencialmente para reconhecer as resistências que nela surgem e torná-las conscientes para o doente. (Freud 1913/2019 pg 194-195)

Apesar de, teoricamente, transferência e vínculo serem conceitos diferentes, podemos supor que esse “fortalecimento da transferência” se refere a uma forma de criar mais confiança entre a pessoa que busca tratamento e o profissional, como uma maneira de facilitar a “confiança”. Por exemplo, isso é o que se dá nas terapias assistidas com MDMA. Estas terapias têm se mostrado de imenso valor para pacientes vítimas de traumas. O MDMA, substância empatogênica e não psicodélica, consegue por seu efeito mediado pela liberação de ocitocina que os pacientes narrem suas experiências em um, digamos, “ponto ótimo” de angústia, evitando os fenômenos frequentes nestes casos de dissociação ou crises emocionais que impediriam o seguimento das sessões. Seu uso tem sido feito em um contexto de terapia cognitivo comportamental, que foca na revivência da experiência traumática em um setting acolhedor como forma de extinção dos afetos associados e elaboração do ocorrido.  

Ao mesmo tempo que é muito importante reconhecer o valor dessa nova modalidade de tratamento, é preciso também reconhecê-la como focada em atenuar os sintomas, incapacitantes com certeza, desses pacientes. Também aqui vemos uma aproximação com as técnicas de hipnose em que o objetivo maior é o alívio sintomático. 

Porém, a extinção de sintomas não é a direção do tratamento psicanalítico. Se muitas vezes a proeminência destes pode dificultar o progresso de uma análise, sendo necessário inclusive terapias de suporte como a psiquiatria, em nenhum momento o analista pode perder de vista a centralidade do sintoma e sua constituição, não pode considerar o sintoma algo a se apagar. 

A intensificação da transferência também é algo bastante controverso. É importante lembrar que, se de alguma maneira Freud a coloca como motor do tratamento, ele também enfatiza a transferência como resistência. (Freud 1914/2010) Aponta que é a partir do fenômeno de transferência que o paciente passa a uma compulsão à repetição em ato, que substitui o recordar. Também sobre a “intensificação da transferência”, pode se dizer que ela pode propiciar uma saída sintomática ao conflito pulsional, a partir de uma identificação com a suposta demanda do psicoterapeuta ou analista. 

Na prática, essa elaboração das resistências pode se tornar uma tarefa penosa para o analisando e uma prova de paciência para o médico. Mas é a parte do trabalho que tem maior efeito modificador sobre o paciente e que distingue o tratamento psicanalítico de toda influência por sugestão. (Freud 1914/2010, pg 209)

Os fenômenos transferenciais aumentam a sugestionabilidade do paciente, o que muitas vezes é utilizado para a melhora de sintomas. O próprio alívio daquilo que fez a pessoa procurar tratamento, alinhado com um suposto desejo do profissional, pode ser um caminho para não ter que lidar com os conflitos que os geraram.

Também é reconhecido que os estados de alteração de consciência provocados pelos psicodélicos aumentam esses efeitos de sugestão. Nos tratamentos médicos discutimos muito o uso do efeito placebo a favor da melhora, aproveitando dos fatores extra farmacológicos para alcançar as metas de alívio de sintomas buscadas por quem procura o atendimento. 

Podemos olhar mais de perto esses efeitos da sugestão a partir da análise de dois casos trazidos por Bruno Ramos Gomes (2016) no livro O uso ritual da ayahuasca na atenção à população em situação de rua baseado em sua dissertação de mestrado.

Sugestão e identificação com o terapeuta 

Neste livro, o autor oferece um panorama sobre a Ayahuasca no Brasil, desde aspectos históricos de seu uso e das religiões ayahuasqueiras, situação legal e uso terapêutico dessa droga. Relata, também, sua experiência seguindo propostas de tratamento com uso deste chá. Apresenta-nos dois casos de pessoas em situação de rua que faziam uso problemático de álcool, no primeiro caso, e de crack, no segundo, e que participaram de um grupo no qual se organizavam rituais com o uso da ayahuasca. Era um grupo baseado na Igreja do Santo Daime, mas que incorporou outras práticas e singularidades. 

Sua pesquisa, focada no efeito terapêutico da substância “enquanto algo que é ingerido por alguém desde sempre inserido em uma trama social” (Gomes, 2016, p. 49), parte de perspectivas das ciências sociais e da fenomenologia, contribuindo bastante para nosso tema com uma preocupada descrição dos fenômenos e de sua contextualização social e cultural, a partir da observação do trabalho de uma ONG e entrevistas com participantes.. 

É rico o registro que faz dos casos de Paulinho e Rogério, que tentarei resumir para depois podermos nos ater a alguns pontos ilustrativos para nossa discussão. Como não temos experiência clínica em casos de uso terapêutico de psicodélicos, optamos por trazer estes relatos bem construídos pelo autor, com grande riqueza de detalhes. Se por um lado utilizaremos os casos para construir uma discussão pelo olhar da psicanálise, isso é um acréscimo ao bom debate proporcionado por Gomes.

 Paulinho nasceu no interior do Paraná, crescendo em uma família na qual se fazia grande uso de álcool e, também, envolto em questões sobre sua sexualidade. Saiu de casa aos 18 anos, foi para o litoral de São Paulo, onde começou a ter relações sexuais com outros homens. Desde sua primeira transa homossexual trazia preocupações quanto a ter contraído HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST). Veio à capital paulista, onde teve um período de 4 anos com aumento de consumo de álcool e abstinência sexual que “considerava um mérito” (Gomes, 2016, p.117). 

Ficou em situação de rua após demissão associada ao seu uso de drogas. O álcool era ferramenta de socialização e, a partir de certo ponto, retomou sua vida sexual com outros homens. Nesse momento teve contato com o projeto estudado por Gomes. 

O autor registra relatos de Paulinho sobre efeito do Daime¹, um fragmento de experiência em que se via como macaco em meio a monstros, que perdia a capacidade de falar e só urrava, que em um dado momento enxergava um grupo de macacos “andando tudo certinho” e que tinha um ímpeto de se aproximar dele, mas que tinha medo: “vai que eles fossem me tratar mal, e eu não sabia o que tinha lá do outro lado”. Acrescenta que apesar do sofrimento com essa experiência, Paulinho tinha retornado para outros rituais pois o Daime teria mostrado seus problemas, dando-lhe esclarecimentos sobre sua vida e lhe ajudado a “entender isso de ficar transando com homens”. (Gomes, 2016, p. 121-122) Sublinha que, para ele, a melhora não estava associada a uma mudança dos comportamentos, mas também a uma mudança de percepção sobre estes.

Essa propriedade pode ser ressaltada como um potencial de aumento da capacidade de insight. Mas, se também entendemos isso como uma via de cura, é importante salientar que esta experiência de olhar para algo que se repete, para situações infantis que permanecem no presente, é um primeiro momento, uma entrada em análise e não uma resposta ou resolução do conflito pulsional. 

No restante do relato vemos alguns pontos que merecem ser ressaltados. Gomes narra que para Paulinho a importância do trabalho com a organização passava por ela “servir como referencial a ser seguido por ele”, com “profunda admiração pelos curadores” que seriam um “modelo ideal a ser seguido”. 

Ele então iniciou um esforço para se tornar um curador, bastante atrelado a fazer rituais de limpeza e se aproximar desse “modelo”:

(…) ficar transando com homem e bebendo não combina com ser um curador.

“Quase que eu fui um curador, por muito pouco mesmo. Fiquei quase cinco anos sem transar e tentando não beber. Depois disso, mais uns três anos só transando bem de vez em quando, poucas vezes ao ano.” (Gomes 2016, p 124)

Percebemos como atua aqui a alienação a um ideal, que o orienta a uma via moral. Muito interessante notar, como ressalta o autor, que esses padrões morais não eram os do grupo, que não recriminava a homossexualidade. Tratavam-se de ideais do próprio participante. Relatava que o controle de sua conduta era “importante para que evitasse sofrimento nos rituais de Daime” (Gomes, 2016, p. 125)

Vemos como, nesse caso, a experiência com o psicodélico intensifica uma instância vigilante que o julga e pune seus comportamentos que não cabem no ideal da figura do curador com que se identifica, ou melhor, na qual se agarra.

“Vemos como, nesse caso, a experiência com o psicodélico intensifica uma instância vigilante que o julga e pune seus comportamentos que não cabem no ideal da figura do curador com que se identifica “

 Interessante notar que Paulinho não interrompeu o uso de álcool. Quando bebia “fazia coisas de que se arrependia”, como transar com homens, e depois retornava ao grupo em busca de uma “limpeza”. Vemos aí um arranjo precário entre a pulsão e os ideais que o orientam no laço social. 

Rogério, o segundo caso relatado e acompanhado por Gomes, acumulava desde a adolescência conflitos no trabalho e com figuras de autoridade, motivado por uma sensação de injustiça, significante este presente ao longo de todo o relato. 

Já bebia desde antes dos 15 anos e, na situação de desemprego, iniciou o uso de outras drogas. Com pouco mais de 18 anos, desistiu de procurar emprego, com a justificativa de que ninguém o aceitava, e passou a frequentar festas a maior parte do tempo. Nesse momento, enfraquecem os laços com a família, o que, bem apontado pelo autor, deixa mais atraente “a sociabilidade de rua” (Gomes, 2016, p 132). Apresentou conflitos com as donas de pensão em que morava com o pai. Os problemas aumentaram até Rogério ser expulso de casa pelo genitor, indo morar na rua. Lá iniciou o uso de crack, que foi se intensificando até o uso constante. Recebeu oportunidades de acolhimento e emprego, mas terminava sempre rompendo com essas relações por se sentir injustiçado de alguma maneira. 

Foi encaminhado para uma comunidade terapêutica, onde conseguiu manter um tratamento, motivado pela “perspectiva de começar a pertencer ao grupo” (Gomes. 2016, p 136). Esse ponto, que não será explorado por ser tangente ao objetivo deste artigo, não deixa de ser importante, visto que muitos usos de drogas proporcionam entradas em comunidades, culturas e religiões, sendo este um fator terapêutico por si só. 

Abandona a comunidade por “medo de que o mandassem embora” após perceber uma movimentação dos profissionais para que começasse a procurar emprego e lugar para morar. Na forma como se deu essa saída, podemos enxergar a repetição da relação com o pai, evidenciada também por Rogério roubar canetas da instituição, vendidas para comprar crack, assim como roubou objetos da casa do pai. Interrompe assim um período de quase um ano e meio abstinente. (Gomes, 2016, p 136) 

Chega a passar um tempo preso, nega associar-se ao crime organizado, apontando que não é qualquer pertencimento que basta. Ao sair, tem contato com a instituição seguida pelo autor, onde irá manter sua trajetória de conflitos. Tem suas primeiras experiências com Daime em que relata que “parecia criança”, desrespeitando regras e ameaçando ir embora. (Gomes, 2016, p 141). O acolhimento da organização apesar de sua atitude é narrado por Rogério diversas vezes. Porém, os desentendimentos vão aumentando até gerar uma nova expulsão, com Rogério se sentindo injustiçado, e, como se repete ao longo de todo relato, isto é acompanhado de pioras no quadro de uso compulsivo de crack. 

Rogério também conta de um espelhamento nos curandeiros e um medo de ser punido pelo Daime. Nessa nova situação de pertencimento, aparecem novamente os fenômenos de identificação (com indivíduos ou grupos) e transferência, que sustentam períodos de abstinência. De certa forma, o trabalho com a substância de uma maneira contextualizada dentro de uma instituição que se propõe como de recuperação, pode sustentar a abstinência de drogas a partir dos ideais.  A repetição de Rogério da relação com a família nas diversas comunidades em que se sentiu pertencente ilustra bem o entendimento da transferência como motor de repetição em ato e resistência. 

Além disso, as diversas pioras após suas separações, mesmo quando encabeçadas pelo próprio Rogério, ou seja, não apenas após expulsões, demonstra também fragilidade de tratamentos intensamente investidos pelas vias da sugestão e do fortalecimento da transferência: quando cai o mestre, quando a crença é abalada, o resultado e as mudanças não se sustentam, indicando ausência de elaboração psíquica.

É o que ocorre nas saídas pela religião, por grupos de ajuda mútua e tratamentos similares. É preciso manter o vínculo, a crença e a identificação com afinco para que o efeito sobre o sintoma não caia em ruína. 

É importante a reflexão sobre a sugestão ao se discutir as terapias assistidas com psicodélicos porque as pessoas sob o efeito desses fármacos ficam mais suscetíveis à sugestão. Por vezes os psicodélicos são até mesmo indicados como catalizadores hiperativos da resposta placebo (Carhart-Harris et al 2014, Hartoghson 2016). 

Assim, principalmente modalidades de psicoterapia que trabalham com a ideia do terapeuta como modelo para o paciente ou que tendem a uma direção do tratamento normativa podem amplificar esta via de efeito dos psicodélicos. 

Nos casos relatados, de pessoas em situação de rua, intervenções que criem uma sensação de pertencimento, ou mesmo um sentido na vida, são válidas e muitas vezes necessárias para se iniciar um processo de cura. 

Para além dessas situações e casos mais delicados, se em alguns momentos é necessário agir sobre o sintoma para permitir o prosseguimento do tratamento ou evitar prejuízos grandes ou irreversíveis para o paciente, neste tópico é importante lembrar a pontuação de Freud a este respeito:

Para o leigo, os sintomas constituem a essência da enfermidade, e a cura é, para ele, a eliminação dos sintomas. Para o médico, importa diferenciar os sintomas da doença, e a remoção dos sintomas, afirma ele, não é a cura da doença. Eliminados os sintomas, porém, o que resta de palpável na doença é apenas a capacidade de formar novos sintomas (Freud 1917/2014 p 475)

Para além da eliminação dos sintomas, o tratamento psicanalítico busca um reposicionamento do sujeito diante de suas repetições através da elaboração de sua doença.

No caso dos psicodélicos, sua contribuição singular nesta direção de tratamento é a própria experiência psicodélica.

A experiência psicodélica

Como falamos anteriormente, sob efeito dos psicodélicos, processos que seriam inibidos em nosso estado regular alcançam a consciência. Realmente foi observado que essa classe de drogas tem o potencial de trazer à tona pensamentos e memórias que normalmente não são acessados. Isso foi registrado em estudos neurofisiológicos como maior estimulação somatossensorial; menor atividade nas regiões do cérebro que levam à inibição de processos afetivos e de memória; e uma mudança na conectividade cerebral. (Barnett, Muthukumaraswamy, Carhart-Harris, & Seth. 2020; Carhart-Harris et al. 2012). 

Mais do que uma lembrança comum, essa intensidade perceptiva leva a uma sensação de revivescência que parece ser fundamental para a mudança subjetiva: 

“Eu estava me concentrando nas minhas memórias, mas não tinha o mesmo envolvimento emocional e não as visualizei de forma tão realística como na semana passada (sob efeito de psilocibina) (…)

Penso que minha imaginação teve muita influência da outra vez, mas parecia mais vívida, mais real… Eu estava mais conectado com as imagens e me colocando mais na cena daquela vez do que hoje (sob placebo). Hoje estava… estava pensando sobre elas, foi bom, mas não foi nada especial – nada novo veio disto” (Carhart-Harris et al. 2012, tradução nossa)

Este relato sugere que não é a simples recuperação da memória que tem efeito transformador, mas o estranhamento causado pela vivacidade da experiência. 

Beserra e Vieira (2020) indicam que o potencial dos psicodélicos seria o de fazer emergir do Inconsciente para a Consciência “potenciais inexplorados, imagens e afetos que sequer sabíamos que existiam” para que estes possam ser “integrados” e, então, transformar os sujeitos. Apontam para a “habilidade dos psicodélicos na redução de mecanismos de inibição de imagens, emoções e memórias do inconsciente”. (Beserra e Vieira 2020 p 31-33)

Vale salientar que existe um entendimento de Inconsciente para a psicologia analítica e algumas linhas da psicanálise inglesa e para a psicanálise freudiana e lacaniana. Para estas últimas, o Inconsciente não é um reservatório de conhecimento onde a verdade sobre si mesmo está escondida, nem tem uma concepção holística de trazer contato com algo universal, nem que o acesso a ele permitirá compreender as relações neuróticas e comportamentos do sujeito, permitindo uma integração. É uma instância psíquica com leis próprias onde ocorrem processos que produzem efeitos de estranhamento, de lapso, de lacuna na consciência, sendo a investigação do inconsciente uma via de explicitação da divisão subjetiva. 

Também vale aqui mais uma distinção importante: esses processos que emergem, isso que pode ser entendido como inconsciente não é necessariamente da ordem do recalcado. Assim como o sentimento amoroso que pode surgir de uma experiência com drogas empatogênicas como o MDMA pode não se correlacionar a uma emoção reprimida (como diz a frase dos amantes do carnaval: “não era amor, era MD”), pensamentos e afetos produzidos pelos psicodélicos, muito influenciados pelo ambiente e setting, não são propriamente conteúdo recalcado, mas também produções daquele momento. 

Em um paralelo, porém, com a ideia de “potencialidades” a serem descobertas, podemos pensar que esse movimento de estar no mundo de uma forma diferente proporciona uma vivência estética, que pode marcar uma flexibilização de processos mais rígidos. Podendo se relacionar e ser influenciado pelo mundo de uma forma diferente do habitual, surge um hiato que questiona. Nesse sentido é interessante o relato de usuários de psicodélicos de sensações de incerteza e desorientação.

“assim o potencial terapêutico destas substâncias estaria na sua habilidade de romper padrões estereotipados comportamentais ou de pensamento ao perturbar a atividade cerebral que lhes é subjacente. “

Uma hipótese sobre esse fenômeno é que o uso de psicodélicos causa um estado de maior desorganização cerebral, de maior entropia em que os processos cerebrais estariam em um estado mais suscetível a perturbações externas e mais propenso a efeitos em cascata, assim o potencial terapêutico destas substâncias estaria na sua habilidade de romper padrões estereotipados comportamentais ou de pensamento ao perturbar a atividade cerebral que lhes é subjacente.  (Carhart-Harris et al. 2014) 

A intensificação desse processo levaria a experiências de pico que são descritas com o consumo dessas drogas e que são associadas muitas vezes a melhoras clínicas, como sensação de bem-estar, mudanças comportamentais e insights. 

Isso se iniciaria pelas mudanças sensoriais características das experiências psicodélicas, em que ocorreria um aumento das informações perceptivas sem uma proporcional intensificação do processamento, causando efeitos alucinógenos e alterações no sentimento de integridade do Eu. Isso seria característico dos psicodélicos clássicos, não sendo observado em outras classes de drogas, como as sedativas e dissociativas. 

Preller e Vollenweider (2016) vão dividir o evento psicodélico em etapas apontando quatro processos principais: o aumento da estimulação sensorial, ativação de emoções básicas e memórias autobiográficas (que podemos entender como consequência da ativação perceptiva), uma regressão das “funções egóicas”, seguido de uma produção imaginária, simbólica e de sentido. 

Essa primeira etapa, de estimulação sensorial, pode estar relacionada com as experiências somáticas e de perda da unidade corporal que são muitas vezes descritas, desde sensações de frio, calor ou prazer, até a impressão de separação de membros ou de que algumas partes de seu corpo não lhe pertencem. Em doses altas isso poderia levar a uma sensação de fragmentação e aniquilação do Eu, provocando uma sensação grande de ansiedade. (Preller & Vollenweider 2016) 

Não é difícil notar a semelhança com a experiência psicótica, que também traz consigo a perda das barreiras do Eu com o mundo, a fragmentação e alterações sensoperceptivas. Isto é evidente desde o início das investigações com psicodélicos em meados do século XX, quando umas das primeiras aplicações estudadas foi o uso destas substâncias como psicotomiméticos. (Beserra & Vieira 2020)

Pode-se compreender isto se considerarmos que uma das características da psicose é a precipitação de uma significação para algo que não pôde ser previsto. Em um modelo neurobiológico isso é ilustrado pela ideia de saliência aberrante. Saliência seria a importância que nosso processamento cognitivo daria para as informações perceptivas que chegam até nosso SNC. Por exemplo, ao entrar em uma sala, o que chamaria geralmente nossa atenção seriam as pessoas presentes e os objetos que intencionamos utilizar, deixando de lado em um primeiro momento, itens de decoração. Na psicose é comum que algo aparentemente sem valor tenha destaque, por exemplo uma pequena miniatura de madeira em uma estante, e a insistência deste destaque seria o motor para a criação de um sentido delirante, como o de entender que a presença dela na sala é a prova de que alguém ali quer assassiná-lo. Esse processo se daria pela falha em lidar com a incerteza sobre a informação sensorial. (Corlett, Taylor, Wang, Fletcher & Krystal. 2010)

” Esse processo incorre em um erro de previsão, que abre um hiato na vivência do sujeito e permite uma nova significação das experiências. Isto somado a uma conectividade alterada dos pensamentos cria associações novas para o sujeito, abrindo possibilidade de uma reorientação no campo da realidade. “

Diversos relatos de experiências psicodélicas descrevem um interesse aumentado em pequenos detalhes, em cores exacerbadas, em cenas que ordinariamente passariam batidas, sugerindo que um processo de alteração da saliência ocorre sob o efeito dessas drogas. Esse processo incorre em um erro de previsão, que abre um hiato na vivência do sujeito e permite uma nova significação das experiências. Isto somado a uma conectividade alterada dos pensamentos cria associações novas para o sujeito, abrindo possibilidade de uma reorientação no campo da realidade. 

De uma maneira interessante, esses fenômenos de saliência aberrante foram correlacionados por Wießner e colegas (2021) em uma pesquisa recente com outro fenômeno da experiência de pico psicodélica próximo da psicose que, por sua vez, tem sido apontado como importante para mudanças sustentadas: a dissolução do ego. Como poderíamos imaginar pelo que discutimos acima, não foi encontrada associação destes fenômenos psicodélicos com a sugestionabilidade em si, visto que esta implica uma alienação na completude e por uma via de identificação com o outro e seu desejo, que é o inverso deste movimento de quebra.  

Desta forma, podemos entender que a singularidade da experiência psicodélica, que abarca a potencial contribuição dessas substâncias para clínica, é esse abalo estrutural a partir de uma sobrecarga sensível que desintegra o campo da realidade e abre um furo que demanda uma nova significação.

Na mesma linha, essa pesquisa aponta algo similar:

Para além disso, a correlação da saliência aberrante com experiências místicas e dissolução do ego pode apontar para mecanismos em comum entre as experiências psicótica, terapêutica e psicodélica.

Especificamente a saliência aberrante induzida por LSD pode aumentar a atribuição de significação, diminuir os limites do ego e mecanismos de defesa, permitindo mudanças terapêuticas em perspectivas e comportamentos  (Wießner et al. 2021, tradução nossa)

Assim, entendemos de maneira muito similar o processo psicodélico. Apesar de discordar do destaque dado ao fenômeno de diminuição dos mecanismos de defesa e considerá-lo como algo distinto dessa “experiência psicótica”, a correlação apontada pelo estudo indica o que é essencial e deve ser aprofundado para construirmos uma hipótese sólida do efeito clínico dos psicodélicos. 

Se Wießner e colegas aproximam a dissolução do ego e experiência mística, por outro lado, pode-se enxergar a experiência mística não como o mesmo fenômeno nomeado por outra perspectiva, mas sim como uma saída possível do evento psicodélico, já uma significação. O próprio grupo já aponta algo neste sentido ao ver como semelhança entre as vivências da esquizofrenia e da intoxicação por LSD uma sensação de estar se aproximando de uma verdade ou de uma verdadeira percepção do mundo.

As experiências místicas são compreendidas como uma sensação de unidade do todo, de conexão com o universo e com o sagrado. Pode-se entendê-la como uma significação atribuída, assim como ocorre a atribuição de um significado delirante na psicose. 

Ao comentar sobre este aspecto, alguns autores aproximam a experiência mística ao “sentimento oceânico” descrito por Freud (Carhart-Harris et al. 2014). Podemos da mesma forma proceder com a análise que o próprio psicanalista faz desta experiência. Ao descrever esse sentimento no texto “Mal-Estar na Civilização”, Freud (1930/2010) fala de uma “sensação de eternidade, um sentimento de algo ilimitado, sem barreiras”, de um “sentimento de vinculação indissolúvel, de comunhão com todo mundo exterior”. Traça uma oposição entre uma massa de sensações e a consolidação de um Eu, de modo interessante e similar a nossa pesquisa, indicando a existência primordial de um sentimento de “ligação do Eu com o mundo em torno”

“Se é lícito supormos que esse primário sentimento do Eu foi conservado na vida psíquica de muitos homens – em medida maior ou menor-, então ele ficaria ao lado do mais estreito e mais nitidamente limitado sentimento do Eu da época madura, como uma espécie de contraparte dele, e os seus conteúdos ideativos seriam justamente os da ausência de limites e da ligação com o todo, os mesmos com que meu amigo ilustra o sentimento “oceânico”” (Freud 1930/2010, p. 19)

O autor aponta esse sentimento oceânico como a energia que seria fonte da religiosidade, associando a sensação de totalidade com o universo com o caminho da religião para negar a ameaça do mundo externo para o Eu, fazendo um paralelo com a prática de meditação e ioga nas quais também ocorreria um afastamento do mundo externo e o aparecimento de um sentimento de universalidade a partir da fixação da atenção nas funções do corpo e o despertar de novas sensações.

 Ao entender a religião como uma forma de proteção paterna ao desamparo infantil, indica que essa saída afasta o potencial do sentimento oceânico de reestabelecer um narcisismo ilimitado. A religião, como entende Freud, esclarece os enigmas do mundo e garante uma compensação às frustrações da vida, é um recurso para suportar a miséria humana comum a todos nós, também propiciando uma resposta ilusória a uma questão central do sofrimento humano: qual a finalidade da vida? Aproxima a construção destas respostas à construção do delírio na psicose, no qual se corrigiriam traços inaceitáveis do mundo, alterando a realidade. 

Há na experiência psicodélica uma intensificação das percepções que produz um efeito estético de maravilhamento com o mundo. Isto pode também contribuir com a organização e significação do evento de estado alterado de consciência como místico, como sinal de uma completude, que traz um alívio do sofrimento a partir de uma alienação das questões humanas. 

Assim podemos diferenciar a experiência de dissolução do Ego, fruto de uma sobrecarga de sensações, fragmentação corpórea e perda das barreiras entre mundo interno e externo, da experiência mística que seria uma tentativa de significação dessa experiência, que cria bem-estar a partir da ilusão de amparo e de respostas às perguntas existenciais. Novamente, em situações de grande desamparo podemos entender o benefício desta criação de significado para o início de um tratamento.

Dessa forma, a grande peculiaridade da experiência psicodélica parece ser consequência da amplificação sensorial, da fruição das partes, de uma forma de libido infantil que desorganiza o Eu, que o fragmenta e dissolve suas barreiras, propiciando um movimento na realidade, uma reorganização deste campo, propiciando a oportunidade de ressignificações. Não é de se espantar que tal desestruturação em psicóticos possa gerar surtos e desorganização geral. 

“A ponte entre os modelos de psicose e terapêutico parece ser o modo como ocorre essa reorganização a partir da experiência psicodélica, podendo gerar delírios em pacientes predispostos, saídas pela construção de sentidos totalizantes como nas experiências místicas ou transformação a partir da sustentação da queda do discurso, da ausência de resposta e de um tempo para compreender. “

A ponte entre os modelos de psicose e terapêutico parece ser o modo como ocorre essa reorganização a partir da experiência psicodélica, podendo gerar delírios em pacientes predispostos, saídas pela construção de sentidos totalizantes como nas experiências místicas ou transformação a partir da sustentação da queda do discurso, da ausência de resposta e de um tempo para compreender. 

Um último ponto que nos interpela é o lugar do outro nessa experiência psicodélica. Muitas vezes se colocam as plantas como mestres, as drogas como caminho para falar com entidades ou receber revelações de algo ou alguém que fala com o usuário. Esse ponto nos parece importante visto que aparentemente difere bastante da intoxicação com drogas cujo uso mais frequentemente se torna problemático. Nestas últimas, o fenômeno ocasionado pelo uso remete a consistência de um Outro que concede satisfação imediata e um amparo, de uma totalidade nesta relação específica e não com o universo, de certa forma uma regressão a experiência de satisfação primária que para alguns autores vai criar uma inversão da relação de apoio com o desejo e uma nova necessidade (Gurfinkel, 2011). Já na experiência psicodélica parece que a intoxicação com a droga apresenta uma alteridade, inclusive uma que abre para a divisão subjetiva, conflitos e estranhamento. Este é outro caminho que deve ser aprofundado em pesquisas posteriores.

Conclusão

Neste artigo apresentei as principais ideias relacionadas aos mecanismos pelos quais o uso de psicodélicos pode gerar mudanças clínicas, relacionando estes mecanismos ao pensamento de uma psicanálise lacaniana.

Os psicodélicos clássicos têm propriedades farmacológicas similares a algumas medicações que já são utilizadas na psiquiatria, além de poder ter ação em outros circuitos neuronais, lhes atribuindo outros potenciais terapêuticos como controle de fissura e de síndromes de abstinência no caso das adicções. Nessa perspectiva os psicodélicos clássicos seriam outros fármacos como os demais, sem destaque especial para as alterações singulares provocadas por eles, tendo como destaque possíveis novas vias psicofarmacológicas.

Outro aspecto comumente apontado é o “enfraquecimento das resistências psíquicas” sendo que ao longo do desenvolvimento da psicanálise essa ideia foi abandonada junto com a hipnose e ab-reação. 

Esse rebaixamento contribui também para os efeitos de aumento da sugestionabilidade associado ao uso dessas drogas, que tem potencial de diminuir sintomas enquanto se sustentar uma transferência importante com o curador. Além de depender dessa estabilidade para manutenção das mudanças, a sugestão leva a identificações com o terapeuta e com ideais, ou seja, tem um caráter normativo. Em alguns casos não deixa de ser importante, porém, o efeito sobre o sintoma e o acolhimento proporcionado.

O surgimento de novos afetos e associações possui uma singularidade. Com a ressalva de não considerar automaticamente que eles sejam originários de conteúdo recalcado, estas alterações podem levar a uma ressignificação e a reposicionamentos diante da realidade. Mais do que isso, esse estado de hiperexcitabilidade e menor filtragem leva a um processo de transbordamento que pode levar a uma experiência próxima à psicose, de alteração de saliência, na qual a fragmentação e a dissolução do ego contribuem para um evento de ressignificação, cujo exemplo possível é o de experiência mística, sendo esta uma via de alienação do sujeito. 

Esse fenômeno deve ser mais investigado para elucidarmos como os psicodélicos clássicos podem atuar como transformadores e auxiliar processos psicoterápicos. Algo na direção do abalo no campo da realidade, criando uma hiância que, associada a novas cadeias associativas, tem o potencial de produzir novas significações. 

Finalmente, uma investigação neste sentido pode contribuir para o entendimento dos fenômenos de adicção visto que ao contrário de outras classes de drogas não observamos casos de dependência de LSD, psilocibina, mescalina, entre outros. 


1– Optou-se por usar Daime para referenciar o uso do chá em contexto da religião do Santo Daime e ayahuasca para o contexto geral.


Referências

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2 Comentários

  1. “Outro estudo procurou classificar 20 substâncias a partir da opinião de especialistas segundo seus riscos…”

    Qual estudo? Quais especialistas?

    • Obrigado pelo apontamento, a falta de referência passou batida por nossa revisão. Se trata do estudo publicado pela Revista Lancet, segue a fonte que foi já adicionada na publicação:
      Nutt, D. J., King, L. A., & Phillips, L. D. (2010). Drug harms in the UK: a multicriteria decision analysis. The Lancet, 376(9752), 1558-1565.

      Obrigado

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